A metamorfose ou O asno de ouro - Lucio Apuleio - Livro em portugués
LUCIO APULEIO
A metamorfose ou O asno de ouro
Advertência3
Advertência
A tradução que publicamos do ASNO DE OURO, de Apuleio, é a atribuída
à Diego López da Cortegana, que foi arcediano de Sevilha pelos anos de 1500.
Desejando facilitar sua leitura, modernizamos a ortografia e, às vezes,
levemente, a sintaxe da velha versão castelhana.
Cotejamo-la além, minuciosamente, com o original latino, e apenas foi
preciso modificar algum nome próprio e alguma passagem má interpretada.
Conservamos a divisão em capítulos e os epígrafes de Cortegana. O texto
latino se divide só em livros.
Neste livro, composto ao estilo de Mileto, poderá conhecer e saber
diversas histórias e fábulas, com as quais deleitará seus ouvidos e sentidos, se
quiser ler e não menosprezar, ver esta escritura egípcia, composta com
engenho das ribeiras do Nilo; porque aqui verá as fortunas e figuras de homens
convertidas em outras imagens e tornadas outra vez em sua mesma forma. De
maneira que se maravilhará do que digo. E se quer saber quem sou, em
poucas palavras lhe direi isso: Minha antiga linhagem teve sua origem e
nascimento nas colinas do Himeto ateniense, no istmo da Efirea e em Tenaro
de Esparta, que são cidades muito férteis e nobres, celebradas por muitos
escritores. Nesta cidade de Atenas comecei a aprender sendo moço; depois
vim à Roma, onde com muito trabalho e fadiga, sem que professor me
ensinasse, aprendi a língua natural dos Romanos. Assim que peço perdão se
em algo ofender, sendo eu rude para falar língua estranha. Que até a mesma
mudança de meu falar responde à ciência e estilo variável que começo a
escrever. A história é grega, entende-a bem e haverá prazer.
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Primeiro livro
ARGUMENTO
Lucio Apuleio, desejando saber arte mágica, foi à província de Tessália,
onde estas artes se sabiam; no caminho se juntou terceiro companheiro a dois
caminhantes, e andando naquele caminho foram contando certas coisas
maravilhosas e incríveis de um embaixador e de duas bruxas feiticeiras que se
chamavam Meroe e Panthia, e logo diz de como chegou à cidade Hipata e de
seu hospedeiro Milón, e o que a primeira noite aconteceu em sua casa. Lê e
verá coisas maravilhosas.
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CAPÍTULO I
Como Lucio Apuleio, desejando saber a arte mágica, foi à província da
Tessália, onde à presente mais se usava que em outra parte alguma, e
chegando perto da cidade de Hipata, juntou-se com dois companheiros, os
quais, até chegar à cidade, foram contando admiráveis acontecimentos de
magas feiticeiras.
E indo à Tessália sobre certo negócio, porque também dali era minha
linhagem, de parte de minha mãe, daquele nobre Plutarco e Sesto, seu
sobrinho, filósofos, dos quais vem nossa honra e glória, depois de passar serras
e vales, prados arborizados e campos arados, já o cavalo que me levava, ia
cansado. E assim, por isso, como por exercitar as pernas, que tinha cansadas
de cavalgar, saltei em terra e comecei a esfregar o suor e a frente de meu
cavalo. Tire-lhe o freio e retirei das orelhas, e leve-o diante de mim, pouco a
pouco, até que fosse bem descansado, fazendo o que naturalmente
acostumara. Caminhando de tal maneira, ele mordia por esses prados uma
parte e a outra, torcendo a cabeça, e comia o que podia, até que a dois
companheiros que iam um pouco diante de mim eu me cheguei e fiz-me
terceiro, escutando o que falavam. Um deles, com uma grande risada, disse:
- Cala já; não diga essas palavras tão absurdas e mentirosas.
Como ouvi isto, desejando saber coisas novas, disse:
- Antes, senhores, repartam comigo do que falam, não porque eu seja
curioso de sua fala, mas porque desejo saber todas as coisas, ou ao menos
muitas, e também, como subimos a áspera desta encosta, o falar nos aliviará
do trabalho.
Então, aquele que começara a falar disse:
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- Por certo, não é mais verdade esta mentira que se algum dissesse que
com arte mágica os rios caudalosos tornam para trás, e que o mar se coalha, e
os ares morrem, e o Sol está fixo no céu, e a Lua desponta nas ervas, e que as
estrelas se arrancam do céu, e o dia se tira, e a noite detém-se.
Então eu, com um pouco de mais ousadia, disse:
- Ouça você, que começou a primeira fala, por amor de mim que não lhe
cause pesar nem se zangue de proceder adiante.
Assim mesmo, disse ao outro:
-Você me parece que com grosso entendimento e rude coração
menospreza o que por ventura é verdade. Não sabe que muitas coisas pensam
os homens, com suas más opiniões, ser mentira, porque são novamente
ouvidas, ou porque nunca foram vistas, ou porque parecem maiores do que se
pode pensar, as quais, se com astúcia as olhasse e contemplasse, não somente
seriam claras de achar, mas muito ligeiras de fazer? Pois, aconteceu-me que
indo à Atenas um dia, já tarde, e comendo com outros, eu, por fazer como eles,
mordi um grande bocado em uma queijadinha, por causa de que os convidados
se davam pressa em comer. E como aquele é manjar branco e pegajoso,
atravessando-me no gargalo, não me deixando respirar, até que por pouco
fiquei morto; mas com todo meu trabalho cheguei à cidade, e no portal grande
que chamam Pecile vi com estes ambos os olhos a um cavalheiro destes que
fazem jogos de mãos que se tragou uma espada bem aguda pela ponta. E logo,
por um pouco de dinheiro que lhe davam, tomou uma lança pelo ferro e
lançando-a pela barriga, de maneira que o ferro da lança, que entrou pela
virilha, saiu-lhe pela parte da nuca à cabeça, e apareceu um menino lindo no
ferro da lança, subindo e volteando, do qual nos maravilhamos quantos ali
estávamos, que não dissesse, mas sim, era o bastão do deus Esculápio, meio
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cortados os remos, e assim áspero, com uma serpente volteando em cima.
Assim que você, que começou a falar, volte-me a contar isso, que eu só
acreditarei, em lugar deste outro, e além disto prometo que na primeira
hospedaria que entremos convidarei a comer comigo. Este será o pagamento
de seu trabalho.
Ele respondeu:
-Parabéns aceitar o que me diz, e logo prosseguirei o que antes
começara; mas primeiro juro por este Sol que vá a Deus que tenho que te
contar coisas que se acharam e são verdadeiras, porque vós, de adiante, não
duvidem, se chegarem à Tessália, esta cidade que está aqui perto, o que em
cada parte dela se diz por todo o povo. Para que saibam quem sou, de que
terra e o que é meu ofício, têm que saber que eu sou de Egina, e ando por
estas províncias da Tessália, Etólia e Beócia, daqui para lá, procurando
mercadorias de queijo, mel e semelhantes coisas de taberneiros; e como
ouvisse dizer que na cidade de Hipata, a qual é a principal da Tessália,
houvesse muito bom queijo e de bom sabor e proveitoso para comprar, corri
logo lá, para comprar tudo o que pudesse; mas com o pé esquerdo entrei na
negociação, que não me veio como eu esperava, porque outro dia antes viera
ali um negociador que se chamava Lobo e comprara tudo. Assim que eu,
fatigado do caminho e da preguiça que levava, com prazer, por volta da tarde
fui ao banho, e de improviso achei na rua ao Sócrates, meu amigo e
companheiro, que estava sentado em terra, meio vestido com um túnica gasta,
tão disforme, fraco e amarelo, que parecia outro: assim como um daqueles que
a triste fortuna traz para pedir pelas ruas e encruzilhadas. Como eu o vi,
embora era muito familiar meu e bem conhecido, mas duvidei se o conhecia, e
cheguei perto dele, dizendo: «Oh meu Sócrates! O que é isto, que gesto é
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esse? Que desventura foi a sua? Em sua casa já é chorado e lamentado, e a
seus filhos deram tutores os prefeitos; sua mulher, depois de feitas exéquias e
chorado, carregada de luto e tristeza, quase perdeu os olhos; é compelida e
importunada por seus parentes a que se case com novo marido que alegre a
tristeza e dano de sua casa, e você está aqui, como estátua do diabo, com
nossa injúria e desonra.» Ele então me respondeu: «Oh Aristómenes! Não sabe
você as voltas e rodeios da fortuna e seus instáveis movimentos e alternadas
variações.» E dizendo isto, com sua túnica surrada cobriu a cara, que, de
vergonha, estava vermelha, de maneira que descobriu o umbigo acima. Eu não
pude sofrer tão miserável vista e triste espetáculo; tomei-o pela mão e lidei
com ele para se levantar, e ele assim, como tinha a cara coberta, disse: «deixeme;
use a fortuna de seu triunfo; siga o que começou e tem fixo.» Eu logo
despi uma de minhas vestimentas e rapidamente o vesti, embora melhor diria
que o cobri; disse-lhe para ir ao banho, dei-lhe tudo o que foi mister para
lubrificar-se e limpar a muita e enorme sujeira que tinha. Depois de bem
tratado, embora eu estava cansado, como melhor pude levei-o a hospedaria e
o fiz sentar à mesa e comer a seu prazer; amansei-o com o beber, alegrei-o
com o falar, de maneira que já estava inclinado a falar em coisas de jogos e
prazer para burlar e jogar, como homem decidido, quando do íntimo de seu
coração deu um mortal suspiro e com a mão direita deu um grande golpe em
sua cara, dizendo:
- Oh mesquinho de mim, enquanto que andei seguindo a arte da esgrima,
que muito me agradava, caí nestas misérias; porque, como você muito bem
sabe, depois de muito ganho que houve na Macedônia, partindo-me dali, que
havia dez meses que ganhava dinheiro, tornei rico e com muito dinheiro; e um
pouco antes que chegasse à cidade da Larissa, pensando fazer ali alguma coisa
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de meu ofício, passei por um vale grandiosa, sem caminho, cheio de Montes e
descidas e subidas. Neste vale caí em ladrões, que me cercaram e roubaram
quanto trazia; eu escapei roubado, e assim, meio morto, pousei em casa de
uma taberneira velha, chamada Meroe, um pouco sabida e faladeira, a qual
contei as causas de meu caminho e roubo; a vontade e ânsia que tinha de
voltar à minha casa; contando eu minhas penas com muita fadiga e miséria;
ela começou a tratar-me humanamente; deu-me jantar muito bem e bastante.
Assim, movido ou alterado de amor, colocou-me em sua câmara e cama; eu,
mesquinho, uma vez que cheguei à ela contraí tanta enfermidade e velhice,
que para fugir dali tudo que tinha, dava-lhe, até as vestimentas que os bons
ladrões deixaram com que me cobrisse, e até algumas coisas que ganhara
carregando sacos quando estava bom. Assim que aquela boa mulher e minha
má fortuna trouxe-me para este gesto que pouco antes me viu.
Eu respondi:
-Por certo, você é merecedor de qualquer extremo, mal que o viesse,
embora houvesse algo que pudesse dizer último dos extremos, porque uma má
mulher e um vício carnal tão sujo antepor a sua casa, mulher e filhos.
Sócrates, então, pondo o dedo na boca e como atônito olhando em redor,
a ver se era lugar seguro para falar, disse:
-Cala, cala; não diga mal contra esta mulher, que é maga; por ventura,
não receba algum dano por sua língua.
Ao qual eu respondi:
-Como diz você que esta taberneira é tão poderosa e reina? Que mulher
é?
Ele disse:
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-É muito ardilosa feiticeira, que pode baixar os céus, fazer tremer a terra,
coalhar as águas, desfazer os Montes, invocar diabos, conjurar mortos, resistir
aos deuses, obscurecer as estrelas, iluminar os infernos.
Quando eu lhe ouvi dizer estas coisas, disse:
-Rogo-lhe, por Deus, que não falemos mais em matéria tão alta;
baixemo-nos em coisas comuns.
Sócrates disse:
-Quer ouvir alguma coisa ou muitas das suas? Ela sabe tanto, como fazer
que dois apaixonados se queiram bem e se amem muito fortemente, não
somente daqui, dos naturais, mas até dos das Índias, etíopes e antípodas, é,
em comparação de seu saber, coisa muito leviana e de pouca importância.
Ouça agora o que em presença de muitos ousou fazer a um apaixonado dele
porque teve que fazer com outra mulher: com uma só palavra sua converteu-o
em um animal que se chama castor, o qual tem esta propriedade: que
temendo de ser tomado pelos caçadores, corta sua natureza para que o
deixem; e porque outro tanto acontecesse àquele seu amigo, transformou-o
naquela besta. Assim mesmo, a outro seu vizinho taberneiro, e por isso
inimigo, converteu em rã; e agora o velho mesquinho nadava na tina do vinho,
e, lançando-se debaixo dos sedimentos, canta quando vêm à sua casa os que
continuavam a comprá-lo. Também a outro procurador de suas casas, porque
advogou contra ela, transformou-o em um carneiro, e assim, feito carneiro,
procura agora as causas e pleitos; esta mesma, porque a mulher de um seu
apaixonado disse certa injúria por elegância, fechou-a de tal maneira que ficou
prenhe, e assim com a carga de sua gravidez anda, que nunca mais pôde parir;
e todos contam o tempo de sua gravidez, que são já oito anos que à
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mesquinha cresce o ventre como prenhez de elefante. A qual, como a muitos
danificasse, foi tanta a ira que o povo tomou contra ela, que acordaram de
apedrejá-la outro dia e vingar-se dela; mas com seus encantamentos ela soube
do acordo. E como aquela Medéia que com a trégua de um dia alcançou o rei
Cronos, toda sua casa e sua filha com o mesmo rei queimou em vivas chama,
assim esta, com suas imprecações infernais, que dentro de um sepulcro fez e
procurou, depende que a bêbada me contou, todos os vizinhos da cidade
encerrou em suas casas com a força de seus encantamentos, que em dois dias
não puderam romper as fechaduras, nem abrir as portas, nem perfurar as
paredes, até que uns outros se admoestaram e juraram de não tocá-la nem lhe
fazer mal algum, antes, dar-lhe toda ajuda e favor saudável contra quem um
pouco de mal pensasse-lhe fazer. Desta maneira ela amansada, absolveu e
desligou toda a cidade; mas ao autor deste escândalo, com sua casa como
estava fechada com as paredes, o chão e seus alicerces, a meia noite o
transpassou e levou a outra cidade, cem milhas dali, que estava assentada em
uma serra muito áspera onde não havia água; e porque na cidade não havia
lugar onde pudesse assentar a casa, pela vizinhança dela, assentou-a ante à
porta da cidade e partiu logo.
Quando eu ouvi isto, disse-lhe:
-Por certo, meu Sócrates, você me diz coisas muito maravilhosas e não
menos cruéis; sem dúvida não me deu o menor cuidado e medo; arrojado-me
há, não somente escrúpulo, mais uma lança. Por ventura, esta velha, usando
de seu encantamento, não conheceu nossas palavras e conversas; portanto,
vamos logo dormir; pois, embora tenhamos quebrantado um pouco o sonho da
noite, ante o dia, fujamos daqui quanto mais longe pudermos.
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CAPÍTULO II
Como Aristómenes, que assim se chamava o segundo companheiro,
prosseguindo em sua história, contou ao Lucio Apuleio como as duas magas
feiticeiras Meroe e Panthia degolaram aquela noite ao Sócrates, indignadas
dele.
Ainda não acabara de dizer isto, quando Sócrates, assim bebendo, do
que não costumava, como pela longa fadiga que padecera, já dormia
altamente e roncava. Eu então, fechei a porta da câmara e o batente, e jogueime
sobre uma maca que estava perto dos gonzos da porta. Assim, primeiro, do
medo que tinha, velei um pouco; depois, quase a meia noite, começando a
fechar os olhos: minha fé, com prazer, já dormia; e subitamente, com maior
ímpeto e ruído que ladrões vêm, as portas abriram-se, e para dizer a verdade,
quebradas e arrancadas dos gonzos caíram por terra. A maca em que estava,
como era pequena e coxo o banco de um pé e podre dos outros, com a
violência e força do ímpeto caiu em terra; eu caí debaixo no chão, e como a
cama voltou, tomou-me debaixo e cobriu-me. Então eu senti alguns afetos,
que, naturalmente, vinham-me contrário ao que queria. Que, como acontece
muitas vezes que, com prazer, saem lágrimas, assim naquele grande medo
que tinha não podia sofrer a risada, porque estava de homem feito tartaruga.
Estando assim jogado em terra, assim coberto com a cama, voltei os olhos
para ver que coisa era aquela, e vi duas mulheres velhas: alguém trazia um
candelabro ardendo; a outra, um punhal e uma esponja, e com isto parando-se
ao redor de Sócrates, que dormia muito bem. A que trazia o punhal disse à
outra:
-Irmã Panthia, este é o grande apaixonado Endímion; este é meu
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Ganimedes, que dias e noites burlou de minha juventude. Este é, que não
somente, pospostos meus amores, difama-me e desonra, mas sim agora queria
fugir e que eu desamparada e chorando perpetuamente minha solidão, como
fez Calipso, quando Ulisses a deixou e se foi.
Dizendo isto, apontou-me com a mão e disse à Panthia:
-E também este bom conselheiro Aristómenes, que era o autor desta
fuga, até ele próximo está da morte; jogado em terra jaz debaixo da cama;
tudo isto bem o olhou, pois não crê que tem que passar sem pena pelas
injúrias que me disse: eu lhe farei que tarde, e até logo e agora, arrependa-se
do que disse contra mim pouco antes, e da curiosidade de agora.
Eu, mesquinho, como entendi estas palavras, cobri-me de um suor frio;
comecei tremer todo o corpo e sacudir de tal maneira, que a maca saltava
tremendo em cima de minhas costas.
A boa Panthia disse então:
-Pois, irmã, por que a este não despedaçamos primeiro, ou ligado pés e
mãos cortamos-lhe sua natureza?
Nisto respondeu Meroe, que assim se chamava a taberneira, o qual eu
conheci dela mais por seu gesto de vinho que pelo conto que me dissera
Sócrates:
-Antes me parece que deve viver, porque sequer enterrem o corpo deste
coitado.
Tomou a cabeça de Sócrates, voltando-a para outro lado, pela parte
sinistra da garganta, lançou-lhe o punhal até os cabos, e como o sangue
começou a sair, chegou ali um solavanco, em que recebeu tudo, de maneira
que uma gota nunca apareceu. Tudo vi eu com estes meus olhos, e até acredito
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que porque não houvesse diferença do espiritual sacrifício que fazem aos
deuses, lançou a mão direita por aquela degoladura até as vísceras a boa
Meroe, e tirou o coração de meu triste companheiro. O qual, como talhara o
gogó, não pôde dar voz nem somente um gemido. Panthia tomou a esponja
que trazia e meteu-a na abertura da chaga, dizendo:
-Você, esponja, nascida no mar, guarda que não passe por nenhum rio.
Isto dito, ambas junto vieram para mim e tirando-me a cama de cima, e
postas em cócoras olhando-me a cara, tanto que me encharcaram bem com
sua urina suja. E então saíram pela porta fora, e logo as portas voltaram a seu
primeiro estado, fechadas como estavam; os gonzos voltaram a seu lugar, os
postes endireitaram, o batente atravessou e fechou como antes. Eu, como
estava jogado em terra, sem ânimo, nu e frio e encharcado de urina, como se
então nascesse do ventre de minha mãe, ou quase meio morto, que eu mesmo
ressuscitava para mim, ou como se fugisse da forca, disse:
-O que será de mim quando este achar-se amanhã degolado? Quem
poderá acreditar que eu digo coisas verossímeis, parecendo, com efeito, as
verdadeiras? Porque logo me dirão: «Se você, homem tão grande, não podia
resistir a uma mulher, ao menos desse vozes, chamasse socorro. Como em
presença de seus olhos degolavam um homem e você calava-se? Por que, se
eram ladrões, não mataram a ti também, como a ele? Ao menos, sua crueldade
não o devesse perdoar nem deixar para que pudesse descobrir o homicídio;
assim, pois escapou da morte, volta à ela.» Considerando eu estas coisas
muitas vezes, e replicando-as entre mim, ia a noite e vinha o dia.
Assim que me pareceu bom conselho ir antes da alvorada, furtivamente,
e tomar meu caminho, embora tremendo. Assim tomei minhas mochilas e
minha capa e comecei abrir a porta da câmara com a chave; aquelas portas
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boas e muito fiéis que essa noite por sua própria vontade abriram-se, uma vez
e com muito trabalho pude abrir, tendo a chave e dando-lhe trinta voltas.
Depois que saí da câmara fui à porta da hospedaria, e disse ao porteiro:
-Ouça você, onde está? Abra-me a porta da hospedaria, que quero
caminhar de amanhã.
O porteiro, que estava deitado em terra perto da porta, disse-me quase
sonolento:
-Como quer partir a esta hora, que ainda é de noite? Não sabe que
andam ladrões pelos caminhos? Por ventura, é culpado de algum crime que
você mesmo sabe, deseja morrer, nós não temos cabeças de cabaças que
queiramos morrer por você.
Eu disse:
-Não demora amanhecer, quanto mais que homem pobre o que podem
roubar os ladrões? Não sabe você, néscio, que a homem nu dez valentes
homens não lhe podem despojar?
Nisto ele, cambaleando e meio dormindo, deu uma volta sobre o outro
lado, dizendo:
-Eu que o sei agora, deixa degolado aquele seu companheiro com quem
dormiu ontem à noite e foge?
Naquela hora que ouvi aquilo, pareceu-me abrir a terra e que vi o
profundo do inferno e o Cérbero faminto por me tragar.
Recordava-me que aquela boa de Meroe não me perdoara e deixara de
degolar por misericórdia, mas sim por crueldade, para me guardar para a forca.
Assim retornei à câmara e deliberava entre eu e a linhagem da morte, com
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ruído e alvoroço, que me dariam. E como na câmara não me dava a fortuna
outra arma nem faca, salvo somente minha maca, disse-lhe:
-Oh meu leito muito amado, que há comigo padecido tantas penas e
fadigas, você é sabedor e juiz do que esta noite se fez! Você sozinho é o que eu
poderia citar neste homicídio por testemunha de minha inocência. Rogo que se
tiver de morrer dê algum socorro. E dizendo isto, desatei uma corda pendurada
e joguei-a de um madeiro que estava sobre uma janela da parte de dentro; dei
um nó no outro lado da corda; subi em cima da cama, voltado para a morte,
atei-me o laço ao cangote; como dava com ele um pé para derrubar a cama,
porque com o peso do corpo a corda apertasse a garganta e afogasse-me
subitamente, a corda, que era velha e podre, rompeu-se, eu, como caí do alto,
dei sobre Sócrates, que estava ali jogado perto de mim. E logo, nesse
momento, entrou o porteiro dando vozes:
-Onde está você, que a meia noite com grande pressa queria partir e
agora está na cama?
Não sei se isso, ou com a queda que eu dei, ou pelas vozes e barafunda
do porteiro, Sócrates se levantou primeiro que eu dizendo:
-Não sem causa os hóspedes aborrecem e dizem mal destes
estalajadeiros; vejam agora este néscio importuno, como entrou de guarda na
câmara: acredito que para furtar alguma coisa; com suas vozes e clamores o
bêbado despertou-me de meu bom sonho. Então, quando eu vi isto, sai muito
alegre, cheio de gozo não esperado, dizendo:
-Oh!, fiel porteiro, vê aqui meu companheiro, meu pai e meu irmão, o
qual você ontem à noite, estando bêbado, dizia e acusava-me que eu matara.
Eu dizendo isto, abraçava e beijava ao Sócrates. Ele, como cheirou a
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urina suja com que aquelas bruxas ou diabos encharcaram-me, começou a
rufar dizendo:
-Tire-se daqui, que fede como uma latrina.
Perguntou-me meigamente o que era a causa deste fedor tão grande.
Eu comecei a fingir outras palavras de brincadeiras, como ao tempo
convinha para mudar sua intenção e dei-lhe a mão dizendo:
-Por que não vamos e não tomamos nosso caminho de manhã?
Logo tomei minhas mochilas, pagamos a estalagem e começamos nossa
via.
Tínhamos andado algum tanto, quando já o Sol iluminava toda a terra; e
ainda eu ia muito curiosamente olhando meu companheiro, sua garganta, para
aquela parte que lhe vira colocar o punhal, e dizia a mim:
«Certo; ontem à noite eu estava tão cheio de vinho, que sonhei coisas
maravilhosas. Eis aqui Sócrates, vivo, são e inteiro: Onde está a ferida? Onde
está a esponja? Quanto mais uma ferida tão funda e tão fresca.» E disse-lhe:
-Não sem causa os bons médicos dizem que os que muito jantam e
bebem sonham cruéis e graves coisas: assim aconteceu-me, que ontem à
noite, como me desordenei no beber, sonhei cruéis e espantáveis coisas, que
até me parecia esborrifado e sujo, com sangue de homem.
Nisto ele, vendo-me, disse:
-Antes me parece que está esborrifado, não com sangue, mas com urina.
Mas também sonhava eu que me degolavam; até me doeu a garganta;
que me arrancavam o coração; até agora não posso respirar; as pernas
tremem, e os pés andam titubeando; queria comer alguma coisa para me
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esforçar.
Eu então disse-lhe:
-Pois, eis aqui o almoço.
E logo tirei minhas mochilas do ombro e tirei pão e queijo dizendo:
-Sentemo-nos aqui, perto deste plátano.
E sentados, eu também comecei a comer alguma coisa. Assim que eu o
olhava como comia, tragando; com uma fraqueza intrínseca e amarelo que
parecia morto. De tal maneira turbara-lhe a cor da vida, que pensando
naquelas fúrias ou bruxas da noite passada, o bocado de pão que mordera,
embora muito pequeno, atravessou-me no gargalo, que não podia ir abaixo
nem tornar acima, e também crescia-me o medo, porque ninguém passava
pelo caminho. Quem poderia acreditar que de dois companheiros, fosse morto
o um, sem dano do outro? Mas Sócrates, de que muito comera, começou a ter
grande sede, porque comera boa parte de queijo. Perto das raízes do plátano
corria um rio mansamente, que parecia lago muito plano e a água clara como
um prato ou vidro. Eu disse-lhe:
-Anda, farte-se daquela água tão formosa.
Ele levantou-se e foi pela ribeira do rio ao mais plano. E ali fincou as
joelhos e ficou de bruços sobre a água, com aquele desejo que tinha de beber,
e quase não chegara os lábios à água, quando lhe abriu a degoladura, que lhe
pareceu uma grande abertura, e subitamente caiu a esponja na água com um
pouco de sangue. Assim como o corpo sem alma por pouco descansasse no rio,
mas, sim porque eu lhe travei de um pé e com muito trabalho lhe atirei acima.
Depois que, segundo o tempo e lugar, chorei ao triste de meu companheiro, eu
o cobri na areia do rio para sempre, e com grande medo por essas serras fora
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de caminho fui quanto pude. E quase como eu mesmo me culpasse da morte
daquele meu companheiro, deixada minha terra e minha casa, tomando
voluntário desterro, casei-me de novo em Etiópia, onde agora moro e sou
vizinho.
Desta maneira contou-nos Aristómenes sua história; e o outro seu
companheiro, que logo ao princípio muito incrédulo menosprezava ouvi-lo,
disse:
-Não há fábula tão fabulosa como esta. Não há coisa tão absurda como
esta mentira.
E voltando-se para mim, dizendo:
-Você, homem de bem, segundo sua presença e hábito o mostram, crê
neste conto?
Eu respondi-lhe:
-Certo não penso que há coisa impossível, de qualquer maneira, que os
fados o determinarem: assim podem vir aos homens todas as coisas. Porque
muitas vezes acontece para mim, a si e a todos os homens vir coisas
maravilhosas e que nunca aconteceram, que se as contam à pessoas rústicas
não são críveis. Mas, por Deus, a este eu acredito e dou-lhe muitas graças que,
com a suavidade de seu gracioso conto, fez-nos esquecer o trabalho; sem
fadiga e irritação andamos nosso áspero caminho. Do qual benefício, também
acredito, que se alegra meu cavalo, porque sem seu trabalho viria até a porta
desta cidade, cavalgando não em cima dele, mas de minhas orelhas.
Aqui foi o fim de nosso comum falar e de nosso caminho, porque ambos
meus companheiros tomaram à mão esquerda para umas aldeias.
CAPÍTULO III
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No qual conta Lucio Apuleio como chegou à cidade de Hipata, foi bem
recebido por seu hospedeiro Milón e do que lhe aconteceu com um antigo seu
amigo chamado Pithias, que o presente era funcionário na cidade.
Eu entrei na primeira hospedaria que achei e perguntei à uma velha
taberneira:
-É esta a cidade de Hipata?
Disse que sim. Perguntei-lhe:
-Conhece um dos principais desta cidade, que se chama Milón?
A velha riu, dizendo:
-Por certo, assim se diz aqui, que este Milón seja dos principais que vivem
fora dos muros e de toda a cidade.
Eu disse:
-Mãe boa, deixemos agora a brincadeira; diga-me onde está e em que
casa mora!
Ela respondeu:
-Vê aquelas janelas do cabo que estão fora da cidade e à parte de dentro
estão frente de uma ruela sem saída? Ali mora este Milón, bem farto de
dinheiro e muito rico, mas muito mais avarento e de baixa condição; homem
infame e sujo, que não tem outro ofício, a não ser, continua dando a usura
sobre bons objetos de ouro, de prata, metido em uma casinha pequena, e
sempre atento ao pó do dinheiro: ali mora com sua mulher, companheira de
sua tristeza e avareza, que não tem em sua casa pessoa, salvo uma moça; que
até tão avarento é que anda vestido como um pobre, que pede por Deus.
Quando eu ouvi estas coisas, ri comigo, dizendo:
Primeiro livro21
«Por certo, literalmente o fez comigo, aconselhou-me meu amigo
Demeas, que indicou a tal homem como este, em cuja casa não terei medo de
fumaça nem de aroma da cozinha.»
Como isto disse, indo um pouco adiante, cheguei à porta de Milón, a qual,
como estava muito bem fechada, comecei a chamar e tocar. Nisto saiu uma
empregada, que me disse:
-Ouça você, que tão receoso chama a nossa porta, que objeto traz para
que lhe emprestem sobre ela dinheiro? Não sabe você que não temos que
receber objeto, mas sim ouro ou prata?
Eu disse:
-Melhor o faça Deus. Responda-me se estiver em casa seu senhor.
Ela disse:
-Sim está; mas, diga-me o que é que quer.
Eu respondi:
-Trago-lhe cartas de Corinto de seu amigo Demeas.
Ela disse-me:
-Pois, então que digo: espere-me aqui.
E dizendo isto, fechou muito bem sua porta e entrou. De onde a pouco
voltou a sair, e aberta a porta, disse-me que entrasse. Eu entrei, e achei ao
Milón sentado à uma mesinha pequena, que aquele tempo começava a jantar.
A mulher estava sentada aos pés, e na mesa havia pouco, ou quase nada que
comer.
Ele disse-me:
-Esta é sua estalagem.
Primeiro livro22
Eu agradeci e logo dei as cartas de Demeas, as quais por ele lidas, disse:
-Eu quero bem e tenho em mercê a meu amigo Demeas, que tão honrado
hóspede enviou a minha casa.
E dizendo isto, mandou levantar sua mulher e que eu me colocasse em
seu lugar. Eu, com alguma vergonha, detinha-me, e ele tomou-me pela roupa,
dizendo:
-Sente-se aqui, que, por medo de ladrões, não temos outra cadeira, nem
jóias, as quais nos convém.
Eu sentei-me. Ele disse-me:
-Segundo mostra em sua presença e cortesia, bem parece ser de nobre
linhagem, e assim o conhecerá logo quem o vir; mas, além disto, meu amigo
Demeas assim o diz por suas cartas; portanto, rogo-lhe que não menospreze a
brevidade, ou estreitamento de minha casa, que está equipada pelo que
mandar, e vê ali aquela câmara, que é razoável, em que pode estar a seu
prazer. Porque, certo, sua presença fará maior a casa e você será louvado de
não menosprezar minha pequena estalagem. Além disto, imitará às virtudes de
seu pai Teseu, que nunca se menosprezou de pousar em uma casinha daquela
boa velha Hecales.
Então chamou à empregada e disse-lhe:
-Fotis, toma esta roupa do hóspede e ponha a boa cobrança naquela
câmara; e saca da dispensa azeite para lubrificar-se e um pano para limpá-lo, e
leva meu hóspede a este banho mais próximo, porque ele vem muito fatigado
do mau e longo caminho.
Quando eu ouvi estas coisas, conhecendo os costumes e miséria de
Primeiro livro23
Milón, e querendo tomar amizade com ele, disse-lhe:
-Não é mister nada destas coisas, que em qualquer lugar achamos no
caminho; mas eu perguntarei pelo banho. O que mais, principalmente agora, é
mister que, para meu cavalo, que me trouxe muito bem até aqui, você compreme,
senhora Fotis, feno e cevada; vê aqui o dinheiro.
Isto feito, e posto toda minha roupa naquela câmara, indo eu ao banho,
achei primeiro prover de alguma coisa para comer; e fui à praça de Cupido,
aonde vi abundância de pescados, e perguntando o preço, não quis tirar do
caro, que valia cem maravedís, e comprei outro por vinte maravedís. Ao tempo
que eu saía com meu pescado, vem atrás de mim Pithias, que foi meu
companheiro quando estudávamos em Atenas. O qual havia dias que não me
vira, e como me reconheceu, veio a mim com muito amor, abraçou-me, dandome
paz amorosamente, e disse:
-Oh meu Lucio!, muito tempo faz que não o vejo: por Deus que depois
que nos partimos de nosso professor Clytias, nunca mais nos vimos; mas o que
é agora a causa de sua vinda?
Eu disse:
-Amanhã saberá; mas, o que é isto? Eu terei muito prazer em vê-lo com
vara de justiça e acompanhado de gente em pé. Segundo seu hábito, ofício
deve ter na cidade.
Ele disse-me:
-Tenho cargo do pão e sou funcionário; por isso, se quer comprar algo de
comer, eu poderei aproveitar.
Eu não quis, porque já comprara pescado necessário para comer; mas
ele, como viu a cesta do pescado, tomou-a em um plano sacudindo-a, e vendo
Primeiro livro24
os peixes, disse:
-E quanto custou este lixo?
Eu respondi:
-Apenas pude tirar do que o vendeu por vinte maravedís.
O qual, como ele ouviu, tomou-me pela saia e retornou outra vez à praça
do Cupido e perguntou-me:
-De qual destes comprou este nada?
Eu mostrei um idoso que estava sentado em um rincão; o qual, com
vozes ásperas como a seu ofício convinha, começou a maltratar ao velho,
dizendo:
-Seja seja, nem perdoam a nossos amigos nem aos hóspedes que aqui
vêm, porque vendem o pescado podre por tão grande preço e fazem com sua
carestia que uma cidade como esta, que é a flor de Tessália, torne-se um
deserto de solidão; mas não o farão sem pena, ao menos enquanto eu tiver
este cargo: eu mostrarei de que maneira se devem castigar os maus.
E arrebatou a cesta, e derramada por terra, fez ao seu oficial que
saltasse em cima e o amassasse bem com os pés. Assim que meu amigo
Pithias, contente com este castigo, disse que fosse, dizendo:
-Lucio, bem me basta a injúria que fiz a este idoso.
Isto feito, zangado e descontente fui ao banho, sem jantar e sem
dinheiro, pelo bom conselho daquele discreto do Pithias meu companheiro;
assim que depois de lavado retornei à estalagem de Milón e entrei em minha
câmara; logo veio Fotis e disse-me:
-Rogo-lhe, senhor, que vá lá.
Primeiro livro25
Eu, conhecendo a miséria de Milón, desculpei-me meigamente, dizendo
que a fadiga do caminho mais necessidade tinha de sono, não de comer.
Como ele ouviu isto, veio para mim e tomou-me pela mão, para me levar;
porque demorava e honestamente desculpava-me, dizendo:
-Certo não irei daqui senão for comigo, o qual juro.
Eu, vendo sua insistência, embora contra minha vontade, teve-me que
levar àquela sua mesinha, onde me fez sentar e logo me perguntou:
-Como está meu amigo Demeas? Como estão sua mulher, filhos e
criados?
Eu contei-lhe tudo o que me perguntava. Deste modo, perguntou-me,
insistentemente, a causa de meu caminho, a qual, depois que muito bem o
relatei, começou a perguntar da terra e do estado da cidade, dos principais
dela e quem era o governador; assim, depois que me sentiu fatigado de tão
longo caminho e de tanto falar; que dormia, que não acertava no que dizia,
gaguejando nas palavras, meio ditas, finalmente concedeu que fosse dormir.
Agradeço à Deus que já escapei do convite faminto e da conversa do velho
rançoso e falador, mais faminto de sonho que farto do manjar. Tendo jantado a
sós com suas falas, entrei na câmara e coloquei-me a dormir.
Primeiro livro26
Segundo livro
ARGUMENTO
De tanto que Lucio Apuleio andava muito curioso na cidade de Hipata,
olhando todos os lugares e coisas dali, conheceu sua tia Birrena, que era uma
proprietária rica e honrada; declara o edifício e estátuas de sua casa; como foi
com muita diligência ele avisado que se guardasse da mulher de Milón, porque
era grande feiticeira; como se apaixonou pela empregada da casa, com a qual
teve seus amores; do grande aparelho do convite da Birrena, onde ingere
algumas fábulas graciosas e de prazer; de como guardou um a um morto, pelo
qual lhe cortaram os narizes e orelhas; depois como Apuleio retornou de noite
à sua estalagem, cansado de matar não a três homens, mais a três odres.
Primeiro livro27
CAPÍTULO I
Como andando Lucio Apuleio pelas ruas da cidade de Hipata,
considerando todas as coisas, por achar melhor o fim desejado de sua
intenção, topou-se com uma tia sua chamada Birrena, a qual lhe deu muitos
avisos em muitas coisas de que se devia guardar.
Quando outro dia amanheceu e o Sol saía, eu levantei com ânsia, desejo
de saber e conhecer as coisas que são estranhas e maravilhosas; pensando
como estava naquela cidade, que é em meio da Tessália, aonde por todo
mundo é fama que há muitos encantamentos de arte mágica; também
considerava aquela fábula do Aristómenes meu companheiro, a qual
acontecera nesta cidade. E com isto andava curioso, atônito, esquadrinhando
todas as coisas que ouvia. E não havia outra coisa naquela cidade que,
olhando-a, eu acreditasse que era aquilo que era; mas parecia-me que todas as
coisas com encantamentos transformavam-se em outra figura: as pedras,
achava que eram endurecidas de homens; as aves que cantavam, deste modo
de homens convertidos; as árvores, que eram os muros da cidade, por
semelhante tornaram-se; as águas das fontes, que eram sangue de corpos de
homens: pois já as estátuas e imagens pareciam que andavam pelas paredes;
que os bois e animais falavam e diziam coisas de presságios ou adivinhações.
Também parecia-me que do céu e do Sol tinha que ver algum sinal. Andando
assim atônito, com um desejo que atormentava-me, não achando começo nem
rastro do que eu cobiçava, andava cercando e rodeando todas as coisas que
via; assim andando com este desejo, olhando de porta em porta, subitamente,
sem saber por onde andava, achei-me na praça do Cupido; e eis aqui onde vejo
uma proprietária bem acompanhada de servidores, vestida de ouro e pedras
Primeiro livro28
preciosas, o qual mostrava bem que era uma mulher honrada; vinha a seu lado
um velho já em idade avançada, o qual, logo que me olhou, disse:
-Por Deus, este é Lucio.
E deu-me paz; chegou-se à orelha da proprietária e não sei o que lhe
disse muito baixo. Retornou a mim, dizendo:
-Por que não chega à prima de sua mãe e fala-lhe?
Eu disse:
-Tenho vergonha, porque não a conheço.
E nisto, a cara vermelha e a cabeça abaixada, detive-me; ela pôs os
olhos em mim, dizendo:
-Oh bondade generosa daquela muito honrada Salvia, sua mãe, que em
tudo lhe parece igualmente como se com um compasso medissem-lhe! De boa
estatura, nem fraco nem gordo, a cor temperada, os cabelos vermelhos como
ela, os olhos verdes e claros, que resplandecem no olhar como olhos de águia;
a qualquer parte que o olhem é formoso e tem decência, assim no andar como
em todo outro.
E acrescentou mais, dizendo:
-Oh, Lucio! Nestas minhas mãos o criei, e por que não? Porque sua mãe
não somente era minha amiga e companheira por ser minha prima, mas
porque nos criamos juntas, que ambas somos nascidas daquela geração de
Plutarco, uma ama criou-nos; assim crescemos juntas como duas irmãs, e
nunca outra coisa nos apartou, salvo o estado, porque ela casou com um
cavalheiro, eu com um cidadão. Eu sou aquela Birrena cujo nome, muitas
vezes, possivelmente, você ouviu seus pais. Assim que lhe rogo venha a minha
Primeiro livro29
estalagem.
Nisto eu, que já com a tardança de seu falar perdera a vergonha,
respondi:
-Pelo amor de Deus, senhora, que sem causa ou queixa deixe a
estalagem de Milón. Mas, o que com inteira cortesia poder-se-á fazer será que
cada vez que vier à esta cidade, virei à sua casa.
De tanto que falamos estas coisas, andando um pouco adiante,
chegamos à casa da Birrena. A qual era muito formosa: havia nela quatro
ordens de colunas de mármore, e sobre cada coluna das esquinas estava uma
estátua da deusa Vitória, tão trabalhosamente lavrada com seus rostos, asas e
plumas; que, embora as colunas fixas, parecia que se moviam e que elas
queriam voar. Do outro lado estava outra estátua da deusa Diana, feita de
mármore muito branco, enfrente de quem entra. Sobre a qual estava carregada
a metade daquele edifício. Era esta deusa muito polidamente obrada: a
vestimenta parecia que o ar a levava; que ela movia-se, andava e mostrava
majestade honrada em sua forma. Ao redor dela estavam seus galgos, feitos
do mesmo mármore, parecia que ameaçavam com os olhos: as orelhas
elevadas, os narizes e as bocas abertas; e se perto dali ladravam alguns cães,
pensava-se que saiam das bocas de pedra.
O que mais o Mestre daquela obra quis mostrar seu grande saber, é que
pôs os galgos com as mãos elevadas e os pés baixos, que parece correrem com
grande ímpeto. Às costas desta deusa estava uma pedra grandiosa, cavada em
maneira de cova: na qual tinha esculpidas ervas de muitas maneiras, com seus
cachos e folhas; pámpanos e parras e outras flores, que resplandeciam dentro,
na cova, com a claridade da estátua Diana, que era de mármore muito claro e
Primeiro livro30
resplandecente. Na margem debaixo da pedra havia maçãs e uvas, que
penduravam lavradas muito trabalhosamente: as quais a arte, imitando a
natureza, explicou e compôs semelhantes à verdade; pensasse que vindo o
tempo das uvas, quando elas maturam, que as poderia pegar para comer. E se
olhar as fontes que aos pés da deusa corriam como um arroio, acreditasse que
os cachos que penduram das parras são verdadeiros, que até não carecem de
movimento dentro na água. Em meio destas árvores e flores estava a imagem
do rei Acteon, como estava olhando a Diana pelas costas quando ela se lavava
na fonte e como ele se tornava em um cervo montês. Andando eu olhando isto
com muito prazer, disse àquela Birrena:
-Seu é tudo isto que vê.
Dizendo isto, mandou a todos os que ali estavam que se afastassem,
queria conversar um pouco em segredo; quando se afastaram, disse:
-Oh, Lucio! Filho meu amado, por esta deusa que tenho muita ânsia e
medo por você e como algo meu, desejo provê-lo e remediá-lo. Guarde-se e
guarde-se fortemente, das más artes e piores adulações daquela Panfilia
mulher desse seu hospedeiro Milón: quanto à primeira, ela é grande mágica e
Mestre de quantas feiticeiras se podem acreditar, que com brotos de árvores,
pedrarias e outras semelhantes coisas; com certas palavras faz que esta luz do
dia transforme-se em trevas muito obscuras e do todo se confunda o mar com
a terra. E se vir algum gentil-homem que tenha boa disposição, logo se
apaixona por sua gentileza; põe sobre ele os olhos e o coração: comece-lhe a
fazer presente, de maneira que lhe enlaça a alma e o corpo que não se pode
largar. E depois que está farta deles, senão fizerem o que ela quer, transformaos
em um ponto, pedras e bestas, ou qualquer outro animal que ela quer;
Primeiro livro31
outros mata; e isto digo-lhe tremendo, porque guarde-se que ela ame
fortemente, você como é moço e gentil homem, agradá-la-á.
Isto dizia-me Birrena, com farta angústia e pena. Eu, quando ouvi o nome
da Magia, como estava desejoso para saber, tanto que me escondi com cautela
ou arte da Panfilia, que antes eu mesmo me ofereci de própria vontade em sua
disciplina e magistério, querendo em um salto lançar-me no profundo daquela
ciência. Assim com mais pressa que pude, alterado pelo que me dissera,
despedi-me de minha tia, soltando-me de sua mão como de uma cadeia e
dizendo:
-Senhora, com sua mercê, eu vou correndo à estalagem de Milón.
Primeiro livro32
CAPÍTULO II
Depois de despedir, Lucio Apuleio da Birrena, sua tia, veio para a
estalagem de seu hospedeiro Milón, onde, ao chegar, achou Fotis, a empregada
da casa, que guisava de comer. E apaixonando-se um pelo outro, acertaram de
dormir juntos.
Indo pela rua como um homem sem miolo, digo comigo: «Ea, Lucio, vela
bem e está contigo; agora tem na mão o que até aqui desejava; agora satisfará
a seu longo desejo de coisas maravilhosas. Afasta-se de todo medo: junte-se
perto, para que possa rapidamente alcançar o que buscas; mas olhe bem que
se afaste e cuide-se de não fazer baixeza com a mulher de seu hospedeiro
Milón, nem de sujar sua cama e honra. Com tudo isso, bem pode requerer de
amores à Fotis, sua criada, que parece ser bonita, perspicaz e alegre. Até bem
deve-se recordar, quando ontem à noite, foi dormir, como ela o acompanhou,
mostrando a cama e cobrindo-o a roupa, depois de deitado, e beijou-lhe na
cabeça, partindo-se dali, contra sua vontade, segundo mostrou em seu gesto;
finalmente, quando ia, ela voltava a cara para trás e detinha-se, o qual é bom
sinal, e assim seja daqui em diante. De maneira que não será mau que esta
Fotis seja requerida de amores.» Indo eu disputando entre estas coisas,
cheguei à casa de Milón, e como dizem, eu por meus pés confirmei a sentença
do que pensara. Entrando em casa, nem encontrei Milón, nem tampouco a sua
mulher, que eram ambos estavam fora, a não ser a minha muito amada Fotis,
que fazia refeição para seus senhores bolos e panelas: o qual cheirava tão
bem, que já me parecia que o comia, tão saboroso era. Ela estava vestida de
branco, sua camisa limpa, e uma cara branca linda rodeada por debaixo do
peito; com suas mãos brancas e muito lindas fazia as caixas dos bolos
Primeiro livro33
redondas; e como trazia a massa ao redor, também ela se movia, sacudindo-se
toda, tão prazerosamente, que eu, com o que via, estava maravilhado, olhando
em marco, e como maravilhado de sua lindeza, o melhor e mais cortês que eu
pude, disse-lhe:
-Senhora Fotis, com tanta graça faz este manjar, que eu acredito que é o
mais doce e saboroso que pode ser. Certo será ditoso e muito bem-aventurado
aquele que você deixasse tocar ao menos com o dedo.
Ela, como era discreta empregada e decidida, disse-me:
-Anda, mesquinho, afaste-se daqui; sai da cozinha, não se chegue ao
fogo; porque se um pouco de fogo toca-o, arderá de dentro, que ninguém
poderá apagá-lo a não ser eu, que sei muito bem balançar a panela e a cama.
Dizendo isto, olhou-me e riu. Mas, eu não parti dali até que tentei e
conheci toda a lindeza de sua pessoa; deixadas à parte todas as outras
particularidades, eu apaixonei-me tanto de seus cabelos, que em público nunca
tirava os olhos deles, por mais os gozasse depois em segredo. Assim conheci e
tive por certo julgamento e razão que a cabeça e cabelos é a principal parte da
formosura das mulheres, por duas razões: ou porque é a primeira coisa que
ocorre aos olhos e mostra-nos; ou porque o que a vestimenta e roupas de cores
adorna nos outros membros e alegra-os, isto faz na cabeça o resplendor
natural dos cabelos. E muitas vezes acontece que algumas para mostrar sua
graça e formosura a quem bem querem, tiram todas as vestimentas e a
camisa, apreciando-se muito mais da lindeza de suas pessoas que não da cor
dos brocados e sedas. E embora seja coisa de não dizer, nem nunca houvesse
tão mau exemplo, se tosquiassem a uma mulher que fosse a mais formosa e
acabada em perfeição do mundo, embora vinda do céu e criada no mar;
Primeiro livro34
embora fosse a deusa Vênus acompanhada de suas ninfas e graciosas; com
seu Cupido e toda a companhia que lhe segue, com suas guarnições de cinta
de cadeias; aromas de cinamomo e bálsamo; se vierem calvas e sem cabelos,
não poderá agradar ninguém, nem tampouco a seu marido Vulcano. Que cor se
pode igualar, nem agradar tanto, como o brilho natural dos cabelos, que contra
o resplendor do Sol resplandece e varia a cor em diversas graças? Agora, de
uma parte, resplandece como ouro, da outra de cor trincada; agora parece
verde obscuro imitando às plumas e franja do pescoço das pombas, ou ao
corvo que lhe luz a cor negra. Principalmente, quando elas penteiam-se e
fazem a repartição com ungüento arábico, depois que juntam seus cabelos e
trancam-nos nas costas, se as virem seus amadores, olham-se nelas como em
um espelho; especialmente se os cabelos, sendo muitos e espessos, estão
soltos e estendidos pelas costas. Finalmente, tanta é a graça dos cabelos, que
embora uma mulher esteja vestida de seda e de ouro e pedras preciosas;
tenha todo o adorno e jóias que quiser, senão mostrar seus cabelos, não pode
estar bem adornada, nem embelezada; mas, em minha senhora Fotis, não o
adorno de sua pessoa, mas envolvida como estava, dava-lhe muito muita
graça. Ela tinha muitos cabelos espessos que lhe chegavam sob a cintura com
uma rede para cabelo de ouro, ligados com um nó perto do princípio.
De maneira que eu não pude sofrer mais; inclinei-me e tomei-a por perto
do nó dos cabelos e brandamente comecei a beijar. Ela voltou a cabeça,
olhando-me ardilosa com a extremidade do olho, disse-me:
-Ouça você, escolar, doce e amargo gosto toma: pois, guarde-se, que
com muito sabor do mel, não ganhe contínua amargura de fel.
Eu disse-lhe:
Primeiro livro35
-O que é isto, meu bem e minha senhora? Aparelhado estou, que por ser
recreado somente com um beijo, sofrerei que me agarre nesse fogo. E dizendo
isto, abracei-a receoso e comecei a beijar; já que ela estava acesa na
igualdade do amor comigo, já que eu lhe conhecia, que com sua boca e língua
cheirosa ocorria a meu desejo e que também queria ela como eu, disse-lhe:
-Oh, minha senhora! Eu morro, e mais certo posso dizer que sou morto,
senão gosta de mim.
Nisto ela, beijando-me, respondeu:
-Está de bom ânimo, que eu te amo tanto como você a mim; e não se
dilatará muito nosso prazer, que a primeira noite eu estarei contigo em sua
câmara: anda, sai daqui e arranja, que toda esta noite pelejarei contigo.
Assim com estas palavras e burlas, partimo-nos então.
Depois, já quase era meio-dia, Birrena enviou-me um presente: meia
dúzia de galinhas, um leitão e um barril de vinho antigo fino. Eu chamei a
minha Fotis e disse-lhe:
-Vê aqui, senhora, o deus do amor e instrumento de nosso prazer, que
vem sem chamá-lo, de sua própria vontade; bebamo-lo, sem que gota fique,
para que nos tire a vergonha e nos incite a força de nossa alegria, que esta é a
alimentação, ou provisão que há mister o navio de Vênus: convém saber, que,
na noite sem sonho, abunde no candelabro azeite e vinho na taça.
Todo o outro dia que restava, gastamos no banheiro, e depois no jantar;
porque a rogo do bom Milón, meu hospedeiro, eu sentei-me para jantar à sua
pequena e muito breve mesinha, guardando-me quanto podia da vista da
Panfila, sua mulher; porque me recordando do aviso da Birrena, com temor
parecia-me que, olhando em sua cara olhava na boca do inferno; mas olhava
Primeiro livro36
muitas vezes a minha amada Fotis, que andava servindo à mesa, e nesta
recreava meu ânimo. Nisto, como veio a noite e acenderam candeias, a mulher
de Milón disse:
-Quão grande água cairá amanhã!
O marido perguntou-lhe como ela sabia aquilo. Respondeu que a luz o
dizia. Então Milón riu do que ela dizia, e burlando dela, disse:
-Por certo, a grande sibila profeta mantemos neste candelabro, que todos
os negócios do céu e o Sol tem que fazer se vêem no castiçal.
Eu intrometi-me a falar em suas razões, dizendo:
-Pois saibam que este é o principal experimento desta adivinhação, e não
lhes maravilhem, porque como queira que este é um pouco de fogo aceso por
mãos de homens, mas recordando-se daquele fogo maior que está no céu,
como de seu princípio e pai, sabe o que tem que fazer no céu, e assim nos diz
isso para cá e anuncia por este presságio ou adivinhação. Eu vi em Corinto,
antes que de lá partisse, um sábio, que ali veio, que toda a cidade se espanta
de suas respostas maravilhosas que dá ao que perguntam-lhe; por um quarto
que lhe dão, diz o segredo da ventura e o fado que tem que vir a quem quer;
que dia é bom para fazer casamentos; ou qual será bom para fundar uma
fortaleza, que seja muito perpétua; ou qual será mais proveitoso para
mercados; ou qual mais afamado para melhor poder caminhar; ou qual mais
oportuno para navegar. Finalmente, disse-me quando queria partir para esta
terra, perguntando-lhe como me aconteceria esta viagem, muitas e várias
coisas: ora que teria prosperidade assaz grande, ora que seria de mim uma
grandiosa história e fábula incrível, e que tinha de escrever livros.
Nisto Milón, rindo, disse:
Primeiro livro37
-Que gestos tem esse homem ou como se chama?
Eu disse-lhe que era homem de boa estatura, entre vermelho e negro,
chamava-se Diófanes. Então Milón disse:
-Esse é e não outro, porque aqui nesta cidade falava muitas coisas
semelhantes à essas que diz, por onde ele ganhou não pouco, mas, muito
dinheiro; alcançou grandes graças e dádivas; depois ele, mesquinho, caiu em
mãos da fortuna severo e cruel; estando um dia cercado de gente, dizendo a
cada um sua ventura, um negociante que se chamava Cerdón chegou-se a ele
para lhe perguntar se era aquele dia proveitoso para caminhar, porque ele
queria ir a certo negócio; ele, como lhe disse que era muito bom, já que o
sapateiro abria a bolsa e tirava o dinheiro, e até tinha contado cem maravedís
para lhe dar um galardão da adivinhação que o fazia, eis que, subitamente, um
mancebo dos principais da cidade puxou-lhe a roupa por detrás, e como aquele
sábio voltou a cabeça, abraçou-o e beijou-o. O sábio, como o viu, fê-lo sentar
perto de si, e atônito da repentina vista daquele seu amigo, não recordando do
negócio que tinha entre mãos, disse ao mancebo:
-Oh! Desejado de muitos tempos! Quando veio?
Respondeu ele:
-Se lhes agrada, ontem tarde; mas você, irmão, diga-me também como
lhe aconteceu quando navegou da ilha da Eubea. Como foi por mar e por terra?
Nisto respondeu aquele Diófanes, sábio muito famoso, que estava
privado de sua memória e fora de si:
-Nossos inimigos e adversários caíam em tanta ira dos deuses e tão
grande desterro, que foi mais que o de Ulisses. Porque a nave em que
vínhamos se quebrou com as ondas e tempestades do mar; perdemos o leme,
Primeiro livro38
e o piloto logo que chegou conosco à ribeira do mar, ali afundou-se, onde
perdido quanto trazíamos, nadando escapamos. Depois, saímos deste perigo,
tudo o que dali tiramos e o que nos deram, assim os que não nos conheciam,
por mancha que tinham de nós, como o que os amigos por sua liberalidade,
tudo nos roubaram os ladrões, aos quais, resistindo por defender o nosso,
diante destes olhos, mataram a um irmão meu de nome Arignoto.
Falava estas coisas, aquele sábio zangado e triste, Cerdón, o negociante,
tomou seu dinheiro, que tirara para lhe pagar sua adivinhação e fugiu entre a
gente; finalmente, Diófanes, tornado em si, sentiu a culpa de sua necessidade,
principalmente, quando viu que todos os que estavam ao redor riam dele,
porque conhecia o fado dos outros e não o de sua fazenda.
-Mas você, senhor Lucio, crê que aquele sábio disse verdade a si só mais
que a outro? Deus dê-lhe sorte e que faça boa viagem.
Milón demorava tanto em contar estas patranhas, que me desfazia tudo
e zangava-me comigo mesmo, que de minha vontade daria causa de pôr ao
Milón em oportunidade de contar fábulas: pelo qual eu perdera de gozar boa
parte da noite de prazer que esperava.
Finalmente, esquecida a vergonha, disse ao Milón:
-Lá o haja Diófanes, passe sua fortuna, e se quer torne outra vez a dar ao
mar e à terra o que despojar e roubar aos povos; mas como ainda estou
fatigado do caminho de ontem, dê-me licença que vá cedo dormir.
Dizendo isto, saí dali e entrei em minha câmara, aonde eu achei bem
satisfeito do jantar.
Primeiro livro39
CAPÍTULO III
Que trata como levantou Lucio Apuleio da mísera mesa de Milón,
pesaroso com os contos e prognósticos do candelabro, foi à sua câmara, aonde
se achou muito satisfeito do jantar, e depois de jantado, gozaram-se em um,
por toda a noite, sua amada Fotis e ele.
Fora da porta da câmara estava no chão feita uma cama para os moços,
acredito por que não ouvissem o que entre nós passava. Perto de minha cama
estava uma mesa pequena com muitas coisas de comer e seus copos cheios de
vinho temperado, com sua água; ademais havia ali um copo cheio de vinho,
que tinha a boca muito larga, pronto para beber. O qual tudo era boa ante cena
para a batalha de amores. Logo, como eu deitei, eis onde vem minha Fotis, que
já deixava deitada a sua senhora, com uma grinalda de rosas e outras
desfolhadas no seio; e como chegou, fui beijá-la, depois de jogar aquelas rosas
em cima; tomou uma taça, temperou o vinho com água quente e deu para que
bebesse; antes que acabasse de beber, arrebatou a taça e aquilo que ficara
começou a beber, olhando-me e saboreando os lábios; desta maneira bebemos
outra vez até a terceira. Depois que já estava farto de beber, e não somente
com desejo, mas também, com o corpo equipado à batalha, disse, acalorado, à
Fotis insinuando-lhe amostras de minha impaciência:
-Tenha compaixão de mim, e deite-se logo, já você vê quanta pena me
dera; porque estando eu com esperança do que você me prometera, depois
que a primeira seta de seu cruel amor me deu no coração, por causa que meu
arco se estendesse tanto, que senão o afrouxa tenho medo que com a muita
firmeza a corda se rompa, e se de tudo quer satisfazer minha vontade, solta
seus cabelos e assim me abraçará.
Primeiro livro40
Não demorou ela, que, nadando levara a mesa rapidamente, com todas
aquelas coisas que nela estavam, e, despida de todas suas vestimentas, até a
camisa, e os cabelos soltos, que parecia a deusa Vênus quando saiu do mar,
branca e formosa, sem pêlo nem outra fealdade, ficando à mão diante de sua
vergonha, antes fazendo sombra que se cobrindo, disse:
-Agora faz o que quer, que eu não entendo ser vencida, nem lhe voltarei
as costas. Se for homem, ataca resolvido e mata morrendo, que hoje a luta é
sem quartel.
E dizendo isto, deitou-se, onde cansamos, velando até de manhã,
recreando nossa fadiga com o beber de momento em momento, e desta
maneira passamos algumas outras noites.
Primeiro livro41
CAPÍTULO IV
Como Birrena convidou para jantar a seu sobrinho, Lucio Apuleio, e ele o
aceitou; descreve o aparato da cena e contam-se graciosos acontecimentos
entre os convidados.
Depois aconteceu que um dia Birrena rogou-me, muito insistentemente,
que fosse uma noite para jantar com ela. Eu desculpei-me quanto pude e por
fim fiz o que mandava; mas, cumpria-me tomar licença de minha amiga Fotis,
e de seu acordo, tomar conselho como de um oráculo: a qual, como não
quisesse que me separasse dela tanto como uma unha; mas, enfim, teve que
dar licença breve à milícia de amores, alegremente, dizendo:
-Ouça você, senhor, prova que volte do convite cedo, porque há bandos
aqui dos principais, que em cada parte achará homens mortos; e o governador
não pode remediar esta cidade de tanto mal, e você, assim por ser rico, como
também chegar a pouco, por ser estranho, pode-se vir algum perigo.
Eu respondi-lhe:
-Não tenha, senhora, cuidado nem pena disto; ademais eu não prefiro à
meus prazeres o convite de casa alheia, com minha disposta volta lhe tirarei
deste medo, e até também não vou sem companhia, que minha espada levo
debaixo de mim, que é ajuda de minha saúde.
Com isto me despedi e fui ao jantar, onde achamos outros convidados,
que, como aquela era proprietária principal e flor da cidade, o convite era bem
acompanhado e suntuoso. Ali havia as mesas ricas de cedro e de marfim
cobertas com panos de brocado; muitas copos e taças de diversas formas, mas
todas de grandioso preço; umas eram de vidro, trabalhosamente lavrado;
Primeiro livro42
outras de cristal pintado; outras de prata e de ouro resplandecente; outras de
âmbar, maravilhosamente cavado; e todas adornadas de pedras preciosas, que
punham vontade de beber; finalmente, tudo o que parece que não pode haver,
ali havia; os pajens e servidores da mesa eram muitos, e muito bem
embelezados; os manjares eram em abundância e muito discretamente
administrados; os pajens, penteados e vestidos belamente, traziam aquelas
taças feitas de pedras preciosas com vinho antigo, em abundância e muito
fino.
Já à mesa velas acesas, começou a crescer o falar entre os convidados, o
burlar, rir e motejar uns de outros. Então Birrena perguntou-me, dizendo:
-Como vai nesta nossa terra? Que certo, a quanto eu posso saber, em
templos, banhos e outros edifícios precedemos à todas as outras cidades. Além
disto, somos ricos de jóias de casa. Aqui há muita liberdade e segurança; há
grandes negociações e mercadorias, quando vêm mercados romanos; tanta
segurança e repouso para os estrangeiros como teriam em sua casa. Basta
dizer que somos o retiro e repouso de prazeres para todos os de outras
províncias que aqui vêm.
Nisto eu respondi:
-Por certo, senhora, diz verdade, que eu nunca me achei mais livre em
parte nenhuma como aqui. Mas certo, tenho medo das inevitáveis e cegas
escuridões da arte mágica, que ouvi dizer que aqui até os mortos não estão
seguros em seus sepulcros; porque dali tiram e procuram certas partes de seus
corpos e cortes de unhas para fazer mal aos vivos; que as velhas feiticeiras, no
momento que algum morre, enquanto que lhe aparelham as exéquias, com
grande celeridade acautelam sua sepultura para tomar alguma coisa de seu
Primeiro livro43
corpo.
Dizendo eu isto, respondeu outro que ali estava:
-Antes digo que aqui tampouco perdoam aos vivos, e inclusive não sei
quem padeceu semelhante, que tem a cara talhada, disforme e feia por todas
partes.
Como aquele disse estas palavras, começaram todos a dar grandes
risadas, voltando as caras e olhando a um que estava sentado ao canto da
mesa; o qual, confuso e turbado da brincadeira que os outros faziam dele,
começou a brigar consigo, e como quis levantar para ir-se, disse-lhe Birrena:
-Antes rogo-lhe, meu Theleforon, que não vá; sente-se um pouco e por
cortesia, que nos conte aquela história que lhe aconteceu, porque este meu
filho Lucio gostaria de ouvir sua graciosa fábula.
Ele respondeu:
-Senhora, roga-me, como nobre e virtuosa; mas não é de sofrer a soberba
e necessidade de alguns homens.
Desta maneira Theleforon zangado, Birrena com muita instância o rogava
e jurava por sua vida que, embora fosse contra sua vontade, se o contasse e
dissesse. Assim que ele fez o que ela mandava; alcançou a toalha sobre a
mesa, pôs o cotovelo em cima, e com a mão direita, a maneira dos que
pregam, assinalando com os dois dedos, os outros dois fechados e o polegar
um pouco elevado, começou e disse:
-Sendo eu órfão de pai e mãe parti de Mileto para ver uma festa Olímpia,
e como ouvi dizer a grande fama desta província, desejava vê-la. Assim,
percorrida e vista por mim toda Tessália, cheguei à cidade de Larissa, com mau
agouro de aves negras; andando, olhando todas as coisas dali, já que me
Primeiro livro44
enfraquecia a bolsa, comecei a procurar remédio para minha pobreza; andando
assim, vejo em meio da praça um velho alto de corpo em cima de uma pedra,
que, em altas vozes, dizia:
-Se algum quiser guardar um morto, venha comigo negociar.
Eu perguntei a um dos que passavam:
-Que coisa é esta? Revistam aqui esconder os mortos?
Respondeu-me aquele:
-Cala, que bem parece que é moço e estrangeiro, por isso, não sabe que
está em meio da Tessália, onde as mulheres feiticeiras cortam com os dentes,
os narizes e orelhas dos mortos, em cada parte, porque com isto fazem suas
artes e encantamentos.
Eu disse-lhe então:
-Diga-me, por sua vida, e que guarda é este dos defuntos?
Ele respondeu-me:
-Primeiro, toda a noite tem que velar muito bem, abrir os olhos, sempre
postos no corpo do defunto, sem jamais olhar outra parte, nem somente voltar
os olhos, porque estas más mulheres, convertidas em qualquer animal que elas
quiserem, em voltando a cara, logo se metem e escondem, que, embora
fossem os olhos do Sol e da justiça, os enganariam; que uma vez se tornam
aves e outra vez cães e ratos; logo fazem-se moscas, quando estão dentro,
com seus malditos encantamentos oprimem e jogam sonhos aos que guardam;
de maneira que não há quem possa contar quantas maldades estas más
mulheres, por seu vício e prazer, inventam e acham, por este tão mortal
trabalho, não dão de salário mais de quatro ou seis ducados de ouro, mais ou
Primeiro livro45
menos. Oh, Oh! E o que principalmente, esquecia-me: se algum destes que
guardam não restitui o corpo inteiro, à manhã, tudo o que foi talhado ou
diminuído é obrigado e apressado a repô-lo, cortando-lhe outro tanto de sua
mesma cara.
Ouvindo isto, esforcei-me o melhor que pude, e logo cheguei-me ao que
pregoava, dizendo:
-Deixa já de pregoar, que eis aqui equipado guarda para isso que diz.
Diga-me que salário tem que me dar.
Ele disse:
-Dar-lhe-ão mil maravedís; mas olhe bem, mancebo, com diligência;
prova que este corpo é de um filho dos principais desta cidade; guarda-o bem
destas más harpias.
Eu disse então:
-O que me estão aí contando, necessidades e mentiras? Não vê que sou
homem de ferro, que alguma vez entra sono em mim? Mais vejo que um lince e
mais cheio de olhos estou que Argos.
Quase eu não acabara de falar quando me levou a uma casa, a qual tinha
as portas fechadas, e entramos por uma portinha, por onde entrei em um
palácio obscuro e mostrou-me uma câmara sem luz, onde estava uma
proprietária vestida de luto, perto da qual ele se sentou dizendo:
-Este vem obrigado para guardar fielmente a seu marido.
Ela, como estava com seus cabelos jogados diante da cara, embora em
luto, estava formosa, e olhando-me disse:
-Olhe bem; prova que lhe rogo, que com grande diligência faça o que
Primeiro livro46
tomou a cargo.
Eu disse-lhe:
-Não receie, senhora: mandei-me aparelhar a colação.
A qual cedeu, logo se levantou e coloquei-me em uma camarilha, onde
estava o defunto coberto com lençóis muito brancos, dentro estavam umas
sete testemunhas; elevando o lençol e descobrindo o morto, chorando e
demonstrando todas as coisas de seu corpo, pedindo que fossem testemunhas
os que estavam presentes, o qual um tabelião assentava em seu registro, ela
dizia desta maneira:
-Vêem aqui o nariz inteiro, os olhos sem lesão, as orelhas sãs, os lábios
sem lhes faltar coisas, a barba maciça. Vocês, bons homens, dêem-me por
testemunho o que digo.
E como isto disse, o tabelião assentou e assinou, partiu dali. Eu disse-lhe:
-Senhora, mandem que me provejam de todo o necessário.
Ela respondeu:
-O que é que há mister?
Eu disse-lhe:
-Um candelabro grande, azeite para que baste até o dia; vinho no jarro,
água com sua taça; e o prato feito do que lhe sobra.
Ela, movendo a cabeça, disse:
-Anda, está louco, que em casa chorosa pede jantar e sobras dela, na
qual há tantos dias contínuos que não se viu fumaça; pensa que veio aqui
comer? Por que antes não chora e cuida do luto como convém ao lugar onde
está?
Primeiro livro47
Dizendo isto, olhou a uma empregada e disse-lhe:
-Mirrena, traz disposto um candelabro e azeite, entregue a este guarda
na câmara, vai logo.
Eu fiquei assim desconsolado, para consolo do morto; esfregando os
olhos armados para velar, adulava e esforçava meu coração cantando assim
que já anoitecia. Depois, a noite começada, já era bem tarde e hora de deitar,
já que dormiam e calavam todos, veio-me um medo grandioso; com isto,
entrou uma doninha, a qual me estava olhando, e fincou os olhos em mim
fortemente, de maneira que eu me turvei e zanguei porque um animal tão
pequeno tivesse tanta audácia de assim olhar, e disse-lhe:
-Oh, besta suja e má! Por que não vai daqui e encerra com os ratos, seus
semelhantes, antes que experimente o dano presente que lhe posso fazer? Por
que não vai?
Nisto voltou as costas e logo saiu da câmara. Não demorou nada veio-me
um sono tão profundo, como que me lançou no fundo do abismo, de tal
maneira, que o deus Apolo não pudesse facilmente discernir qual de ambos os
que estávamos jogados fosse mais morto. Estando assim, sem alma, e
havendo mister outro que me guardasse, quase que não estava ali onde
estava, o canto dos galos quebrou as tréguas da noite; finalmente, que eu
despertei, assombrado de um grande pavor corri disposto ao morto; posta uma
luz descobri-lhe a cara e comecei com diligência a olhar todas as coisas de sua
pessoa, e achei que tudo estava são e inteiro.
Nisto entra a mesquinha de sua mulher, chorando e mostrando muita
pena, e entraram com ela as testemunhas que no dia anterior trouxe. Ela
lançou-se sobre o corpo muitas vezes, beijando-o, e com uma luz na mão
Primeiro livro48
reconhecendo, olhando tudo, volta a cabeça, chamou um seu mordomo e
mandou-lhe que pagasse logo ao bom guardião seu prêmio, o qual logo dera,
dizendo:
-Mancebo, toma o seu, e muito obrigado lhe damos, que por certo por
este seu bom serviço lhe teremos como um dos amigos e familiares da casa.
Nisto, eu, que não esperava tal ganho, cheio de prazer tomei meus
ducados resplandecentes, e como atônito, passando-os de uma mão a outra,
disse:
-Antes, senhora, tem-me que ter como um de seus servidores, e quando
de mim queira se servir, com confiança o pode mandar.
Ainda não havia eu acabado de falar isto, quando saem atrás de mim
todos os moços da casa com armas e paus: um dava-me murros na cara;
outros, pancadas nas costas; outros rompiando-me os flancos à coices,
puxavam-me os cabelos, rasgavam-me as vestimentas: até que eu fui
maltratado e despedaçado da maneira que foi aquele mancebo Adônis; assim
lançaram-me da casa e fui a uma praça perto dali. E tomando algum descanso,
recordei-me que merecia, era digno daqueles açoites e muito mais pela
descortesia de meu falar. Nisto, eis aqui que aparece o morto já chorado e
lamentado, o qual, segundo o costume daquela terra, especialmente, sendo
um dos principais, levavam-no publicamente pelo lugar com grande pompa de
seu enterro. Como ali chegaram, veio um velho com muita ânsia e pena,
chorando e tirando seus cabelos brancos com ambas as mãos agarrou-se à
tumba, dando grandes vozes entre soluços e choros, dizendo:
-Pela fé que mantêm, oh, cidadãos! Pela piedade da república, que
socorram ao triste morto; vinguem com muita atenção e severidade tão grande
Primeiro livro49
traição e maldade contra esta nefanda e má mulher: porque esta, e não outro
alguém, matou com ervas a este mesquinho mancebo, filho de minha irmã,
para agradar a seu adúltero e para lhe roubar sua fazenda.
Desta maneira aquele velho chorava, queixando a todos. Quando o vulgo
ouviu aquelas palavras, indignaram-se contra a mulher, por ser o fato
verossímil e acreditável o crime; começam a dar vozes: que tragam fogo para
queimá-la; outros pedem pedras e que a entreguem aos moços, que a
apedrejem. Ela, com palavras bem compostas e antes pensadas, para
desculpar-se jurava quanto podia por todos os deuses e negava tão grande
traição. O velho disse então:
-Porque assim é, ponhamos o arbítrio desta verdade na divina
Providência para que o descubra. Aqui está presente Zaclas, egípcio, principal
profeta, o qual se comprometeu comigo por certo preço a fazer sair dos
infernos o espírito deste defunto e animar este corpo depois da passagem da
morte.
E como isto o velho disse, chamou ali em meio de todos a um mancebo
vestido de tecido branco; calçadas umas alpargatas e a cabeça quase raspada,
ao qual beijava a mão muitas vezes, fincando-se de joelhos diante dele e
dizendo:
-Oh, sacerdote! Tenha piedade de mim, pelas estrelas do céu e pelos
deuses da terra; pelos elementos da Natureza; pelo silêncio da noite; pelo
crescimento do Nilo; pela munição e reparo feito pelas andorinhas ao
crescimento deste rio perto do castelo Copto, e pelos segredos de Mênfis, e
pela tromba da deusa Isis, que deseja este meu sobrinho viver brevemente, e
aos olhos que já são para sempre fechados dê-lhes um pouco de luz; não lhe
Primeiro livro50
rogo eu isto para negar à terra o que é dele; mas para distração de nossa
vingança, peço-lhe um pouco espaço de vida. O profeta, desta maneira
aplacado, tomou uma certa erva e dela pôs três ramos na boca do morto e
outro no peito; voltado para Oriente, onde é o nascimento do Sol, começou a
rezar consigo, e com aquele aparelho venerável converteu a si a todos os que
ali estavam por ver um tão grande milagre. Eu meti-me em meio da gente e
atrás do túmulo, subi em cima de uma pedra que estava um pouco alta, de
onde com muita diligência olhava tudo o que ali passava. Começou o morto
pouco a pouco a viver: já o peito elevava, já as veias palpitavam, já o corpo,
que estava cheio de espírito, levantou-se e começou a falar, dizendo:
-Por que agora me fizeram voltar a viver um momento de vida, depois de
beber do rio Leteo e haver já nadado pelo lago Estige? Deixe-me, por Deus,
deixe-me, e permite que esteja em meu repouso.
Como esta voz foi ouvida do corpo, o profeta se zangou algum tanto e
disse-lhe:
-Por que não manifesta ao povo todas as coisas e declara os segredos de
sua morte? Não sabe você que com meus encantamentos posso chamar as
fúrias infernais que lhe atormentem os membros cansados?
Então o defunto levantou-se no leito onde ia, e dali começou a falar com
o povo desta maneira:
-Eu fui morto pelas artes de minha nova mulher, mate-me com veneno
que me deu de beber, pelo qual muito disposto e arrebatadamente deixei
minha cama e casa ao adúltero.
Então a boa mulher tirou das palavras audácia, e com ânimo sacrílego
brigava com o marido resistindo à seus argumentos. O povo, quando isto
Primeiro livro51
ouviu, alterou-se em diversas opiniões; uns diziam que aquela péssima mulher
viva deviam enterrar com o corpo do marido; outros, que não era de dar fé à
mentira do corpo morto; mas, estas alterações atalhou a fala do defunto, o
qual, dando um grande gemido, disse:
-Eu dar-lhes-ei muito clara razão da inviolável e inteira verdade,
manifestarei o que nenhum outro sabe.
Então, demonstrando-me com o dedo, prosseguiu, dizendo:
-Porque a este muito sagaz e ardiloso guardador de meu corpo, que me
velava muito bem e com grandiosa diligência, as velhas encantadoras, que
desejavam me cortar os narizes e orelhas, pela qual, muitas vezes,
transformam-se em outras figuras, não podendo enganar sua intenção e boa
guarda, jogaram-lhe um grande sono, e estando ele como enterrado neste
profundo sonho, as feiticeiras começaram a chamar meu nome; como meus
membros estavam frios e sem calor, não podendo assim disposto, esforçar-se
para o serviço da arte mágica; mas ele, como estava vivo, embora com o
sonho quase morto, chamavam como eu, pelo seu nome, sem saber que o
chamavam; de maneira que ele, de sua própria vontade, andando em forma de
alma de morto, embora as portas da câmara estavam com diligências
fechadas, por um buraco, cortados primeiro o nariz, depois as orelhas, recebeu
por mim o destroço e carniça que em mim estavam.
E porque engano não parecesse, pregando-lhe ali, com muita destreza,
cera formada a maneira de orelhas cortadas, e outro nariz semelhante à sua;
agora está aqui o mesquinho, contente, que alcançou e foi pago do salário, que
ganhou não por sua intenção e trabalho, mas sim, pela perda e lesão de seus
narizes e orelhas.
Como isto disse, eu, espantado, logo coloquei a mão no nariz e trouxe-o
Primeiro livro52
às mãos; agarrei as orelhas e caíram. Quando viram isto os que estavam ao
redor começaram todos apontar-me com os dedos, fazendo gesto com as
cabeças. De tanto que eles riam, eu, caindo à seus pés como melhor pude,
escapei-me dali, nunca depois voltei para minha terra, por estar assim aleijado,
para que burlassem de mim. Assim, que com os cabelos de um lado e de outro
encubro a falta das orelhas. E com este lenço que trago posto na cara, a
fealdade e lesão dos narizes.
Quando Theleforon acabou de contar sua história, os que estavam à
mesa, já alegres do vinho, começaram outra vez a dar grandes gargalhadas; e
enquanto bebiam o de costume, disse-me Birrena desta maneira:
-Amanhã, faz-se nesta cidade, desde que se fundou, uma festa muito
solene, a qual só nós e não em outra parte festejamos com muito prazer e
gritos de alegria ao muito santo deus da risada. Esta festa será mais alegre e
graciosa por sua presença; rogo a Deus que de suas graças alguma coisa
alegre inventasse com que sacrifiquemos e honremos a tão grande deus como
este.
Eu então lhe disse:
-Muito bem, senhora; faremos como manda, e por Deus que queria achar
alguma matéria com que este grande deus fosse honrado.
Depois de dito isto, meu criado disse-me que era já tarde; como também
eu estava alegre, levantei-me logo depois da mesa; pedi licença à Birrena,
titubeando os passos, fui para casa, e chegando à primeira praça um ar
robusto apagou-nos a tocha que nos guiava; de maneira que, segundo a
escuridão da noite, tropeçando nas pedras, com muita fadiga, chegamos à
estalagem. Quando chegamos junto à porta, eu vi três homens, valentes de
Primeiro livro53
corpo e forças, que batiam na porta da casa. Embora nos vissem, não se
espantaram, nem afastavam sequer um pouco; antes, muito mais e mais
jogavam suas forças, freqüentemente, instando quebrar as portas; de maneira
que não sem causa me pareceram ladrões e muito cruéis. Quando isto vi,
peguei na mão minha espada, que para coisas semelhantes eu trazia comigo, e
sem mais tardança saltei em meio deles; como a cada um lutava com as
portas, dei-lhes de estocadas, tanto que diante meus pés, com grandes feridas
que os daria, caíram mortos. Andando nesta batalha, o ruído despertou Fotis e
abriu-me as portas; eu, fatigado e cheio de suor, entrei em casa, e como
estava cansado de brigar com três ladrões, como Hércules quando matou ao
Gerion, deitei e logo dormi.
Primeiro livro54
Terceiro livro
ARGUMENTO
Logo que era dia, a justiça, com seus ministros e homens a pé, vieram à
estalagem de Apuleio e como a um homicida o levaram preso ante os juízes. E
conta do grande povo e gente que se juntou a vê-lo. E de como o promotor lhe
acusou como a homem matador, como ele defendia sua inocência por
argumentos de grande orador; como veio uma velha que parecia ser mãe
daqueles mortos, aos quais, por mandato dos juízes, Apuleio descobriu por que
brincadeira parecesse. Onde se levantou tão grande risada, entre todos, que foi
com isto celebrada com grande prazer a festa do deus da risada. Fotis, sua
amiga, descobriu-lhe a causa dos odres.
Acrescenta logo como ele viu a mulher de Milón lubrificar-se com
ungüento mágico e transfigurar-se em ave; do qual tomou tão grande desejo,
que por engano da bolsa do ungüento, por tornar-se ave transfigurou-se em
asno. Enfim, diz o roubo da casa de Milón, de onde, feito asno, levaram-no os
ladrões, carregado com as outras bestas, com as riquezas de Milón.
Primeiro livro55
CAPÍTULO I
Como Lucio Apuleio foi detido por homicida e levado a teatro público
para ser julgado acima de tudo pelo povo, e como o promotor fiscal lhe pôs a
acusação para celebrar a festa solene do deus da risada. E como Apuleio
responde à ela, para defender sua inocência.
No outro dia, de amanhã, saindo o Sol, eu despertei e comecei a pensar
na façanha que me acontecera na noite anterior; torcendo as mãos e pés;
estirando os dedos, pondo as mãos sobre os joelhos; sentado de cócoras na
cama, chorava muito receoso, pensando em mim; tendo ante os olhos a casa
da justiça, os juízes e a sentença que contra mim se tinha que dar e o verdugo
que me tinha que degolar, e dizia comigo:
«Que juiz posso eu achar tão manso e benigno que me dê por inocente e
não culpado, estando ensangüentado e lubrificado com sangue da morte de
tantos homens cidadãos? Esta é aquela prosperidade de meu caminho que o
sábio Diófanes com muita veemência me dizia?» Isto e outras coisas
semelhantes dizendo e replicando comigo, chorava e amaldiçoava minha
ventura. Estando nisto, ouvi abrir as portas; com grandes clamores e ruído
entrar os prefeitos e oficiais com muita companhia e gente de pé, que
encheram toda a casa; logo dois porteiros de clava, por mandato dos prefeitos
jogaram-me a mão para me levar a força, como queiram que eu não resistisse;
quando chegamos à primeira ruela, toda a cidade estava por ali nos
esperando, e com muita freqüência nos seguiu. E como eu levava os olhos em
terra e até nos abismos, lançados com muita tristeza, torci um pouco a cabeça
a um lado e vi uma casa de grande maravilha: que enquanto isso, do povo
como ali estava, ninguém que não se rompesse as vísceras de risada;
Primeiro livro56
finalmente, levando-me pelas ruas públicas da maneira que purgam a cidade
quando há alguns maus sinais ou agouros, que trazem a vítima ou animal que
têm que sacrificar pelas ruas e rincões das praças, assim, depois de trazer-me
por cada rincão da praça, puseram-me diante da cadeira dos juízes, que era
um cadafalso muito alto, onde estavam sentados. Já o pregoeiro da cidade
pregoava que todos calassem e fizessem silêncio, quando todos a uma só voz
dizendo que pela multidão de gente, que perigava pela grande estreiteza e
aperto do lugar, e que este julgamento fosse se julgar ao teatro. E logo, sem
mais tardança, todo o povo correu ao teatro, que em muito pouco tempo
encheu de gente, de maneira que as entradas e os telhados todos estavam
cheios: uns estavam abraçados às colunas; outros, pendurados nas estátuas;
outros, às janelas e terraços, meio aparecidos, tanto, era a vontade que tinham
de ver, ficavam a perigo de sua saúde. Então levaram-me para o meio do
teatro os homens em pé da justiça, como a uma vítima que querem sacrificar,
e puseram-me diante do assentamento dos juízes. O pregoeiro, em grande voz,
começou outra vez pregoar, chamando o acusador, o qual, chamado, levantouse
um velho para me acusar, e para o espaço ou término de sua acusação ou
fala puseram ali um relógio de água, que é um copo sutilmente perfurado, a
maneira de coador, e jogando água naquele, gotejou pouco a pouco.
Encharcando-lhe de água, começou o velho a falar com povo desta maneira:
-«Cidadãos, nobres e honrados: não pensem que se tratam aqui coisas de
muito pouca substância, principalmente, que toca à paz e prol comum de toda
a cidade e ao bom exemplo para proveito do futuro. Assim mais convém a
todos e a cada um, segundo a dignidade de seu cargo, prover que um homicida
malvado como este não cometeu sem pena morte tão cruel e carniça de tantos
homens. E não pensem que por ter eu inimizade privada contra este, diga isto
Primeiro livro57
por ódio próprio que o tenha. Porque eu sou capitão do guarda da noite, e
acredito que nenhum há, de todos quantos velam de noite até hoje, que com
razão possa culpar minha diligência; eu direi com muita verdade a coisa como
passou.
Andando eu ontem à noite, quando às três horas da noite, com muita
diligência, cercando e rondando a cidade de porta em porta, vejo este cruel
homem com uma espada na mão matando a quantos podia; já tinha entre seus
pés três mortos, que ainda respiravam, envoltos em muito sangue; ele, como
sentiu e viu o tão maior mal a traição que fizera, fugiu logo; como estava muito
escuro, entrou em uma casa, onde toda a noite se escondeu. Mas, a
providência dos deuses, que não permite aos malfeitores ficar sem pena
alguma, proviu que este, antes que escondido fugisse, prendesse-o esta
amanhã e apresentasse-o ante a autoridade sagrada de seu julgamento; de
maneira que aqui têm a este culpado de tantas mortes; culpado que pego no
delito; culpado que é homem estrangeiro. Assim, com muita perseverança e
severidade, pronunciem a sentença contra homem estranho daquele crime e
delito que contra um seu cidadão pronunciara.»
Desta maneira falando, aquele robusto acusador, enfim, acabou sua cruel
razão; logo o pregoeiro disse-me se queria responder alguma coisa ao que
àquele dizia, que começasse. Mas eu, em todo aquele tempo, nenhuma outra
coisa podia fazer a não ser chorar, e nem tanto por ouvir aquela cruel
acusação, quanto por saber e ser certo que estava culpado daquele delito.
Contudo, Deus me deu um pouco de ousadia, com que respondi desta maneira:
-Não ignoro eu, senhores, quão robusta e árdua coisa seja, estando
mortos três cidadãos, que aquele que é acusado de sua morte, embora diga
Primeiro livro58
verdade, espontaneamente, e de sua vontade confesse o fato, persuada a
tanta multidão de povo ser inocente e estar sem culpa; mas se sua
humanidade me quer dar um pouco de audiência pública, facilmente mostrarei
este perigo de minha cabeça em que agora estou, não por minha culpa e
merecimento, mas sim por caso fortuito e com muita razão que tive, o padeço
e sustento. Porque vindo do jantar ontem à noite um pouco tarde; tendo bebido
muito bem, o qual, como crime verdadeiro, não deixarei de confessar;
chegando ante as portas de minha estalagem, que é em casa de Milón, seu
cidadão honrado, vejo uns cruéis ladrões que tentavam entrar em casa;
procuravam com toda diligência quebrar as portas e arrancá-las dos gonzos;
rompendo as fechaduras as quais fechavam; deliberando e determinando já
consigo como eles tinham que matar aos que dentro moravam; dos quais
ladrões o principal, assim em corpo como em forças, incitava aos outros com
estas e outras palavras: «Ea, mancebos, com esforços de muito valentes
homens e alegres corações, assaltemos a estes que dormem; afastem-se de
toda preguiça e tardança; com as espadas nas mãos saiam matando por toda a
casa; quem acharem dormindo, mate logo; quem se defender, ferir cauteloso,
assim iremos sã e salva sem deixarmos nenhum vivo em casa.» Eu, senhores,
confesso que, pensando fazer ofício de bom cidadão; também temendo não
fizessem mal ao hospedeiro e a mim, com minha espada, que para
semelhantes perigos trazia comigo, saltei sobre eles para espantá-los e fazêlos
fugir. Eles, como homens bárbaros e cruéis, não quiseram fugir, antes,
embora me vissem com a espada na mão, puseram-se, com grande audácia,
em grande resistência, até que a batalha se partiu em duas partes, e o capitão
ou alferes deles, com muita valentia, arremeteu comigo; com ambas as mãos
travando-me pelos cabelos, voltando-me a cabeça atrás, queria me dar com
Primeiro livro59
uma pedra; enquanto gritava pedindo a outro que lhe desse a pedra, dei-lhe
uma estocada, que logo caiu morto; a outro que me mordia os pés, dava-lhe
pelas costas; ao terceiro que com discrição veio contra mim, pelos peitos, e
assim despachei todos os três. Desta maneira, feita e sossegada a paz, a casa
de meu hospedeiro; a saúde de todos defendida e amparada, não pensava eu
que me dariam pena, mas sim era digno que publicamente louvassem-me:
porque até hoje não se achará que, em coisa alguma, eu tenha feito nem
cometido crime nem nunca disso fui acusado; antes, sempre fui cuidadoso e
tido em honra; em minha terra, entre os meus, sempre minha limpeza e
inocência antepôs a todo outro proveito e utilidade; nem posso achar que razão
haja para me acusar de tão justa vingança como foi a que fiz contra uns
ladrões tão malignos; principalmente, que ninguém poderá mostrar que entre
nós precedesse inimizade antes de agora, nem que os conhecesse, nem visse
em toda minha vida; quanto mais, que não se poderia mostrar alguma coisa
para lhes roubar, por cobiça da qual se crê ter cometido tão grande crime.
Tendo falado desta maneira, os olhos cheios de lágrimas, as mãos
elevadas, rogando, ora à estes, ora àqueles, suplicava por pública misericórdia,
pela caridade e amor de seus filhos. E como eu acreditasse que já todos, por
sua humanidade comoveram-se, vendo manchas de minhas lágrimas, comecei
a protestar e trazer por testemunhas aos olhos do Sol e da justiça, a quem
nada se pode esconder; encomendando meu caso presente à providência dos
deuses, elevei um pouco a cabeça e vejo todo o povo que queria arrebentar de
risada, e não menos a meu bom hospedeiro e pai Milón, que se desfazia rindo.
Então, quando eu isto vi, comecei a dizer comigo:
-Olhem que fé, olhem que consciência! Eu, pela saúde de meu
hospedeiro, sou homicida e me acusam por matador; e ele, não contente que
Primeiro livro60
até sequer por me consolar não está perto de mim, antes está rindo de minha
sorte.
Primeiro livro61
CAPÍTULO II
Como estando Apuleio pronto para receber sentença, veio ao teatro uma
mulher velha chorando, a qual, com grande instância, acusa de novo à Lucio,
dizendo matar à seus três filhos; e como, levantando o lençol com que
estavam cobertos os corpos, pareceu ser odres cheios de vento, o qual moveu
todos a grande risada e prazer.
Estando nisto, vem uma mulher pelo meio do teatro, chorando com
muitas lágrimas, coberta de luto e com um menino nos braços; depois dela
vinha uma velha vestida de jargão e chorando como a outra, e ambas vinham
sacudindo uns ramos de oliva. As quais, postas em volta do leito onde os
mortos estavam cobertos com um lençol, elevados grandes gritos e vozes,
chorando receoso, dizia:
-Oh senhores! Pela misericórdia que devem à todos, também pelo bem
comum de sua humanidade, haja misericórdia e piedade destes mancebos
mortos sem nenhuma razão; também de nossa viuvez e solidão; por nossa
consolação nos dêem vingança socorrendo com justiça as desventuras deste
menino órfão antes do tempo; sacrifiquem a paz e quietude da república com o
sangue deste ladrão, segundo suas leis e direitos.
Depois disto, levantou-se um dos juízes, o mais antigo, e começou a falar
com povo desta maneira:
-Sobre este crime e delito, que seriamente se deve punir e vingar, o
mesmo que o cometeu não o pode negar; mas uma só causa e solicitude
subtrai-nos: que saibamos quem foram os companheiros de tão grande
façanha, porque não é coisa verossímil que um homem só matasse a três tão
valentes mancebos. Portanto, parece-me que a verdade se deve saber por
Primeiro livro62
questão de tortura; porque quem lhe acompanhava fugiu, e a coisa vem a tal
estado, que por tortura manifeste e declare os que foram com ele fazer este
crime, porque de raiz se tire o medo de facção tão cruel.
Não demorou muito que, à maneira da Grécia, logo trouxeram ali um
carro de fogo e todos outros gêneros de torturas. Acrescentando com isto que
mais me dobrasse a tristeza, porque ao menos não me deixavam morrer
inteiro, a não ser me despedaçar com torturas; mas, aquela velha, que com
seus prantos e choros turvava tudo, disse:
-Senhores: antes que ponham na forca este ladrão, matador de meus
tristes filhos, permitam-me que sejam descobertos seus corpos mortos, que
aqui estão; porque contemplada e vista sua idade e disposição, mais
justamente lhes indignem vingar este delito.
Ao que a velha disse concederam. E logo um dos juízes mandou-me que
com minha mão descobrisse quão mortos estavam no leito.
Eu, desculpando-me que não o queria fazer, porque parecia que com a
nova demonstração instaurava e renovava o delito passado, os porteiros
compeliram-me por força e contra minha vontade tive-o que fazer, tomaramme
a mão pondo-a sobre os mortos, para sua morte e destruição; finalmente,
que eu, constrangido de necessidade, obedecia a seu mandato, e embora
contra minha vontade, arrebatado o lençol, descobri os corpos. Oh, bons
deuses! Oh, que coisas vi! Oh, que monstro e coisa nova! Que repentina
mudança de minha fortuna! Como quer que já estava destinado e contado em
poder da Prosérpina, entre a família do inferno, subitamente, atônito e
espantado de ver o contrário que pensava, estive fixos os olhos em terra, que
não posso explicar com idôneas palavras a razão daquela nova imagem que vi.
Primeiro livro63
Porque os corpos daqueles três homens mortos eram três odres inchados, com
diversas navalhadas. Recordando-me da questão da noite anterior, estavam
abertos e feridos pelos lugares que eu daria aos ladrões. Então a atenção de
alguns detiveram um pouco a risada, e logo começou o povo a rir tanto, que
uns, com a grande alegria, davam vozes; outros colocavam as mãos nas
barrigas, que lhes doíam de risada; todos, cheios de prazer e alegria, olhando
para trás partiram do teatro. Eu logo que tomei aquele lençol e vi os odres,
gelei-me e tornei-me como uma pedra, nem mais nem menos, que uma das
outras estátuas ou colunas que estavam no teatro; não retornei em mim até
que meu hospedeiro Milón chegou e deu-me a mão para me levar; renovadas
outra vez as lágrimas e soluçando muitas vezes, embora não quisesse,
mansamente, levou-me consigo; pelas ruelas mais sós e sem gente, por uns
rodeios, levou-me até sua casa; consolando-me com muitas palavras, que
ainda o medo e a tristeza não me saíram do corpo. Com tudo isto, nunca pôde
amansar a indignação de minha injúria, que muito arraigada estava em meu
coração. Nisto estando, eis aqui que vêm logo os senadores, juízes, com seus
bedéis adiante, entrando em nossa casa, com estas palavras começam adularme:
-Não ignoramos sua dignidade e a nobre linhagem de onde vem, senhor
Lucio, porque a nobreza de sua famosa e honrada geração tem compreendido
e abraçado toda esta província. E isto porque você agora tão receoso queixase,
não o recebeu por fazer injúria; por isso, separa-se de seu coração toda
tristeza e fadiga, porque estes jogos, que pública e solenemente celebramos
em cada ano ao muito grato deus da risada, florescem sempre com invenção
de alguma novidade; este deus acompanha e tem encomendado com muito
amor ao inventor de tais prazeres, e nunca consentirá que tenha pena nem
Primeiro livro64
irritação em seu ânimo, antes, com sua aprazível formosura, alegrará sempre
sua cara. Além disto, toda esta cidade oferece-lhe assinaladas honras, porque
já se assentou em seus livros por seu patrão e deliberou para fazer sua
imagem de bronze, que esteja aqui perpetuamente por esta graça que lhes
fizeram.
Nisto que me diziam eu respondi nesta maneira:
-A si, cidade única e mais nobre da Tessália tenho em singular graça tal e
tão grande quanto merece os benefícios que de sua própria vontade me
devotara, mas imagens e estátuas deixe-as aos mais honrados e maiores que
eu sou.
Desta maneira, falando com alguma vergonha, mostrando um pouco a
cara alegre, sorrindo e fingindo-me alegre, quanto mais podia, falei-lhes e
partiram-se de mim.
Primeiro livro65
CAPÍTULO III
Como acabada a festa do deus da risada, Birrena enviou ao Lucio a que
fosse jantar, e por estar afrontado não o aceitou; como depois de jantar com
Milón, seu hospedeiro, foi dormir, onde, vinha sua Fotis, descobriu como sua
ama, Panfilia, era grande feiticeira; por sua ocasião fora afrontado na festa da
risada. E como Lucio lhe importunou que queria mostrar, quando obrasse os
feitiços que desejava muito ver.
Nisto, eis aqui um criado da Birrena que entrou depressa e disse-me:
-Rogo-lhe sua mãe, Birrena, que vá comer com ela, como ontem à noite o
prometeu, que já é hora.
Eu, como estava amedrontado e aborrecido também em sua casa como
em outras, disse:
-Oh, senhora mãe! Quanto queria obedecer seus mandamentos, se
guardando minha fé o pudesse fazer, porque meu hospedeiro Milón, tomou
juramento pela festa presente deste deus da risada que comesse hoje com ele,
e assim estou comprometido, que não me convém fazer outra coisa, nem ele
se separará disto, nem consentirá que eu fique além dele; portanto, deixemos
para adiante a promessa do convite.
Estando eu falando disto, veio Milón e tomou-me pela mão para que
fôssemos banhar em uns banhos que ali estavam perto. Eu ia pela rua,
escondendo-me dos olhos de quem encontrávamos, fugindo da risada que eu
mesmo fabricara, metido e encoberto a seu lado; assim nem quando me lavei
nem me limpei, nem quando voltei à casa, com a grande vergonha não me
recordo, mas notado e famoso com os olhos, gestos e mãos de todos, que
quase sem alma estava pasmo. Finalmente, que tendo comido a pobre ceia de
Primeiro livro66
Milón e colocado um pano na cabeça, pela grande dor que nela tinha, por
causa das muitas lágrimas que me saíram; tendo, facilmente, licença, entrei
para dormir; jogado em minha cama, com muita tristeza, recordava-me de
todas as coisas, como passaram, até que veio minha Fotis, que já sua senhora
fora dormir; a qual veio muito diferente de como ela era: a cara não alegre,
nem com fala graciosa, mas com muita tristeza e severidade, enrugada a
fronte e temerosa, que não ousava falar. Depois que começou a falar, disse:
-Eu mesma, de minha própria vontade, confesso, eu mesma digo que fui
causa desta irritação.
E dizendo isto, tirou um látego do seio, o qual me deu e disse:
-Toma este látego; rogo-lhe que desta mulher, quebrantadora de fé, tome
vingança, e até se lhe rogo, qualquer outro maior castigo que lhe parecer; mas
uma coisa lhe rogo, crê e pense, que não dei nem inventei esta irritação, de
minha vontade, sabendo: melhor o façam os deuses que por minha causa você
padeça a menor irritação; se alguma adversidade você tem que haver, logo,
que eu pague com meu próprio sangue. Mas, o que por causa de outro a mim
mandaram que fizesse, por minha desdita e má sorte se tornou e caiu em sua
injúria.
Então eu, incitado de uma familiar curiosidade, desejando saber a causa
encoberta do fato passado, começo a dizer:
-Este látego, mau e falso, que me deu para que se açoitasse, antes
morrerá e o farei pedaços que tocar com ele em sua branda e formosa carne.
Mas, rogo-lhe que com verdade me diga e conte de que maneira este seu erro
se converteu em meu dano; que por sua vida, que a quero como a minha, a
nenhum poderia acreditar, nem a si mesma, embora o diga, que coisa alguma
Primeiro livro67
pensasse contra mim em meu dano; mas os pensamentos sem malícia, se em
contrário conto acontecerem, não são de culpar nem jogá-los a má parte.
Com o fim destas razões eu beijava os olhos de minha Fotis, que os tinha
úmidos de lágrimas, meio fechados e murchos. Ela, com esta alegria recreada,
disse-me:
-Senhor, rogo-lhe que espere; fecharei a porta da câmara para que não
haja algum escândalo das palavras que com nosso prazer falaremos.
E dizendo isto, bateu à porta, com seu trinco bem firmado, e voltada a
mim, abraçando-me com ambas as mãos, disse-me com voz muito sutil e
baixa:
-Grande temor e medo tenho de descobrir os segredos desta casa;
revelar as coisas ocultas e encobertas de minha senhora; mas, confiando em
você discrição, que demais da nobreza de sua generosa linhagem e de seu alto
engenho, cheio e consagrado de religião, estou certa que conhece a Santa fé
do silêncio, de tal maneira, que algo que eu submeter ao claustro de seu
religioso peito, rogo e suplico sempre a tenha e guarde; o que simples e
arrebatadamente lhe digo, faz do remunerar com a tenacidade de seu silêncio:
porque a força do amor que, mais que nenhuma de quantas vivem, tenho-lhe,
compele-me a descobrir este segredo. Já sabe todo o estado de nossa casa;
também saberá os segredos maravilhosos de minha senhora, pelos quais lhe
obedecem os mortos; as estrelas se turvam; os deuses são apressados; os
elementos lhe servem; em coisa alguma tanto esforça a violência desta sua
arte como quando for a algum mancebo gentil-homem que lhe agrada: o qual
costuma acontecer freqüentemente, que até agora está morta de amores por
um mancebo formoso e de boa disposição, contra o qual exerce e arranja todas
Primeiro livro68
as suas artes, mãos e artilharia. Ouvi dizer ontem, às vésperas, por estes
mesmos ouvidos, ameaçando ao Sol, que se disposto não ficasse e desse lugar
a que a noite viesse para exercer as cautelas de sua arte mágica; que o faria
cobrir de uma névoa obscura e que perpetuamente, obscurecesse. Este moço
que digo, vindo lá anteontem do banho, viu sentado em casa de um barbeiro;
como viu que o barbeavam, mandou-me que, secretamente, tirasse dos
cabelos que lhe cortaram e estavam no chão caídos; os quais, quando eu
comecei a furtar, o barbeiro me viu, e como nós somos infamadas de
feitiçarias, arrebatou-me brigando e desonrando-me, dizendo:
«Você, má mulher, não cessa cada dia de furtar os cabelos dos mancebos
bem dispostos que aqui se barbeiam; por Deus, se desta maldade não se
afasta, que sem mais tardança o digo aos prefeitos e ponho-lhe diante deles.»
Dizendo e fazendo, lançou a mão em meio de meus peitos com grande
ira, e procurando tirou os cabelos que já eu tinha ali escondidos. Do qual eu fui,
muito zangada. E conhecendo os costumes de minha senhora, que com tais
resistências ela costumava zangar-se muito e dar-me de paus, acertei ir e não
voltar à casa, o qual não fiz por sua causa; mas, como eu partisse dali triste,
para não retornar de mãos vazias, vejo um odre com umas tesouras tosquiando
três odres de bode, os quais, como visse-os pendurados, torcidos e muito
inchados, tomei alguns dos cabelos que estavam pelo chão, e como eram
vermelhos semelhantes aos cabelos daquele gentil-homem de quem minha
ama se apaixonara: a qual os dava, dissimulando a verdade. Minha senhora
Panfilia, no princípio da noite, antes que você voltasse do jantar, com a pena e
ânsia que tinha em seu coração, subiu ao terraço de casa que estava aberta às
partes orientais e às outras para onde queria olhar, na qual ela secretamente
mora e freqüenta, porque é equipada para suas artes mágicas. E ante todas
Primeiro livro69
coisas, segundo seu costume, preparou seus instrumentos mortíferos, convém
saber: toda linhagem de especiarias odoríferas, lâminas de cobre com certos
caracteres, que não se podem ler, pregos e pranchas de navios, que se
perderam no mar e foram chorados. Deste modo tinha ali diante de si muitos
membros e pedaços de corpos mortos, assim como narizes, dedos e pregos
com carne de homens mortos no patíbulo. Também tinha sangue de mortos a
ferro, ossos de cabeça e queixadas sem dentes de bestas feras. Então abriu um
coração, e vistas as veias e fibras como buliam, começou a orvalhá-lo com
diversos licores: ora com água de fonte, ora com leite de vaca, ora com mel
silvestre. Deste modo acrescentou mulsa, que é feita de mel e água fervida.
Desta maneira, aqueles cabelos retorcidos e atados com muitos aromas
perfumados pôs em meio das brasas para queimar. Então, com grande força e
poder da nigromancia; pela oculta violência dos espíritos apressados e
constrangidos; aqueles corpos, cujos cabelos rangiam no fogo, recebem
humano espírito, sentem, ouvem, andam, vão para a parte os que levavam o
ouro de seu mesmo despojo e chegavam à porta de casa, instando entrar,
como se fora aquele mancebo estúpido. Nisto, você, enganado com a
escuridão da noite e com o vinho que bebera, armado com sua espada na mão
e com grande ousadia, quase perdido o miolo, como aquele Ajax grego, não
matando ovelhas como ele destruiu e matou muitas, mas muito mais forte e
esforçadamente matou três odres inchados. De maneira que, vencidos os
inimigos sem haver mácula de sangue, abraçarei-o, não como mata-homens,
mas como mata-odres.
Sendo eu desta forma burlado e ludibriado com as graciosas palavras de
Fotis, disse-lhe:
Primeiro livro70
-Porque assim é, que me parece, senhora, que eu poderei muito bem
contar esta primeira glória de virtude, igualando-a ao exemplo dos doze
trabalhos de Hércules, que como ele matou ao Gerion, que era de três corpos,
ou ao Cérbero do inferno, de três cabeças, assim eu matei outros tantos odres.
Mas, pelo amor que lhe tenho e por que sem engano o remeta e perdoe todo o
delito em que com tanto trabalho e fadiga de meu coração lançou, rogo que
me diga o que com muita veemência demando: e é que ensine a sua senhora,
quando faz alguma coisa desta arte mágica, quando se muda em outra forma.
Porque eu sou muito desejoso de conhecer e ver por meus olhos alguma coisa
desta nigromancia, como quero que, bem sei eu certo que você não é arruda e
sem parte desta ciência, o qual eu sei e sinto muito bem, porque fui homem
que menosprezava amores e conversas de mulheres casadas; agora, com estes
seus olhos resplandecentes, rosto purpúreo, seus cabelos de ouro, sua boca
linda e peitos como o Sol reluzentes, vejo que me tem como um servo preso e
cativo, querendo eu, que nem cuido de minha mulher e filhos, nem penso em
minha casa, pois já esta noite nada prefiro nem antepor.
Então, Fotis, respondeu, dizendo:
-Quanto queria eu, senhor meu Lucio, ensinar o que desejas! Mas, minha
senhora, por sua inveja acostumada, sempre se aparta a sós e separada da
presença de todos acostumou a fazer os segredos de sua magia; mas por você
amor poria sua demanda a meu perigo; o qual eu farei com diligência,
guardando o tempo e lugar oportunos, com tal condição que, como lhe disse ao
princípio, você dê-me a fé de ter silêncio a tão grande segredo.
Desta maneira falando e burlando-se, incitou a vontade de cada um;
lançadas as camisas que tínhamos vestidas, voltamos à nossos prazeres, dos
Primeiro livro71
quais o do velar já fatigado me veio sono aos olhos e dormi até que outro dia
amanheceu.
Primeiro livro72
CAPÍTULO IV
Como condescendendo Fotis ao desejo e petição do Lucio, mostrou a sua
ama Panfilia quando se lubrificava para converter-se em mocho, e ele,
querendo-se lubrificar, para experimentar a arte, foi por erro da bolsa do
ungüento convertido em asno.
Desta maneira, passadas algumas noites de prazer, um dia veio para
mim correndo Fotis, medrosa e alterada; disse-me que vendo sua senhora
como, com todas as outras artes que fazia, não lhe aproveitava para seus
amores, deliberava aquela noite transformar-se em um ave com plumas e
assim voar a seu amigo desejado; por mais que eu me equipasse
cautelosamente para ver coisa tão grande e maravilhosa. Assim à primeira
noite tomei pela mão, com passos muito sutis, sem nenhum ruído, fui àquela
câmara alta onde a senhora estava; mostrou-me uma fenda da porta por onde
visse o que fazia. O qual Panfilia fez desta maneira: primeiro ela se despiu de
todas as suas vestimentas, abriu um cofrezinho pequeno tirou muitas bolsas,
das quais, tirada a coberta de uma e tirado dela certo ungüento esfregou bem
entre as palmas das mãos, ela se lubrificou das unhas dos pés até em cima dos
cabelos; e dizendo certas palavras consigo ao candelabro, começa a sacudir
todos seus membros, nos quais, assim tremendo, começam pouco a pouco a
sair plumas, e logo crescem as facas das asas; o nariz endureceu e encurvou;
as unhas também se encurvaram, assim que se tornou mocho: o qual começou
a cantar aquele triste canto que eles fazem; para experimentar começou a
elevar-se um pouco da terra, e logo um pouco mais alto, até que com as asas
agarrou vôo e saiu voando. Mas ela, quando o cedeu, com sua arte transformase
logo em sua primeira forma. Então, quando eu vi isto, embora não estava
Primeiro livro73
encantado e enfeitiçado, mas estava atônito e fora de mim ao ver tal façanha,
parecia-me que outra coisa era eu e que não era Lucio. Desta maneira, fora de
juízo, como louco, sonhava estando acordado, e por ver se velava, esfregava
os olhos fortemente. Finalmente, tornado em meu juízo, visto o presente como
passara, tomei pela mão à Fotis, e chegada ante meus olhos, disse-lhe:
-Rogo-lhe, senhora, porque se oferece ocasião para isso, que me deixe
gozar do fruto de seu singular amor e afeição que você, senhora, tem-me.
Unta-me com o ungüento da bolsa, por minha vida e por estes seus formosos
seios, minha doce senhora, prende a este seu servo perpetuamente, com
benefício que eu nunca a poderei servir. Já, senhora, faz agora, porque eu, com
plumas, como o deus Cupido, possa estar diante como minha deusa Vênus.
Ela disse:
-Assim o diz, amor falso e enganador; quer que eu mesma, por minha
própria vontade, ponha-me a tocha em minhas pernas, que as corte? Agora
que o tenho bem curado, que se guarde para as empregadas da Tessália?
Vejamos: você, feito ave, onde o procurarei? Quando o verei?
Então, eu respondi:
-Ah, senhora! Os deuses separem de mim tão grande maldade, e como
embora eu voasse por todo o céu, mais alto que uma águia, e me fizesse seu
Júpiter escudeiro e mensageiro, depois da dignidade e grandeza de minhas
plumas, não tornaria muitas vezes a meu ninho? Eu juro por este doce
trançado de seus cabelos, com o qual ligou meu coração, que a nenhuma deste
mundo quero mais que a minha Fotis. Mas, além disto, ocorre-me uma coisa ao
pensamento: depois que me lubrifique, transformando-me em ave, eu
prometo-lhe afastar-me de todas as casas, e também posso dizer: que
Primeiro livro74
apaixonado tão formoso e tão alegre é o mocho para que as casadas o
desejem? Antes há outra coisa pior que estas aves da noite? Quando passam
por alguma casa procuram agarrar, e vemos que cravam às portas para que o
mau agouro que com seu desventurado voar ameaçam aos moradores que as
paguem e se desfaça em sua tortura. Mas, o que me esquecia de perguntar:
Depois que uma vez me tornar ave, o que tenho de fazer ou dizer para me
despir aquelas plumas e me tornar Lucio?
Ela respondeu:
-Está de bom ânimo do que a isto pertence, porque minha senhora
mostrou-me tudo o que é mister para que os que tomam estas figuras possam
tornar-se a sua natural e primeira forma. E isto não pense que me mostrou isso
por me querer bem, mas sim, para quando ela retornasse, pudesse administrar
medicina saudável. E olhe com quão pouca coisa e quão leviana se remedeia
tão grande coisa: com um pouco de ervas e folhas de louro jogado em água de
fonte lava-se e bebe um pouco.
Estas e outras coisas dizendo, com muito temor lançou-me na câmara e
tirou uma bolsa do cofrezinho, a qual eu comecei a beijar e abraçar, rogando
que me favorecesse, voando prosperamente; assim rapidamente eu me despi,
lançando lá todas as minhas vestes; com muita ânsia pus a mão na bolsa e
tomei um bom tanto daquele ungüento, com o qual esfreguei todos os
membros de meu corpo. Já que eu com esforço sacudia os braços, pensando
transformar-me em ave semelhante, a que Panfilia se transformou, não me
nasceram plumas, nem as facas das asas, antes os cabelos de meu corpo se
tornaram sedas e minha pele magra se tornou couro duro; os dedos das partes
extremas de pés e mãos, perdido o número, juntaram-se e tornaram-se unhas;
Primeiro livro75
do fim de meu espinhaço saiu uma grande cauda; pois a cara grandiosa, o
focinho comprido, os narizes abertos, os lábios pendurando; já as orelhas,
elevando-se com uns ásperos cabelos, em todo este mal não vejo outra
distração, mas sim a mim, que já não podia ter amores com Fotis, crescia-me
minha natureza, assim, que considerando tanto mal, como tinha, vi, não
transformado em ave, a não ser em asno. Querendo queixar-me do que Fotis
fazia, já não podia, porque estava privado de gesto e voz de homem; o que
somente pude era que, cansados os lábios e os olhos afundados, olhando um
pouco de través à ela, discretamente, acusava-a e queixava-me; a qual,
quando assim me viu, esbofeteou sua cara, e arranhando-se chorava, dizendo:
-Mesquinha de mim, que sou morta; o medo e pressa que tinha me fez
errar, e a semelhança das bolsas me enganou; mas, bem está, que facilmente
teremos remédio para o reformar como antes. Porque somente mascando
umas poucas de rosas o despirá de asno e logo se tornará meu Lucio. E rogo a
Deus que, como outras vezes eu fiz, esta tarde equipasse-me de grinaldas de
rosas, porque somente não estivesse nessa pena espaço de uma noite; mas,
logo pela manhã dar-lhe-ei o remédio rapidamente.
Desta maneira ela chorava. Eu, como quer que parecia perfeito asno e
como Lucio era besta, entretanto, ainda retive o sentido de homem.
Finalmente, eu estava em grande pensamento e deliberação se mataria à
coices e bocados aquela maligna e falsa fêmea; mas este pensamento
temerário afastou-se e revogou outro melhor; porque se matasse Fotis, por
ventura também matasse e acabasse o remédio de minha saúde. Assim que,
baixada minha cabeça, murmurando comigo e dissimulada esta temporária
injúria; obedecendo a minha dura e adversa fortuna, fui ao estábulo, onde
estava meu bom cavalo que me trouxera, onde deste modo achei outro asno
Primeiro livro76
de meu hospedeiro Milón, que estava ali no estábulo. Então eu pensava comigo
que, se algum natural instinto ou conhecimento tivessem os brutos animais,
aquele meu cavalo teria alguma compaixão ou conhecimento, hospedar-me-ia
e daria o melhor lugar do estábulo. Mas, oh, Júpiter, hospedeiro! Oh, divindade
secreta da fé! Aquele gentil por mim cavalo e o outro asno juntaram as
cabeças como que faziam conjuração para me destruir, temendo que eu lhes
comesse a cevada: apenas me viram chegar ao cocho quando, baixadas as
orelhas, com muita fúria me deram patadas, de maneira que fizeram separarme
da cevada, que pouco antes eu jogara com estas mãos a meu fiel servidor
e criado. Desta maneira, eu maltratado e banido, apartei a um rincão do
estábulo.
Primeiro livro77
CAPÍTULO V
Que trata como estando Apuleio convertido em asno, considerando sua
dor, vieram subitamente ladrões a roubar a casa de Milón, e carregado o
cavalo e asno das jóias da casa, fugiram para sua cova.
Entretanto, estava comigo pensando a soberba de meus companheiros, a
ajuda e remédio das rosas, que outro dia tinha que haver, transformando-me
de novo Lucio, pensando a vingança que tinha que tirar de meu cavalo, olhei a
uma coluna sobre a qual se sustentavam as vigas e madeiras do estábulo, vejo
no meio da coluna uma imagem, que estava metida em um canto, da deusa
Épona, a qual estava adornada com rosas frescas.
Finalmente que, conhecido meu saudável remédio, esperançoso eleveime
quanto pude com os pés dianteiros e levantei-me esforçadamente,
estendido o cangote, alargando os lábios com quanta força eu podia, procurava
chegar às rosas. O qual eu, com má sorte procurando, um meu criado que
tinha do cavalo cuidado, como me viu, levantou-se com grande irritação e
disse:
-Até quando temos que sofrer este pônei castrado? Antes, queria comer a
cevada dos outros; agora, quer fazer mal e irritação às imagens dos deuses;
por certo que a este velhaco sacrílego eu quebro-lhe as patas e amanse-o.
E logo, procurando um pau, encontrou com um feixe de lenha que ali
estava, do qual tirou um lenho nodoso e mais grosso de quantos ali havia;
começou a me sacudir tantos paus, que não acabou até que soou um grande
ruído e golpes às portas da casa; com temeroso rumor da vizinhança, que dava
vozes: «Ladrões, ladrões!» Disto ele espantado fugiu. E sem mais demorar,
subitamente abertas as portas de casa, entra um montão de ladrões, os quais,
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armados, cercam a casa por toda parte, resistindo a os que deviam socorrer de
uma parte e de outra; porque eles vinham todos bem armados com suas
espadas, armas e com tochas nas mãos, que iluminavam a noite, de maneira
que o fogo e as armas resplandeciam como raios do Sol. Então chegaram a um
armazém que estava no meio da casa, bem fechado com fortes cadeados,
cheio de todas as riquezas de Milón, e com fortes tochas quebraram as portas:
o qual aberto, tiraram todas as riquezas que ali havia; muito rapidamente,
feitas as confusões de tudo isso, repartem-nos entre si. Mas, a muita carga
excedia o número de bestas que o tinham que levar. Então, eles, postos em
necessidade pela abundância da grande riqueza, tiraram do estábulo os asnos
e meu cavalo; carregaram-nos com quanto maiores cargas puderam, deixando
a casa vazia e colocada em saco pela mão, dando-nos varadas, levaram-nos; e
para que lhes avisasse da pesquisa que se fazia daquele delito, deixaram ali
um de seus companheiros. Dando-nos com muita pressa e varadas, levaramnos
fora de caminho por esses Montes; eu, com o grande peso de tantas coisas
como levava, com as costas daquelas serras e o caminho longo, quase não
havia diferença entre eu e um morto. Indo assim, vinha-me ao pensamento,
embora tarde, mas seriamente, recorrer à ajuda da justiça para que, invocando
o nome do imperador César, pudesse liberar-me de tanto trabalho.
Finalmente, como já fosse bem claro o dia, já que passávamos uma
aldeia bem cheia de gente, porque havia ali feira aquele dia, entre aqueles
gregos e gente que ali andavam quis invocar o nome de Augusto César em
linguagem grega, que eu sabia bem, por ser meu de nascimento. E comecei
valente e muito claro a dizer: «ho, ho»; tudo que restava do nome de César
nunca o pude pronunciar. Os ladrões, quando isto ouviram, zangados de meu
áspero e duro canto, sacudiram-me tantos paus, até que deixaram o triste de
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meu couro tal que até para fazer crivos não era bom. Ao fim, Deus me
proporcionou remédio não pensado, e foi este: que como passávamos por
muitos casarões e aldeias, vi uma horta muito formosa e deleitável, no qual,
além de outras muitas ervas, havia ali rosas incorruptas e frescas com o rocio
da manhã. Eu, quando as vi, com grande desejo e ânsia, esperando a saúde,
alegre e muito contente cheguei-me perto delas; já que movia os lábios para
comer, vinha-me à memória outro conselho muito mais saudável, acreditando
que se deixasse assim de improviso de ser asno e me tornasse homem,
rapidamente cairia em perigo de morte pelas mãos dos ladrões. Porque
suspeitariam que eu era necromântico, ou que os tinha que acusar do roubo.
Então, com necessidade, separei-me das rosas, e sofrendo minha desdita
presente, em figura de asno roía feno com os outros.
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Quarto livro
ARGUMENTO
Apuleio, tornado asno, conta eloqüentemente as fadigas e trabalhos que
padeceu em sua longa peregrinação, andando em forma de asno e retendo o
sentido de homem: entremete a seu tempo diversos casos dos ladrões.
Deste modo escreve de um ladrão que se meteu em um couro de urso
para certas festas que se tinham que fazer, e de intenção inserida uma fábula
de Psique, a qual está cheia de doutrina e deleite.
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CAPÍTULO I
No qual Lucio Apuleio conta por extenso que passaram os ladrões e
bestas da cidade de Hipata, pelo caminho, até chegar à cova de seu aposento,
seu próprio trabalho e acontecimentos.
Andando nosso caminho, seria quase meio-dia, que já o sol ardia,
chegamos a uma aldeia onde achamos certos amigos e familiares dos ladrões;
o qual eu, embora era asno, conheci, porque chegando falaram longamente,
abraçaram-se e beijaram-se como pessoas que muito se conheciam; também
porque tiraram algumas coisas do meio da carga que eu levava e deram-nas;
dizendo-lhes secretamente como eram coisas roubadas. Ali descarregaram-nos
de toda nossa carga e jogaram-nos em um prado que estava ali perto para que
a nosso bom prazer pastássemos; mas, a companhia de pastar com o outro
asno e com meu cavalo não pôde me ter ali, porque eu não me acostumara
comer feno; mas como eu estava perdido de fome, vi detrás da casa uma
pequena horta na qual me lancei. E de couves cruas, mas abundantemente, eu
enchi minha barriga. Andando na horta, eu olhava a todas partes, rogando aos
deuses se por ventura houvesse alguma roseira, ao qual me dava boa
confiança a solidão que por ali havia; estando eu fora de caminho e escondido,
em tomando o remédio que desejava transformar-me de asno de quatro pés
em homem, poderia fazer sem que ninguém me visse. Assim, andando neste
pensamento, vacilando, vejo um pouco mais longe um vale com árvores e
sombra, no qual, entre outras ervas verdes e formosas, resplandeciam rosas
tintas e muito frescas; já em meu pensamento, que de tudo não era de besta,
pensava que aquele lugar fosse da deusa Vênus e de suas ninfas, cujas flores e
rosas reluziam entre aqueles arvoredos e sombras. Então, invocando por mim o
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alegre e próspero evento, comecei a correr quanto pude, que por Deus, eu não
parecia ser asno, e sim um cavalo corredor e muito ligeiro; mas, aquele meu
ousado e bom esforço não pôde fugir da crueldade de minha fortuna. Já que
chegava perto daquele lugar, vejo que não eram aquelas rosas tenras e
amenas, orvalhadas de rocio e gotas divinas, quais revistam engendrar as
férteis sarças e espinhos, nem tampouco o vale era todo arvoredo, salvo a
ribeira de um rio, que estava cheio de árvores de uma parte e de outra, os
quais tinham a folha larga, a maneira de louros, e as flores, sem aroma, que
são umas rosinhas um pouco tintas, a que chamam os rústicos ou o vulgo rosas
de louro silvestre, cujo manjar mata a qualquer animal que o coma. Com tais
desditas, fatigado já e desesperado de meu remédio, queria de minha vontade
própria comer da peçonha daquelas rosas; mas, como com má vontade e
alguma tardança queria chegar a morder daquelas rosas, um mancebo, que me
pareceu devia ser o hortelão da horta onde eu destruíra e comira as couves,
como viu fazer-lhe tanto dano, arrebatou um grande pau, e com muita irritação
foi para mim, e deu tantos paus, que quase me pusesse em perigo de morte se
eu discretamente, não procurasse algum remédio; o qual foi que elevei minhas
ancas e os pés em alto e sacudi-o muito bem de coices; de maneira que ele,
bem castigado e cansado nesse chão, eu pus-me a fugir para uma serra alta
que estava ali junto; mas, logo uma mulher que parecia ser a mulher do
hortelão, como o viu de um monte alto, que estendido em terra e meio morto,
veio correndo à ele, dando gritos, porque tendo os outros dó dela, dessem para
mim má morte; os lavradores e vilãos ao redor, alvoroçados com os gritos e
choros da mulher, começam a chamar e acumular os cães contra mim, para
que, como raivosos, deviam despedaçar-me. Então, como eu me vi sem
nenhuma dúvida perto da morte, os cães que vinham contra mim, valentes e
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muitos, tão grandes que eram para brigar com ursos e leões, do mesmo perigo
me veio o conselho: deixei de fugir à serra e retornei à casa correndo quanto
mais podia, e lancei-me no estábulo de onde saíra.
Eles, que viram pacificados os cães, tomaram-me com um cabresto bem
robusto e ataram-me a uma argola, dando-me outra vez tantos paus, que certo
me matassem, senão fora que com a dor dos paus, como tinha a barriga tensa
e cheia de couves cruas, vinha-me fluxo e soltei uns gases, que uns,
orvalhados daquele extremo licor, e outros, do grande fedor que lhes deu,
separaram-se de minhas abertas costas. Não demorou muito, que já passava
do meio-dia que o Sol se inclinava, quando os ladrões tiraram eu e os outros do
estábulo; carregaram-nos de nossas cargas, embora jogaram para mim a mais
pesada. Já que andáramos boa parte do caminho, eu ia muito desfalecido com
o longo caminho e cansado com o peso da grande carga; fatigado com os
golpes das varadas que me davam, também ia coxo e titubeando, porque
levava os pés e mãos lascados.
Chegando perto de um arroio que corria mansamente, parecia-me achar,
com minha boa sorte, sutil ocasião para o que pensava: o qual era me
desancar pelas ancas e me jogar em terra muito certo e obstinado de não me
levantar para passar a água com nenhum paus que me dessem; e até
aparelhado não somente a sofrer com paus, mas embora me dessem com uma
espada, antes morrer que me levantar; porque eu pensava que já como coisa
débil e quase morto era merecedor de ser economizado; e também acreditava
certo que os ladrões, assim por não sofrer tardança como por fugir com muita
pressa, tirariam a carga de minhas costas e a repartiriam pelos outros dois
meus companheiros; para vingar-se melhor de mim, que me deixariam ali para
que me comessem os lobos e abutres.
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Mas, minha desventurada sorte perverteu tão belo conselho, porque o
outro asno, adivinhando e tomando meu pensamento, mentindo que ia
cansado, caiu com sua carga em terra. E cansado assim a maneira de morto,
nem com que o davam de paus, nem com aguilhões, nem por lhe elevar pela
cauda, nem pelas orelhas, nem que lhe elevavam as patas de uma parte a
outra, nunca provou a levantar-se; até que, finalmente, os ladrões, fatigados
com a última esperança, falando entre si, porque não estivessem tanto
servindo a um asno morto, mais na verdade se poderia dizer de pedra, e não
detivesse sua fuga, tiraram-lhe a carga, repartiram-na comigo e meu cavalo; à
ele, com suas espadas, cortando-lhe as patas; afastaram-lhe um pouco do
caminho, e meio vivo lançaram-no de uma altura abaixo em um vale muito
fundo.
Então, eu, pensando comigo a desdita do triste de meu companheiro,
acordei, separado-se de mim todas as fraudes e enganos, como bom asno
proveitoso servir à meus senhores. Quanto mais que, segundo o que eu lhes
ouvia falar, perto dali estava sua casa, onde tínhamos que descarregar e
repousar do fim de nosso caminho, porque ali era sua morada. Finalmente,
passada uma encosta não muito áspera, chegamos ao lugar aonde íamos. Em
chegando, logo nos descarregaram e colocaram com muita diligência;
colocaram o que trazíamos dentro da casa; eu, aliviado do peso da carga, para
me refrescar do cansaço do longo caminho, em lugar de banho, comecei a
derrubar o pó.
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CAPÍTULO II
No qual Lucio Apuleio descreve, elegantemente, aquela deleitosa
montanha onde os ladrões tinham sua cova; onde, chegaram, postas num
recanto as riquezas que levavam, e refrescados do trabalho, sentaram-se a
comer, e vinda outra companhia de ladrões da companhia, contam como
perderam dois seus capitães na cidade da Beócia.
Parece-me que, neste lugar, o tempo, a mesma coisa demanda, que
reconte o sítio e forma aquela estadia, cova onde os ladrões moravam, porque
nela eu experimentei meu engenho e fiz que sintam se por ventura, em meu
descrição e juízo, eu era alheio como parecia.
Era ali uma montanha bem alta, muito horrível e umbrosa de muitas
árvores silvestres; desta montanha desciam certas colinas cheias de muito
ásperos riscos e penhascos, que não havia pessoa que pudesse chegar à eles,
os quais a rodeavam; abaixo havia muitas e fundas lacunas naqueles vales,
cheias de espinhos e sarças que, naturalmente, fortaleciam aquele lugar; de
cima do monte descia um bebedouro muito formosa e claro, que parecia cor de
prata; corria por tantas partes, que enchia os vales que abaixo estavam, a
maneira de um mar ou de um grande rio ou lago caindo. Estava uma grande
torre à porta da cova, onde chegavam as pontas das colinas, com um muro
forte que era aparelhado para encerrar ovelhas, altas as paredes de uma parte
e de outra. Entre elas ia um pequeno caminho até a porta da cova. Qual
estadia, conforme eu bem conheci, não pode ser outra coisa, a não ser cova de
ladrões; perto dela nenhuma outra habitação havia, salvo um chalé feito de
canas, onde os ladrões, por sorte, conforme depois eu soube, velavam as
noites por atalaia. Assim, que nos descarregaram ante a porta, eles carregados
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do que nós trazíamos lançaram-se na cova, prenderam-nos com os cabrestos,
bem robustos, à porta; logo começaram a brigar com uma idosa encurva de
velha, a qual só tinha cargo de guarda e saúde de tantos mancebos, e
disseram-lhe:
-Oh, sepulcro da morte, desonra da vida, irritação do inferno! Assim, temnos
que a burlar estando sentada, não fazendo nada, que não nos dê alguma
distração e refeição por tantos, tão grandes perigos e trabalhos como
passamos? Que você, dias e noites, não entende outra coisa que lançar vinho
nesse seu ventre sedento, que nunca se farta.
A velha, com sua voz medrosa e tremendo, respondeu a este dizendo:
-Oh, senhores, valentes mancebos e meus defensores fiéis! Tudo está
disposto e aparelhado abundantemente: eu tenho guisado de comer muito
saboroso; muito pão e muito vinho posto em suas taças, jarros limpos e bem
esfregados; também tenho água fervida, como é costume, para que em
tumulto e juntos se lavem.
Em acabando a velha de dizer isto, eles se despiram logo, nus e lavados
com água quente, depois de recreados ao fogo, untaram-se com azeite. E
postas as mesas com seus manjares, sentaram-se para comer.
Assim, logo que se sentaram à mesa, eis que vêm outros mancebos mais
os que estavam; os quais vendo-os, quem quer visse, sabia eram ladrões como
os outros. Porque estes também traziam muitos copos, moedas de ouro e
prata; vestimentas, roupas de seda e brocado. Assim, pelo semelhante, lavados
e refrescados, sentaram-se para comer com seus companheiros; cada um de
todos eles, por sua sorte, levantava-se para servir aos outros; eles comiam e
bebiam sem ordem os manjares aos montões; o pão aos pedaços, o beber sem
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conta nem razão; burlavam uns com outros à vozes, cantavam com grande
ruído, jogavam entre si, motejando-se, e todas as outras coisas semelhantes ao
convite dos meios ferozes lapitas, tebanos e centauros. Então um mancebo
daqueles, que parecia mais valente que os outros, disse:
-Nós combatemos, esforçadamente, à casa de Milón de Hipata; demais
presas e grandes riquezas que por nosso esforço ganhamos; voltamos à nossa
casa todos sem que gente faltasse. E até, se fizer a propósito, digo que vamos
com oito pés mais acrescentados. Mas vocês, que andaram pelas cidades da
Beócia, onde perderam seu muito esforçado capitão Lamaco e diminuíram o
número de sua fraca e débil companhia? Certo eu quisesse mais sua saúde e
remédio que tudo que trouxeram nestas confusões e farnéis; mas de qualquer
maneira que sua virtude perecera, a memória e fama de tão grande varão
poderá ser celebrada entre os reis célebres e grandes capitães de batalhas.
Que falando verdade, vocês são ladrões homens de bem, medrosos, para
furtos pequenos e de escravos, andando pelos banhos e casinhas de velhas
esquadrinhando seus recantos.
Nisto começou a falar um daqueles que estava por fim de todos, e disse:
-Como você sozinho ignora que as casas maiores são mais fáceis de
roubar que as outras, porque, como quero que nas casas grandes há muitos
servidores, cada um cuida mais de sua saúde que da fazenda de seu senhor!
Mas os homens de bem, solitários e modestos, seus bens, poucos ou muitos,
dissimulados os encobrem e receoso os defendem; com perigo de seu sangue
e vida os fortalecem. O mesmo negócio que agora passou lhes fará acreditar o
que digo. Quase quando chegamos à Tebas, cidade de Beócia, que é principal
para o trato desta nossa arte, andando com diligência procurando o que
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tínhamos que roubar entre os populares, não se nos pôde esconder Criseros,
um cambiante muito rico e senhor de grande dinheiro, o qual, por medo dos
tributos e corajosos da cidade, com grandes artes, dissimulava e encobria
grande riqueza. Finalmente, que ele solitário em uma pequena casa, embora
bem fortalecida, contente, sujo e mal vestido, dormia sobre os tabletes de
ouro; assim, que todos de um voto acertamos que o primeiro ímpeto e
combate fosse nesta casa, porque, todos a uma, começada batalha, sem
dificuldade pudéssemos arrumar o dinheiro daquele cambiante rico. O qual,
posto em obra, ao princípio da noite fomos às portas de sua casa, as quais nem
pudemos levantar, nem mover, nem quebrar, porque, como eram fortes, o
ruído delas despertou toda a vizinhança em danífico nosso. Então, aquele
esforçado nosso capitão e alferes Lamaco, com a fiança de seu grande esforço
e valentia, colocou a mão, pouco a pouco, por aquele buraco que se mete a
chave para abrir a porta, e provava a arrancar o fecho ou fechadura. Mas,
aquele Criseros, malvado e maligno, mais que quaisquer homem do mundo
estava velando, e sentindo o que acontecia, veio para a porta muito pacífico,
que quase não respirava; trazia em sua mão um grande prego e martelo, com
o qual subitamente, com grande golpe e ímpeto, cravou a mão de nosso
capitão na tabela da porta; deixado ali cruelmente parecido, como quem o
deixa na forca, subiu em cima de um terraço de sua casinha; dali, com grandes
vozes, chamava os vizinhos, rogando-lhes por seus próprios nomes e
chamando-os que socorressem à saúde de todos, porque sua casa ardia em
vivas chamas. Quando os vizinhos ouviram isto, cada um, espantado do perigo
que podia vir à sua casa pela vizinhança da do cambiante, vinham correndo a
lhe socorrer. Então nós, postos em um de dois perigos, ou de matar a nosso
companheiro ou desampará-lo, acertamos um remédio terrível, querendo-o, e
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foi este: cortamos o braço do nosso capitão pela junta onde se junta com o
ombro; deixado ali o braço, atada a ferida com muitos panos, para que as
gotas de sangue não fizessem rastro por onde passássemos, arrebatamos
Lamaco e levamo-lo como pudemos; quando fugíamos, espantados daquele
tumulto; era-nos forçado fugir do instante perigo, ele nem nos podia seguir,
nem podia ficar seguro. Como era valente, corajoso, esforçado, rogamos
muitas vezes quanto ele podia, pela mão direita do deus Marte e pela fé do
juramento que entre nós havia, que liberássemos a um bom companheiro da
tortura que recebia, de ser cativo e preso. Dizendo deste modo quanto tinha
que viver um homem esforçado tendo o braço talhado, com o qual costumava
roubar e degolar; que ele se tinha por bem-aventurado se morresse à mãos de
seus companheiros. Assim, depois que ele viu que a nenhum de nós podia
persuadir, que de nossa vontade o matássemos, tomou com a outra mão uma
adaga que trazia, beijando-lhe muitas vezes, deu um grande golpe lançando a
adaga pelo peito. Então nós, elogiando o esforço de tão grande varão,
tomamos seu corpo, e envolto em um lençol joguemos dentro do mar para que
o escondesse; assim, ficou ali nosso capitão Lamaco, coberto daquele
elemento, o qual fez fim conforme à suas virtudes. Além disto, o outro nosso
companheiro Alcimo, que tinha muito bons e ardilosos começos no que tinha
que fazer, não pôde fugir a sentença da cruel Fortuna: o qual, depois de
quebradas as portas de casa de uma idosa que estava dormindo, subiu à
câmara onde dormia e podia muito bem afogá-la se quisesse; mas quis
primeiro lançar por uma janela à rua todas as coisas que tinha, para que nós as
recolhêssemos do lado de fora; já que tinha muitos arremessos bem a seu
prazer todas aquelas coisas, não quis perdoar a cama em que a velha dormia,
assim retirou-a de sua maca e tomou a manta de cima para jogá-la pela janela.
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A má da velha, quando isto viu, fincou-se de joelhos ante ele, dizendo:
-Oh meu filho!, Rogo-lhe que me diga por que estas coisas pobres e rotas
de uma velha mesquinha dá aos vizinhos ricos sobre cujas casas cai esta
janela.
Alcimo, ouvindo isto, foi enganado, acreditando que a velha dizia
verdade; temendo que as coisas que primeiro lançara, as quais depois jogasse,
já que estava avisado, por ventura não as jogasse à seus companheiros, a não
ser outras casas alheias, apareceu à janela, pendurando-se para ver muito bem
todas as coisas, especialmente da casa que estava junto, onde disse quão
velha cansara das coisas que jogara.
Quando a velha o viu, o corpo médio saído da janela; que estava atônito
olhando a uma parte e a outra, embora ela tinha pouca força, subitamente o
empurrou, que deu com ele dali abaixo. O qual, demais de cair da janela, que
era bem alta, deu em uma pedra grande que ali estava, onde se quebrou e
abriu todas as costelas, de maneira que saíram dele rios de sangue. Desde que
nos contaram tudo o que acontecera, não podendo sofrer tanta tortura, fez fim
de sua vida, ao qual demos sepultura no mar, como a outra, dando
companheiro ao Lamaco.
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CAPÍTULO III
No qual um daqueles ladrões, prosseguindo em seus contos, relata os
acontecimentos de Beócia à província de Tebas, em um lugar chamado
Pláteas, roubaram um varão chamado Democares, com uma graciosa intenção,
vestindo um dos companheiros de um couro de uma loba.
Então, com a perda destes dois companheiros, nós, tristes e com pena,
pareceu-nos que devíamos deixar de entender nas coisas daquela província de
Tebas; acertamos em vir a uma cidade que estava perto dali, de nome Pláteas,
na qual achamos grande fama de um homem que morava ali, chamado
Democares, o qual celebrava grandes festas ao povo, porque ele era principal
da cidade, homem muito rico e liberal; fazia estes prazeres e festas ao povo
para mostrar a magnificência de suas riquezas. Quem poderia agora explicar e
ter idôneas palavras para dizer tanta facúndia de engenho, tantas maneiras de
aparatos como tinha! Uns eram lutadores de esgrima, tornados famosos de
suas mãos; outros, caçadores muito ligeiros para correr; em outra parte havia
homens condenados a morte, que os engordava para que os comessem as
bestas bravas. Havia deste modo torre feitas de madeira, à maneira de umas
casas movediças, que se trazem de uma parte a outra, as quais eram muito
bem pintadas, para acolher-se a elas quando corriam touros ou outras bestas
no teatro. Além disto, quantas maneiras de bestas havia ali e quão feras e
valentes! Tanto era seu estudo de fazer magnificamente aqueles jogos, que
procuravam homens de linhagem que fossem condenados a morte, para que
eles brigassem com as bestas. Mas, sobretudo o aparelho que procurava para
estas festas principalmente, e com quanta força de dinheiro podia, procurava
ter número de maiores ousadias, as quais, além das que ele fazia caçar; além
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das que o poder do dinheiro comprava, outras que seus amigos o
apresentavam, tinha-as em casa bem guardadas e a ceva, para que
engordassem e se fizessem grandes. Mas este tão claro e magnífico arranjo de
prazer e festa popular não pôde fugir os olhos mortais da inveja. Porque com a
fatiga de estar muito tempo presas, com o grande calor do verão, também por
estar frouxas e preguiçosas, por não andar nem correr, deu tão grande
pestilência nelas, que quase nenhuma ficou; estavam por essas praças muitas
delas mortas, com tanto estrago, que parecia haver naufrágio de bestas.
Aqueles pobres do povo, aos quais a pobreza e necessidade constrange a
procurar algo para encher o ventre, sem escolher manjares, andavam tirando
da carne daqueles animais que por ali estavam para fartar-se. Quando eu e
este nosso companheiro Bardulo vimos aquilo, inventamos do mesmo negócio
um muito sutil conselho; estava ali um animal morto, maior que todos os
outras, o qual, dizendo que a queríamos para comer, levamos a nossa estadia.
E ali a esfolamos muito bem, guardando de não lhe tocar nas unhas, deixandolhe
a cabeça desde a nuca acima, tomamos o couro muito bem puído da isca, e
com cinza polvilhado por cima, colocamos a secar ao sol. De tanto que o couro
se secava ao sol e se purgava daquela umidade, demo-nos de bom tempo com
a carne e fizemos todos juramento, para o negócio presente, desta maneira:
que um de nós, o mais valente, não de corpo, mas de esforço e de sua própria
vontade, metesse-se dentro daquela pele e se fizesse urso, o qual levaríamos à
casa de Democares, para que de noite, quando todos dormissem, abrisse-nos
as portas de casa. Não poucos de nossa esforçada companhia se ofereciam a
fazê-lo, entre os quais, Trasileón foi escolhido, por voto de todos e ficou ao
tabuleiro do jogo duvidoso. O qual se meteu no couro e começou a tratá-lo e
abrandá-lo para exercitar-se no que tinha que fazer. Então nós preenchemos
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algumas parte do couro com tacos e lã, para igualá-lo todo; a junta do couro,
embora era bem sutil, costuramos, com os cabelos de uma parte e de outra
cobrimo-lo muito bem.
Fizemos ao Trasileón que juntasse sua cabeça com a do urso, perto do
cangote; pelos narizes e olhos abrimos certos buracos por onde pudesse olhar
e respirar. Assim, que nosso valente companheiro, feito besta, lançamo-lo em
uma jaula que compramos por pouco preço, na qual ele entrou com grande
esforço e muito disposto. Desta maneira começado nosso negócio, o que
restava para o engano, prosseguimos neste modo:
Soubemos como este Democares tinha um grande amigo na Tracia, que
se chamava Nicanor, do qual fingimos cartas escrevendo-lhe, dizendo que por
honrar suas festas enviava-lhe aquele presente, que era a primeira besta que
caçara. Assim, que sendo já primeira noite, nos aproveitando da ajuda dela,
apresentamos a jaula, com Trasileón dentro, ao Democares, e demos aquelas
cartas falsas. O qual, maravilhando-se da grandeza da besta e muito alegre da
liberalidade de seu amigo, mandou logo nos dar dez ducados de ouro, por ser
os que havíamos lhe trazido tanto prazer e gozo.
Então, como costumava acontecer que as coisas novas atraem os
corações dos homens a querer ver o que subitamente acontece, muitos deviam
ver aquela besta, maravilhando-se de sua grandeza. Mas Trasileón, com
astúcia e discrição, desmentia a vista com seu feroz ímpeto, saltando uma
parte e a outra. Todos a uma voz diziam que Democares era ditoso, que depois
de ver mortos tantos animais e bestas como tinha, resistira e contradizia à
Fortuna, porque de novo tal jóia vinha-lhe. Assim Democares mandou levar o
animal ao pasto onde as outras andavam. Então eu disse-lhe:
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-Olhe, senhor, o que faz, porque esta besta vem fatigada do calor do Sol
e do longo caminho; parece-me que agora não se devia jogar com as outras
feras, principalmente que, conforme ouvi dizer, estão doentes e roxas; antes a
deveria mandar pôr em algum lugar largo e que corra grande ar por dentro,
nesta sua casa, até, se pudesse que estivesse perto de algum reservatório ou
lacuna de água fresca. Como, senhor, não sabe você que a natureza destas
bestas é procurar e andar sempre em montanhas espessas e vales úmidos, em
colinas frias, fontes claras e deleitosas?
Com estas palavras, Democares, havendo medo que não morresse
aquela como as outras muitas que morreram, facilmente consentiu à nossas
persuasões, e mandou que puséssemos a jaula ou caixa onde nós
pretendêssemos. Além disto, eu disse que se ele mandasse, que estávamos
dispostos a velar ali algumas noites perto da jaula, para dar de comer à besta
quando mister fosse, para que rapidamente lhe tirasse a fadiga do sol e
cansaço do caminho. Nisto respondeu Democares:
-Não é mister que lhes ponham neste trabalho, porque todos os de minha
casa, pelo longo costume, estão bem exercitados para saber curar estas
bestas.
Dito isto, pedimos licença e fomo-nos. Saindo pela porta da cidade vimos
um enterro, afastado e escondido do caminho: ali abrimos alguns daqueles
sepulcros meio abertos, onde moravam aqueles mortos, feitos cinza e comidos
de caruncho, para esconder ali o que roubássemos. Depois, ao princípio da
noite, conforme é costume de ladrões, ao primeiro sono, quando mais
gravemente carrega os corpos humanos, com toda nossa gente armada fomos
pôr-nos ante as portas de Democares para roubá-lo, como quando vamos
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citados à julgamento. Não menos foi preguiçoso Trasileón, que, como viu a
oportunidade da noite, saltou fora da jaula, logo degolou com sua espada aos
que o guardavam e dormiam perto dele, e também ao porteiro. Depois abriunos
as portas, e como rapidamente nos lançamos em casa, mostrou-nos um
armazém onde antes da noite ele, sagaz, viu colocar e encerrar muita prata: ao
qual, quebradas as portas por força, mandou a cada um dos companheiros que
entrassem e carregassem quanto pudessem levar daquele ouro e prata, e
rapidamente o levassem a esconder nas casas daqueles fiéis mortos. E que
logo, correndo, retornassem para mais, para o resto, eu ficaria ali à soleira das
portas, a resistir se alguém viesse; para espiar solícito até que retornassem.
Além disto, andava pela casa equipada para matar aos que despertassem;
porque, na verdade, quem poderia ser tão forte e esforçado que vendo uma
forma de besta tão feroz, principalmente de noite, que, vista, não fugisse,
rapidamente, ou que não fechasse o batente à porta de sua câmara e se
encerrasse de medo? Estas coisas assim, prosperamente, dispostas, aconteceu
por fim desventuradas, porque enquanto eu esperava meus companheiros que
tornassem, um escravo da casa, que parece Deus o despertou, como viu o urso
que, livremente, discorria por toda a casa, vai muito pacífico discretamente, de
câmara em câmara, chamando uns e outros, dizendo-lhes o que vira. Não
demorou muito quando saem todos de uma parte e de outra, que enchem toda
a casa, uns com candelabro, outros com lamparinas; outros com mechas de
sebo e outros instrumentos de luz de noite que iluminavam toda a casa,
ninguém dos que saíram vinha sem armas: uns com lanças e dardos, outros, as
espadas tiradas, ficavam a guardar as portas e portinhas de casa. Além disto,
chamavam os cães de monte, grandes e bravos como leões, exortando-os para
caçar o animal.
Primeiro livro96
Quando eu vi isto, que crescia o ruído e tumulto, afastei-me da casa,
retraindo-me um pouco; coloquei-me atrás da porta, de onde via Trasileón
brigar e resistir, maravilhosamente, aos cães; o qual como se estivesse no
último instante de sua vida, não lhe esquecia seu esforço e virtude, nem a fé
de nossa companhia, antes, com quanto ímpeto podia, resistia à morte e à
boca de Cérbero infernal; assim, retendo com a vida a figura do urso, que
tomara, ora fugindo, ora resistindo, com atos vários e movimentos de seu
corpo, finalmente escapou-se fugindo, pela porta a fora; embora já estava na
rua pública, onde há liberdade para poder escapar fugindo, não o pôde fazer,
porque outros muitos cães dessas ruelas próximas, assaz bravos e ferozes,
mesclaram-se com aqueles caçadores da casa, que seguiam o animal, feitos
uma companhia, eu vi uma negra, amarga e miserável vista. Nosso Trasileón
estava apertado e cercado destes cães, de um lado e de outro, que lhe
mordiam e despedaçavam muito cruelmente. Então eu, não podendo sofrer
tanta dor, lancei-me em meio da gente, e, no que podia, ajudava secretamente
a nosso bom companheiro, persuadindo aos principais desta caça, nesta
maneira:
-Oh, que grande mal! Oh, que extremo dano e perda! Por que queremos
perder agora uma tão apreciada e formosa besta?
Entretanto, todas estas cautelas não aproveitaram ao desventurado
mancebo, porque, dizendo isto, saiu de casa um homem alto de corpo e
valente, o qual arrojou uma lança no animal, que a colocou por meio das
vísceras; depois dele, outro fez o mesmo, e outros muitos, já perdido o medo,
com suas espadas, de uma parte e de outra, arremeteram o animal, dando-lhe
até que o mataram.
Primeiro livro97
Em tudo isto, Trasileón, glória e honra de nossa capitania, deu a alma
digna de imortalidade, com tanta paciência e esforço, que nem em vozes, nem
em gemidos, revelou a fé do juramento que fizera; mas, já despedaçado das
bocas dos cães, atravessado das lanças e espadas, sofrendo-se de não dar
vozes com um manso bramido, como de alguma besta muito feroz, tomando a
morte com ânimo muito generoso, reservou para si glória e deu sua vida aos
fados.
Tanto medo e espanto tinham todos daquele animal, que até outro dia
bem tarde nenhum foi ousado de lhe tocar somente com o dedo, embora
estendido morto, até que um destes que andava a esfolar bestas, com medo,
pouco a pouco se chegou, e assim um pouco esforçado a abrir a barriga do
urso, de onde tirou aquele magnífico ladrão. Desta maneira foi morto Trasileón,
como que não pereceu sua glória. Então nós agarramos nossos fardos, que
guardaram aqueles fiéis mortos, e, quão disposto pudemos, saímos dos
términos daquela cidade de Pláteas.
Uma coisa vínhamos sempre praticando entre nós: que nenhuma fé se
pode achar entre os vivos, porque enojada e malquista de nossa maldade, vive
e está com os mortos. Finalmente, desta maneira fatigados, com a carga e
caminho áspero, com três de nossos companheiros, viemos carregados desta
presa que vêem.
Acabada a fala, tomam suas taças douradas cheias de vinho puro,
sacrificam-se, saudando um pouco, em memória dos três companheiros
mortos, e depois de cantar certas canções à deus Marte, repousaram um
momento.
CAPÍTULO IV
Primeiro livro98
Como, saindo os ladrões a roubar, voltaram subitamente trazendo uma
donzela roubada de seus pais; a qual chora com muita ânsia a ausência de seu
marido, com quem estava muito suntuosa aparelhadas as bodas.
Aquela boa velha proviu muito bem a nós de cevada abundante e sem
nenhuma medida; tanto, que meu cavalo, como viu tanta abundância e fartura
para si sozinho, acreditava que fazia festa. E como outras vezes, comece
cevada trazendo-a com pena, por ser para mim comida danosa e descabida,
entretanto, olhei então a um rincão onde colocaram os pedaços de pão que
sobrado daqueles ladrões e comecei a exercitar minhas queixadas, que tinham
teia de aranha de longa fome; vinda a noite, que já todos dormiam, os ladrões
despertaram com grande ímpeto e começaram a mudar seu real, armados com
suas espadas e lanças, que pareciam diabos, e expulsaram pela porta fora
muito às pressas. Mas nem tudo isto, nem mesmo o sono que bem me era
mister pôde impedir o tragar e o comer que eu fazia; e como quando era Lucio,
com um ou dois pães me fartava e levantava da mesa, mas então,
contentando a um ventre de asno tão largo e profundo, já entrava ruminando
pelo terceiro pedaço de pão, quando estando atônito nesta obra tomou o dia
claro; então eu, como asno empachado de vergonha, saí de casa, embora com
pena, fartei-me de água em um regato que ali estava. Não demorou quase
nada, quando tornaram os ladrões muito solícitos e com grande barafunda,
como que não traziam coisa alguma, nem somente a vil vestimenta; mas, com
suas espadas nas mãos e com toda sua hoste traziam cercada uma donzela
muito linda, a qual, segundo seu gesto e hábito mostrava, devia ser alguma
fidalga daquela terra. Certo, ela era tal, que eu, embora asno, desejava-a; a
mesquinha vinha chorando e também mexendo seus cabelos, rasgando as
Primeiro livro99
toucas; depois que a meteram em sua cova, começaram a amansar sua pena,
dizendo-lhe desta maneira:
-Você, pois, está segura da vida e honra, dá um pouco de paciência por
nosso ganho, que a necessidade e pobreza nos faz seguir este trato; seu pai e
sua mãe, embora sejam avaros, mas de tanta abundância de riquezas como
têm, sem demora vão querer redimir a sua filha.
Com estas brincadeiras e outras falas que lhe diziam, não lhe tirava sua
dor, antes, colocada a cabeça entre as pernas, chorava sem remédio. Os
ladrões chamaram lá dentro a velha e mandando-lhe que se sentasse perto
dela, a consolasse com as mais doces e brandas palavras que pudesse;
enquanto, eles partiram-se para fazer seu ofício. Com tudo o que a velha lhe
pôde pregar e dizer, nunca pôde acabar que a donzela deixasse de chorar
como o começara. Antes, mais receoso dava gritos, soluços e grandes suspiros
que lhe arrancavam as vísceras e faziam-me chorar. Dizia desta maneira:
-Ai, mesquinha de mim! Como poderei eu viver e deixar de chorar vendome
privada de minha casa e de minha família, de meus amados criados,
desconsolada de tão honrados pai e mãe como tenho? Ver-me agora que sou
cativa e sem ventura feito escrava, encerrada neste cárcere de pedra para
servir, separada de tantas riquezas e deleites em que fui criada? Ver-me deste
modo nesta carniça sem esperança de minha vida, entre tantos e tais ladrões,
companhia de má e abominável gente?
Chorando desta maneira, com a dor do coração, pena das queixas e
cansaço do corpo fatigado; fechando os olhos, começou a dormir.
Já que dormira um pouco, embora não muito, despertou com um
sobressalto, como mulher sem juízo; começou de novo a afligir-se, chorando,
Primeiro livro100
dando murros nos peitos e bofetadas naquele formoso rosto. A velha
perguntava-lhe com muita instância a causa por que de novo voltava a chorar.
A donzela, suspirando com grande pena, disse:
-Ai, ai, triste de mim! Agora estou certa e muito certificada que sou
morta; agora perdi toda a esperança de minha saúde: certo, ou tenho de
enforcar-me, ou matar-me com uma adaga, ou despencar de alguma altura.
Então a velha, com alguma ira, mostrando a cara zangada, mandou-lhe
que lhe dissesse por que em mau hora chorava, o que queria dizer que depois
de repousar tornasse com maior ímpeto a refrescar os prantos e choros já
passados, dizendo:
-Não se maravilhe, porque quer defraudar a meus filhos com o ganho de
seu resgate, que se insistir nisso, eu farei que, não curando de suas lágrimas,
as quais eles revistam ter em pouco, que viva seja queimada.
Espantada com estas palavras, a donzela, beijando a mão à velha, disse:
-Perdoe-me, senhora mãe; por sua humanidade socorre e doa por mim
desdita grande: que não posso eu acreditar que em tão honrada velhice e
longos anos perdera toda a compaixão e misericórdia; espera agora e ouvirá a
causa de minha triste pena. Poucos dias terá que eu fui desposada com um
mancebo muito formoso, rico e principal entre os seus, ao qual todos os da
cidade desejavam por filho; era meu primo e três anos mais velho do que eu;
criamo-nos ambos juntos, desde meninos, em uma casa, em uma mesa e em
uma cama; o qual me tinha tanto amor, e eu a ele, como se fôssemos irmãos;
assim, estando para nos velar, de todo consentimento de nossos pais,
chamando meu marido na carta de penhor e dote que me fizera; acompanhado
de meus irmãos e parentes, fazendo sacrifícios nos templos e casas públicas;
Primeiro livro101
estando a casa adornada de louros e resplandecendo com tochas ardendo e
cantando o cantar de bodas; tendo a desventurada de minha mãe em sua saia
embelezando-me para semelhante festa, beijando-me brandamente e rogando
a Deus que me desse filhos, eis que entra, subitamente, uma batalha de
rufiões, com grande ímpeto, as espadas nuas e resplandecendo; os quais não
roubaram coisa alguma nem mataram ninguém, a não ser todos juntos, feitos
uma cunha, lançaram-se na câmara onde estávamos, e sem que nenhum dos
familiares da casa resistisse nem ousasse tanto lhes contradizer, arrebataram
para mim, mesquinha, que do medo e pavor que houve estava amortecida nas
saias de minha mãe. Desta maneira estorvaram minhas bodas, como as de
Atides e Protesilao. Mas agora, senhora mãe, outra coisa muito mais cruel me
refrescou, que cresce mais minha desventura e desdita; é que sonhava que por
força e contra minha vontade tiravam-me de minha casa, de dentro de minha
câmara e de minha cama; que ia por uns desertos e solidões, fora de caminho,
chamando o desventurado por mim marido. O qual, como estava embelezado e
vestido com roupas de bodas, ia atrás de mim; quando me afastaram de seus
braços, eu fugia em pés alheios; como ele dava vozes, queixando que lhe
roubaram a seu formosa mulher, pedia socorro a todos. Nisto, um dos ladrões
que me levavam, zangado de suas vozes e importuno seguimento, arrebatou
uma pedra diante dos pés e feriu o coitado mancebo de meu marido, que logo
morreu, com este sonho tão horrível e mortal, espantada, despertei medrosa e
espavorida.
Então a velha, suspirando à seus choros e penas, disse:
-Filha, esforce-se e tenha bom coração; por Deus, não se espante com
vãs ficções de sonhos, porque além de ter por certo que os sonhos de dia são
falsos, até as visões ou sonhos da noite trazem os fins e saídas contrários,
Primeiro livro102
porque chorar ou ser ferido, ou morto trazem o fim próspero e de muito ganho,
e, pelo contrário, rir ou comer coisas doces e saborosas, ou achar-se em
prazeres com quem bem quer, significa grande tristeza do coração ou
enfermidade do corpo, ou outros danos e fadigas. Mas eu quero consolá-la e
dizendo uma novela muito linda, para que esqueça esta pena e trabalho.
A qual logo começou nesta maneira:
Primeiro livro103
CAPÍTULO V
No qual a velha mãe dos ladrões, comovida de piedade das lágrimas da
donzela que estava na cova presa, contou-lhe uma fábula para ocupá-la que
não chorasse.
-Havia em uma cidade um rei e uma rainha, tinham três filhas muito
formosas: das quais, duas as maiores, como eram formosas e bem dispostas,
podiam ser elogiadas por louvores de homens; mas a menor, era tanta sua
formosura, que não bastam palavras humanas para poder exprimir, nem
suficientemente elogiar sua beleza. Muitos de outros reinos e cidades, aos
quais a fama de sua formosura ajuntavam, espantados com admiração de sua
tão grande formosura, onde outra donzela não podia chegar, pondo suas mãos
à boca e os dedos estendidos, assim como à deusa Vênus, com suas religiosas
adorações, honravam-na e adoravam-na. Já a fama corria por todas as cidades
e regiões próximas; que esta era a deusa Vênus, a qual nasceu nas
profundezas do mar e o rocio de suas ondas a criou. E diziam deste modo que
outra deusa Vênus, por influência das estrelas do céu, nascera outra vez, não
no mar, mas na terra, conversando com todas as pessoas, adornada de flor de
virgindade. Desta maneira sua opinião procedia de cada dia, que já a fama
desta era derramada por todas as ilhas ao redor, em muitas províncias da
terra: muitos dos mortais vinham de locais distantes, assim pelo mar como por
terra, a ver este glorioso espetáculo que nascera no mundo; já ninguém queria
navegar para ver a deusa Vênus, que estava na cidade de Paphos, nem
tampouco à ilha de Gnido, nem ao monte Citerón, onde lhe costumavam
sacrificar; seus templos eram já destruídos, seus sacrifícios esquecidos, suas
cerimônias menosprezadas, suas estátuas estavam sem honra nenhuma; seus
Primeiro livro104
altares sujos e cobertos de cinza fria. A esta donzela suplicavam todos, e
debaixo de rosto humano adoravam a majestade de tão grande deusa; quando
de amanhã se levantava, todos ofereciam sacrifícios e manjares, como lhe
sacrificavam à deusa Vênus. Pois, quando ia pela rua ou passava alguma praça,
todo o povo com flores e grinaldas de rosas suplicavam-lhe e honravam-lhe.
Esta grande translação de honras celestiais a uma moça mortal acendeu muito
receosa de ira à verdadeira deusa Vênus, e com muita irritação, balançando a
cabeça e brigando consigo, disse desta maneira:
«Vêem aqui eu, que sou a primeira mãe da natureza de todas as coisas;
eu, que sou princípio e nascimento de todos os elementos; eu, que sou Vênus,
criadora de todas as coisas que há no mundo, sou tratada de tal maneira que
na honra de minha majestade tenha que ter parte do meu ser uma parceira,
uma moça mortal; que meu nome, formado e posto no céu, tenha-se que
profanar em sujeiras terrestres? Tenho eu de sofrer que tenham em cada parte
dúvida se tenho eu de ser adorada ou esta donzela e que tenha que ter
comunidade comigo, que uma moça mortal, tem que morrer, tenha meu gesto
que pensem que sou eu? Segundo isto, muito me julgou aquele pastor que por
minha grande formosura preferiu à tais deusas: cujo julgamento e justiça
aprovou aquele grande Júpiter; mas esta, quem quer que seja, que roubou e
usurpou minha honra, não haverá prazer disso: eu lhe farei que se arrependa
disto e de sua ilícita formosura.»
Logo chamou o Cupido, aquele seu filho com asas, que é assaz temerário
e ousado; o qual, com seus maus costumes, menosprezava a autoridade
pública, armado com setas e chamas de amor; discorrendo de noite pelas
casas alheias, corrompe os casamentos de todos, sem pena nenhuma comete
tantas maldades que coisa boa não faz. A este, como quero que de sua própria
Primeiro livro105
natureza ele seja desavergonhado, abusado e destruidor; mais que isto lhe
acendeu mais com suas palavras e levo-o àquela cidade onde estava esta
donzela, que se chamava Psique, mostrou-se-lhe, dizendo-lhe com muita
irritação, gemendo e quase chorando, toda aquela história da semelhança
invejosa de sua formosura, dizendo-lhe nesta maneira:
«Oh, filho! Eu rogo-lhe pelo amor que tem à sua mãe, pelas doces chagas
de suas setas, pelos saborosos jogos de seus amores, que você cumpra
vingança a sua mãe: venha contra a formosura rebelde e contumaz desta
mulher; sobre todas as outras coisas, tem que fazer uma, a qual é que esta
donzela seja apaixonada, de muito ardente amor, de homem de pouco e baixo
estado, ao qual a Fortuna não deu dignidade de estado, nem patrimônio, nem
saúde. E seja tão baixo que em todo mundo não ache outro semelhante a sua
miséria.»
Depois que Vênus falou isto, beijou e abraçou a seu filho, fosse a ribeira
de um rio que estava perto, onde com seus pés formosos pisou o rocio das
ondas daquele rio, e logo se foi ao mar, aonde todas as ninfas do mar
serviram-lhe e fizeram o que ela queria, como se um dia antes o tivesse
mandado. Ali vieram as filhas de Nereu cantando, o deus Netuno, com sua
áspera barba da água do mar e com sua mulher Salacia; e Palemón, que é
guiador do Delfin. Depois, as companhias dos Tristões, saltando pelo mar: uns
tocando trombetas; outros traçavam um pálio de seda para que o Sol, seu
inimigo, não lhe tocasse; outro põe o espelho diante dos olhos da senhora,
desta maneira nadando com seus carros pelo mar; todo este exército
acompanhou Vênus até o mar oceano.
Enquanto isso, a donzela Psique, com sua formosura, só para si, nenhum
Primeiro livro106
fruto recebia dela. Todos olhavam-na e todos elogiavam-na; mas, nenhum que
fosse rei nem de sangue real, nem mesmo sequer do povo, chegou a pedir,
dizendo que queria casar com ela. Maravilhavam-se de ver sua divina
formosura, mas maravilhavam-se como quem vê uma estátua polidamente
fabricada. As irmãs maiores, porque eram moderadamente formosas, não eram
tanto divulgadas pelos povos e foram desposadas com dois reis, que as
pediram em casamento, com os quais já estavam casadas e com boa ventura
apartadas em sua casa; mas, esta donzela Psique, estava em casa do pai,
chorando sua solidão, e, sendo virgem, era viúva; pela qual estava doente no
corpo e com chagas no coração; aborrecia em si sua formosura, como que
todas as pessoas parecessem bem. O mesquinho pai desta desventurada filha,
suspeitando que alguma ira e ódio dos deuses celestiais houvesse contra ela,
acertou de consultar o oráculo antigo do deus Apolo, que estava na cidade de
Milesia; com seus sacrifícios e oferendas, suplicou àquele deus que desse casa
e marido à triste de sua filha. Apolo, como era grego e de nação jônia, por
razão de que fundara aquela cidade de Milesia, entretanto, respondeu em latim
estas palavras: «Porá esta moça mortal adornada de toda vestimenta de
pranto e luto, para enterrá-la, em uma pedra de uma alta montanha e deixa-a
ali. Não espere genro que seja nascido de linhagem mortal; mas, espera-o
feroz, cruel, e venenoso como serpente: o qual, voando com suas asas, fadiga
todas as coisas sobre os céus, e com suas setas e chamas domestica e
enfraquece todas as coisas; ao qual, o mesmo deus Júpiter teme, e todos os
outros deuses se espantam, os rios e lagos do inferno lhe temem.»
O rei, que sempre foi próspero e favorecido, como ouviu este vaticínio à
resposta de sua pergunta, triste e da má vontade retornou para trás à sua
casa. O qual disse e manifestou à sua mulher o mandamento que o deus Apolo
Primeiro livro107
daria a sua desventurada sorte, pelo qual lamentaram e choraram alguns dias.
Nisto já se chegava o tempo que tinha que pôr com efeito o que Apolo
mandava: de maneira que começaram a aparelhar tudo o que a donzela havia
mister para suas mortais bodas; acenderam a luz das tochas negras com
fuligem e cinza; os instrumentos músicos das bodas mudaram-se em choro e
amargura; cantar alegre em luto e choro, e a donzela que tinha que casar
limpa as lágrimas com o véu de alegria. De maneira que o triste fado desta
casa fazia chorar a toda a cidade, a qual, como se acostumou a fazer em choro
público, mandou elevar todos os ofícios e que não houvesse julgamento nem
tribunal. O pai, pela necessidade que tinha de cumprir o que Apolo mandara,
procurava levar a mesquinha de Psique à pena que lhe profetizava: assim,
acabada a solenidade daquele triste e amargo casamento, com grandes choros
veio todo o povo acompanhar a esta desventurada, que parecia que a levavam
viva a enterrar e que estas não eram suas bodas, mais suas exéquias. Os
tristes do pai e da mãe, comovidos de tanto mal, procuravam quanto podiam
estender o negócio. A filha começou a dizer e a admoestar desta maneira:
«Por que, senhores, atormentam sua velhice com tão contínuo chorar?
Por que fatigam seu espírito, que mais é meu que seu, com tantos uivos? Por
que arrancam suas honradas penas? Por que sujam essas caras que eu tenho
de honrar, com lágrimas que pouco aproveitam? Por o que rompem em seus
olhos os meus? Por que apunhalam à seus santos peitos? Este será o prêmio e
galardão claro e ilustre de minha formosura. Vocês estão feridos mortalmente
da inveja e sentem tarde o dano. Quando as pessoas e os povos nos honravam
e celebravam com divinas honras; quando todos a uma voz chamavam a nova
deusa Vênus, então, tinha-lhes que doer e chorar, então haviam já de ter-me
por morta: agora vejo e sinto que só este nome de Vênus foi causa de minha
Primeiro livro108
morte; levem-me já e deixem-me já naquele penhasco, onde Apolo mandou: já
eu queria acabar estas bodas tão ditosas, já desejo ver aquele meu generoso
marido. Por que tenho eu de conter aquele que é nascido para destruição de
todo o mundo?»
Acabou de falar isto, a donzela calou, como já vinha todo o povo para lhe
acompanhar, lançou-se em meio deles e foram em seu caminho àquele lugar
onde estava um penhasco muito alto, em cima daquele monte, em cima do
qual puseram a donzela; ali deixaram-na, deixando deste modo com ela as
tochas das bodas, que diante dela levavam ardendo, apagadas com suas
lágrimas; abaixadas as cabeças, retornaram à suas casas. Os mesquinhos de
seus pais, fatigados de tanta pena, fecharam-se em sua casa, e fechadas as
janelas, ficaram em trevas perpétuas. Estando Psique muito temerosa,
chorando em cima daquela penha, veio um manso vento boreal, e, como quem
estende as saias, tomou em seu regaço; assim, pouco a pouco, muito
mansamente levou-a por aquele vale abaixo e a pôs em um prado muito verde
e formoso de flores e ervas, onde a deixou que parecia que não lhe colocara.
Primeiro livro109
Quinto livro
ARGUMENTO
Neste quinto livro contêm os palácios de Psique e os amores que com ela
teve o deus Cupido, e de como lhe vieram visitar suas irmãs; da inveja que
tiveram dela, por cuja causa, acreditando Psique o que lhe diziam, feriu seu
marido Cupido com uma chaga, pela qual caiu de uma cume de sua felicidade
e foi posta em tribulação. A qual, Vênus, como a inimizade, persegue muito
cruelmente; finalmente, depois de passar muitas penas, foi casada com seu
marido Cupido, e as bodas celebradas no céu.
Primeiro livro110
CAPÍTULO I
Como a velha, prosseguindo em seu conto para consolar à donzela, conta
como Psique foi levada à uns palácios muito prósperos, os quais descreve com
muita eloqüência, onde por muitas noites folgou com seu novo marido Cupido.
-Psique, estando deitada brandamente naquele formoso prado de flores e
rosas, aliviou-se da pena que em seu coração tinha e começou docemente a
dormir. Depois que suficientemente descansou, levantou-se alegre; viu ali perto
uma floresta de muito grandes e formosas árvores; viu deste modo uma fonte
muito clara e aprazível; em meio daquela floresta, perto da fonte, estava uma
casa real, a qual parecia não ser edificada por mãos de homens, mas sim por
mãos divinas: à entrada da casa estava um palácio tão rico e formoso, que
parecia morada de algum deus, porque o zaquizamí e cobertura era de
madeira de cedro e de marfim maravilhosamente lavrado; as colunas eram de
ouro, e todas as paredes cobertas de prata. Na qual estavam esculpidos bestas
e animais que pareciam arremetiar aos que ali entravam. Maravilhoso homem
foi o que tanta arte sabia, penso que era meio deus, até acredito que fosse
deus o que com tanta sutilidade e arte fez da prata estas bestas feras. Pois o
pavimento do palácio todo era de pedras preciosas, de diversas cores, lavradas
muito minúsculas como obra mosaica: de onde se pode dizer uma vez e muitas
que bem-aventurados são aqueles que pisam sobre ouro e pedras preciosas; já
as outras peças da casa, muito grandes, largas e preciosas, sem preço. Todas
as paredes forradas em ouro, tão resplandecente, que fazia dia e luz do mesmo
modo, embora o Sol não quisesse. Desta maneira resplandeciam as câmaras,
os portais, corredores e as portas de toda a casa. Não menos respondiam à
majestade da casa todas as outras coisas que nela havia, por onde se podia
Primeiro livro111
muito bem julgar que Júpiter fundasse este palácio para a conversação
humana. Psique, convidada com a formosura de tal lugar, chegou perto e com
um pouco mais de ousadia entrou pela soleira de casa, e como lhe agradava a
formosura daquele edifício, entrou mais adiante, maravilhando-se do que via.
Dentro da casa viu muitos palácios e salas perfeitamente lavrados, cheios de
grandes riquezas, que nada havia no mundo que ali não estivesse. Mas,
sobretudo, o que mais se poderia homem ali maravilhar, demais das riquezas
que havia, era a principal e maravilhosa que nenhuma fechadura nem guarda
havia ali, onde estava o tesouro de todo o mundo. Andando ela com grande
prazer, vendo estas coisas, ouviu uma voz sem corpo que dizia:
«Por que, senhora, você se espanta de tantas riquezas? Seu é tudo isto
que aqui vê; portanto, entre na câmara, ponha-se a descansar na cama;
quando quiser demanda água para banhar, que nós, cujas vozes ouve, somos
suas servidoras e lhe serviremos em tudo o que mandar, e não demorará o
manjar que preparam para reforçar seu corpo.»
Quando isto ouviu Psique, sentiu que aquilo era provisão divina;
descansando de sua fadiga, dormiu um pouco, depois que despertou levantouse
e lavou-se; vendo que a mesa estava posta e preparada para ela, sentou-se;
logo veio muita cópia de diversos manjares, e, do mesmo modo, um vinho que
se chama néctar, de que os deuses usam: contudo não aparecia quem o trazia,
e somente parecia que vinha no ar; nem tampouco a senhora podia ver
ninguém, mas somente ouvia as vozes que falavam, só a estas vozes tinha por
servidoras. Depois que comeu, entrou um músico e começou a cantar, outro a
tocar com uma viola, sem serem vistos; depois disto começou a soar um canto
de muitas vozes. Como que nenhum homem aparecesse, bem se manifestava
que era coro de muitos cantores. Acabado este prazer, já que era noite, Psique
Primeiro livro112
foi dormir, depois de passar um momento da noite começou a dormir; logo
despertou com grande medo e espanto, temendo em tanta solidão não
acontecesse nenhum dano à sua virgindade, do qual ela tanto maior mal
temia, quanto mais estava ignorante do que ali havia, sem ver nem conhecer
ninguém. Estando neste medo, veio o marido não conhecido, subindo na cama
fez sua mulher à Psique; antes que fosse o dia partiu dali, logo aquelas vozes
vieram à câmara e começaram a cuidar da noiva, que já era proprietária. Desta
maneira passou algum tempo sem ver seu marido nem haver outro
conhecimento. E, como é coisa natural, a novidade e estranheza que antes
tinha pela continuação, já se transformando em prazer, e o som da voz incerta
já lhe era distração e deleite daquela solidão. Enquanto isso, seu pai e mãe
envelheciam em pranto e luto contínuo. A fama deste negócio, como passara,
chegara onde estavam as irmãs maiores casadas: as quais, com muita tristeza,
carregadas de luto deixaram suas casas e foram ver seus pais para lhes falar e
consolá-los. Aquela mesma noite o marido falou com sua mulher Psique:
porque como não queria que o visse, bem o sentia com os ouvidos, apalpava
com as mãos, e disse-lhe desta maneira:
«Oh, senhora muito doce e muito amada mulher! A cruel fortuna
ameaça-a com um perigo de morte, do qual eu queria que se guardasse com
muita cautela. Suas irmãs, turvadas pensando que você é morta, têm que
seguir suas pegadas e vir até aquele penhasco de onde você aqui veio; se você
por ventura ouvir suas vozes e prantos, não lhes responda nem olhe lá em
maneira alguma; porque se o faz, me dará muita dor, mas para você causará
um maior mal que será quase a morte.»
Ela prometeu de fazer tudo o que o marido lhe mandasse e que não faria
outra coisa; mas, como a noite passou e o marido dela partiu, todo aquele dia a
Primeiro livro113
mesquinha consumiu em prantos e em lágrimas, dizendo muitas vezes que
agora conhecia que ela era morta e perdida por estar encerrada e guardada
em um cárcere honesto, separada de toda fala e conversação humana, que
inclusive não podia ajudar e responder sequer suas irmãs, que por sua causa
choravam, nem somente as podia ver. Desta maneira, aquele dia nem quis
lavar-se, nem comer, nem recrear com coisa alguma, a não ser, chorar com
muitas lágrimas, foi dormir. Não passou muito tempo, que o marido veio mais
cedo que outras noites; deitando-se na cama, ela, embora chorando, abraçoua,
começou a repreender desta maneira:
«Oh minha senhora Psique! Isto é o que você me prometeu? O que posso
eu, sendo seu marido, esperar de si, quando o dia e toda a noite, até agora que
está comigo, não deixa de chorar? Anda já, faz o que quer e obedece a sua
vontade, que demanda dano para si, porém, mais tarde, arrepender-se-á,
recordar-se-á do que admoestei.»
Então ela, com muitos rogos, dizendo que se não lhe outorgava o que
queria que ela morreria, tirou-lhe por força e contra sua vontade que fizesse o
que desejava: que veja suas irmãs, console-as, fale com elas; até tudo o que
quiser lhes dar, tanto ouro como jóias e colares, que o dê. Mas, muitas vezes
admoestou-a e espantou-a que não consinta em mau conselho de suas irmãs,
nem cuide de procurar nem saber o gesto e figura de seu marido, porque, com
esta sacrílega curiosidade, não caia de tanta riqueza e bem-aventurança como
tem: que, fazendo de outra maneira, jamais lhe veria nem tocaria. Ela
agradeceu ao marido, e, estando já mais alegre, disse:
«Por certo, senhor, você saberá que antes morrerei, senão tivesse que
estar sem seu muito doce casamento; porque eu, senhor, amo-o e muito
Primeiro livro114
fortemente, e a quem quer que seja, quero-o como a minha alma, e não penso
que o posso comparar ao deus Cupido; mas, além disto, senhor, rogo-lhe que
mande a seu servidor o vento boreal, que traga minhas irmãs aqui, assim como
a mim me trouxe.»
E dizendo isto, deu-lhe muitos beijos, adulando-o com muitas palavras,
abraçando-o com adulações, e dizendo:
«Ai doce marido! Doce alma de sua Psique!»
E outras palavras, por onde o marido foi vencido, e prometeu fazer tudo o
que ela quisesse. Vindo já a alvorada, ele desapareceu de suas mãos.
As irmãs perguntaram por aquele penhasco, ou lugar, onde deixaram
Psique; logo foram para lá com muito pesar, de onde começaram a chorar e
dar grandes vozes e uivos, feridos os peitos: tanto, que às vozes que davam os
Montes e penhascos ecoavam o que elas diziam, chamando por seu próprio
nome à mesquinha de sua irmã; tanto que até Psique, ouvindo as vozes que
ecoavam por aquele vale abaixo, saiu de casa tremendo, como sem juízo, e
disse:
«Por que sem causa lhes afligem com tantas mesquinharias e prantos?
Por que choram, se viva estou? Deixem esses gritos e vozes; não parem de
chorar, porque podem abraçar e falar por quem choram.»
Então chamou o vento boreal e mandou-lhe que fizesse o que seu marido
mandara. Ele, sem mais demorar, obedecendo seu mandamento, trouxe logo
suas irmãs muito mansamente, sem fadiga nem perigo; quando chegaram,
começaram abraçar e beijar umas as outras, as quais, com grande prazer e
gozo que houveram, tornaram de novo a chorar. Psique disse que entrassem
em sua casa alegremente e descansassem com ela de suas penas.
Primeiro livro115
CAPÍTULO II
Como, prosseguindo a velha o conto, contou como as duas irmãs de
Psique foram vê-la, ela deu-lhes suas jóias e riquezas; enviou-as às suas terras,
e como pelo caminho foram invejando dela com vontade de matá-la.
-Depois que assim lhes falou, mostrou a casa e as grandes riquezas dela;
a muita família das que lhe serviam ouvindo-as somente; depois mandou
lavarem-se em um banheiro muito rico e formoso; sentar à mesa, onde havia
muitos manjares abundantemente, de tal maneira que a fartura e abundância
de tantas riquezas, mais celestiais que humanas, criaram inveja em seus
corações contra ela. Finalmente, que uma delas começou a perguntar-lhe,
curiosamente, a importunar-lhe que o dissesse quem era o senhor daquelas
riquezas celestiais; quem era, ou que tal era seu marido. Mas, com todas estas
coisas, nunca Psique quebrou o mandamento de seu marido nem tirou de seu
peito o segredo do que sabia: e falando no negócio, fingiu que era um
mancebo formoso e de boa disposição, que então lhe apontavam as barbas, o
qual andava lá ocupado em fazenda do campo e caçando animal de caça;
porque em algumas palavras das que falava não descobrisse o segredo,
carregou-as de ouro, jóias e pedras preciosas; chamado o vento, mandou-lhe
que voltasse a levar de onde as trouxera: o qual fez, as boas das irmãs,
retornando à casa, foram ardendo com o fel da inveja que lhes crescia; uma à
outra falava sobre isso muitas coisas, entre as quais, alguém disse isto:
«Olhem agora que coisa é a fortuna cega, malvada e cruel. Parece-lhe
como bem, que sejamos todas as três filhas de um pai e mãe e que tenhamos
diversos estados? Nós, que somos maiores, sejamos escravas de maridos
arrivistas; que vivamos como desterradas fora de nossa terra; apartadas muito
Primeiro livro116
longe da casa e reino de nossos pais; esta nossa irmã, última de todas, que
nasceu depois que nossa mãe estava farta de parir, tenha que possuir tantas
riquezas e ter um deus por marido? E até, certo, ela não sabe bem usar de
tanta multidão de riquezas como tem: não viu você, irmã, quantas coisas estão
naquela casa, quantos colares de ouro, quantas vestimentas resplandecem,
quantas pedras preciosas resplandecem? E além disto, quanto ouro rastreja na
casa? Por certo, se ela tiver o marido formoso, como disse, nenhuma mais
bem-aventurada mulher vive hoje em todo mundo; por ventura poderá ser que,
procedendo a continuação e esforçando-se mais a afeição, sendo ele deus,
também fará dela deusa. Por certo assim é, que já ela presumia, tratava-se
com muita altivez, que já pensa que é deusa, porque tem as vozes por
servidoras e manda aos ventos. Eu, mesquinha, o primeiro que posso dizer é
que fui casada com um marido mais velho que meu pai; além disto, mais calvo
que uma cabaça e mais fraco que um menino, guardando de contínuo a casa
fechada com ferrolhos e cadeias.»
Quando disse isto, começou a outra e disse:
«Pois eu sofro outro marido gotoso, que tem os dedos tortos da gota, é
encurvado, pelo qual nunca tenho prazer; esfrego-lhe continuamente seus
dedos endurecidos como pedra com remédios fedidos, panos sujos e
cataplasmas; que já tenho queimadas estas minhas mãos, que costumavam a
ser delicadas, que certo eu não represento ofício de mulher, mais antes uso de
pessoa de médico, e até bem fatigado. Mas você, irmã, parece-me que sofre
isto com ânimo paciente; até melhor poderia dizer que é serva, porque já
livremente quero dizer o que sinto. Mas eu, de maneira nenhuma, posso já
sofrer de tanta bem-aventurança alcançou pessoa tão indigna: não se lembra
quão soberba, com quanta arrogância se houve conosco, que as coisas que nos
Primeiro livro117
mostrou com aquele louvor, como grande senhora, manifestaram bem seu
coração inchado? De tantas riquezas como ali tinha nos deu pouco, contra sua
vontade; pesando conosco, logo nos mandou sair dali com seus assobios ao
vento. Pois não me tenha por mulher, nem nunca eu viva, senão a faço lançar
de tantas riquezas; finalmente, que se esta injúria toca a si, como é razão,
tomemos ambas um bom conselho; estas coisas que levamos não as
mostraremos aos nossos pais, nem a ninguém digamos coisa alguma de sua
saúde; basta-nos o que nós vimos, do qual nos pesa de havê-lo visto, e não
comuniquemos a ninguém tanta felicidade dela, porque não se podem chamar
aqueles bem-aventurados de cujas riquezas nenhum sabe: ao menos ela saiba
que nós não somos suas escravas, mais suas irmãs maiores; agora deixemos
isto e voltemos aos nossos maridos e pobres casas, embora certo boas e
honestas; depois instruídas, com maior acordo e conselho tornaremos mais
fortes para punir sua soberba.»
Este mau conselho pareceu muito bom às duas más irmãs; escondendo
as jóias e dons que Psique deu-lhes, retornaram desgrenhadas, como que
vinham chorando; arranhando lágrimas, fingindo de novo grandes prantos,
desta maneira deixaram seus pais, sofrendo sua dor, e com muita ira, turvadas
da inveja, retornaram para suas casas, acertando pelo caminho traição, engano
e até morte contra sua irmã, que estava sem culpa.
Primeiro livro118
CAPÍTULO III
Como Cupido avisa sua mulher, Psique, que de maneira nenhuma
descubram suas irmãs de quem está grávida, nem as acredite quanto o
disserem, porque se perderá.
-Enquanto isso, o marido de Psique, ao qual ela não conhecia, voltou
admoestar outra vez com aquelas suas palavras de noite, dizendo:
«Não vê quanto perigo ordena a fortuna? Pois se você, de longe, antes
que venha, não se afasta e provê, ela será consigo de perto. Aquelas lobas sem
fé ordenam quanto podem contra si muito más armadilhas, das quais a soma é
esta: elas querem persuadir-lhe, que você veja minha cara, a qual, como
muitas vezes lhe disse, você não a verá jamais, se a vir. Assim se depois disto
aquelas más bruxas vierem armadas com seus malignos corações, que bem sei
que virão, não fale com elas nem ponha as razões; se por sua mocidade e pelo
amor que lhes tem não lhe puder sofrer, ao menos de coisa que toque a seu
marido, nem as ouça, nem responda à elas; porque acrescentaremos nossa
linhagem, que até este seu ventre menino, outro menino traz já dentro, e se
você encobrir este segredo, eu lhe digo que será divino, e se o descobrir, a
partir de agora lhe certifico que será mortal.»
Psique, quando isto ouviu, gozo-se muito e houve agradar com a divina
geração. Alegrava-se com a glória do que tinha que parir, gozando-se com a
dignidade de ser mãe, com muita ânsia contava os dias e meses quando
entravam e quando saíam. E como era nova, no início da gravidez,
maravilhava-se de um ponto e toque tão sutil crescer em tão abundância seu
ventre. Mas, aquelas fúrias espantáveis e pestíferas, já desejavam lançar o
veneno de serpentes; com esta pressa aceleravam seu caminho pelo mar
Primeiro livro119
quanto podiam. Nisto, o marido voltou a admoestar Psique desta maneira:
«Já chega o último dia e a queda última, porque sua linhagem, seu
sangue, sua inimizade já tomou armas contra si; move-se sua realidade e
compõe suas batalhas; faz tocar as trombetas, e dizendo-o mais claro, as
malvadas de suas irmãs, com a espada tirada querem degola-la. Oh, quantas
fadigas nos atormentam! Por isso você, muito doce senhora, tenha mercê de si
e de mim; com grande continência, calando o que lhe disse, libera a sua casa,
marido e este nosso filho da queda da Fortuna que lhe ameaça; à estas falsas e
enganosas mulheres, as quais segundo o ódio mortal lhe têm, e o vínculo da
irmandade já está quebrantado e quebrado, não lhe convém chamar as irmãs,
nem as veja nem as ouça, porque elas virão tentar, em cima daquele
penhasco, como as sereias do mar; farão soar todos estes Montes e vales com
suas vozes e prantos.»
Então Psique, chorando, disse-lhe:
«Bem sabe você, senhor, que eu não sou faladeira; já outro dia ensinoume
a fé que tinha que guardar e o que tinha que calar; assim, que agora você
não verá que eu mude da perseverança e firmeza de meu ânimo; somente
rogo-lhe que mande outra vez ao vento que faça seu ofício e que sirva no que
lhe mandar; em lugar de sua vista, pois me nega isso, ao menos consente que
eu goze da vista de minhas irmãs: isto, senhor, suplico-lhe por estes seus
cabelos lindos e cheirosos; por este seu rosto, semelhante ao meu; pelo amor
que tenho, embora não o conheça de vista: assim conheça eu sua cara neste
menino que trago no ventre: que você, senhor, conceda aos meus rogos,
fazendo que eu goze de ver e falar com minhas irmãs; daqui adiante não
procurarei mais de querer conhecer sua cara; não procuro que as trevas da
Primeiro livro120
noite me tirem sua vista, pois eu tenho a você, que é minha luz.»
Com estas brandas palavras, abraçando a seu marido e chorando,
limpava as lágrimas com seus cabelos, tanto, que ele foi vencido e prometeu
de fazer tudo o que ela queria; logo, antes que amanhecesse, partiu-se dela
como ele costumava. As irmãs, com seu mau propósito, em chegando, não
procuraram ver seus pais, a não ser, em saindo das naves, direito foram
correndo quanto puderam àquele penhasco, aonde, com o anseio que tinham,
não esperaram que o vento as ajudasse, antes, com temeridade e audácia,
lançaram-se dali abaixo. Mas o vento, recordando-se do que seu senhor lhe
mandara, recebeu-as em suas asas contra sua vontade, e colocou-as muito
mansamente no chão; elas, sem nenhuma tardança, lançaram-se logo em
casa; foram abraçar a que queriam perder, e mentindo o nome de irmãs,
encobriram com suas caras alegres o tesouro de seu escondido engano, e
começaram a lisonjear desta maneira:
-Irmã Psique, já não é menina como estava acostumada: já nos parece
que é mãe. Quanto bem pensa que nos traz neste seu ventre? Quanto gozo
pensa que dará a toda sua casa? Oh, quão bem-aventuradas somos nós, que
temos linhagem em tantas riquezas! Que se o menino parecer com seus pais,
como é razão, certo ele será o deus Cupido, que nascerá.
Com este amor e afeição fingido começam pouco a pouco a ganhar a
vontade de sua irmã. Ela as mandou sentar em suas cadeiras para que
descansassem, e logo as fez lavar no banheiro; depois de lavadas sentaram-se
à mesa, onde lhes deram manjares reais em abundância; logo veio a música e
começaram a cantar, a tocar muito brandamente: o qual, embora não viam
quem o fazia, era tão muito doce a música que parecia coisa celestial; mas,
Primeiro livro121
com tudo isto não se amansava a maldade das falsas mulheres, nem puderam
tomar espaço, nem folga com tudo aquilo: antes, procuravam armar seu laço
de enganos que traziam pensado. E começaram dissimuladas a colocar
palavras, perguntando-lhe que tal era seu marido e de que nação, ou lei vinha.
Psique, com sua babeira, esquecendo o que seu marido recomendou-lhe,
começou a fingir uma nova razão, dizendo que seu marido era de uma grande
província; que era mercador, que tratava de grandes mercadorias; que era
homem de mais de meia idade, que já lhe começava dar pena. Não demorou
muito nesta fala, que logo as carregou de jóias e ricos dons, e mandou ao
vento que as levasse: depois que o vento as pôs naquele penhasco, retornaram
à casa brigando entre si desta maneira:
«O que podemos dizer de uma tão grande mentira como nos disse aquela
louca? Uma vez nos disse que era seu marido um mancebo, que então o
apontavam as barbas; agora diz que é de mais de meia idade e já tem pena:
quem pode ser aquele que em tão pouco espaço de tempo lhe veio a velhice?
Certo, irmã, você achará que esta má fêmea nos minta, ou ela não conhece
quem é seu marido; algo me diz que nos convém que joguemos estas riquezas;
se, por ventura, não conhece seu marido, certo por isso se casou ela, traz
algum deus em seu ventre; assim fosse o que nunca Deus queria, que esta
ouvisse ser mãe de menino divino: logo me enforcaria com uma corda; assim
voltemos aos nossos pais e calemos isto, encobrindo-o com a melhor cor que
pudermos.»
Desta maneira, inflamadas da inveja, retornaram à casa e falaram com
seus pais, embora a contra gosto.
Primeiro livro122
CAPÍTULO IV
Como vindas as irmãs visitar Psique lhe aconselham que trabalhe para
ver quem é aquele com quem tem acesso, fingindo-lhe que seja um dragão:
ela, convencida do conselho, vê-lhe dormindo, e indignado Cupido nunca mais
a viu.
-Aquela noite, sem poder dormir, turvadas da pena e fadiga que tinham,
logo como amanhecia correram quanto puderam até o penhasco, de onde, com
a ajuda do vento acostumado, voaram até à casa de Psique; com umas poucas
lágrimas que, por força e apertando os olhos, tiraram, começaram a falar com
sua irmã desta maneira:
«Você pensa que é bem-aventurada, está muito segura e sem nenhum
cuidado, não sabendo quanto mau e perigo tem. Mas nós, que com maior
cuidado velamos sobre o que se cumpre, muito somos fatigadas com seu dano:
porque tem que saber que achamos por verdade que este seu marido que
retorna contigo é uma serpente grande e venenosa; o qual, com a dor e pena
que de seu mal temos, não lhe podemos encobrir; agora nos recorda do que o
deus Apolo respondeu quando o consultaram sobre seu casamento, dizendo
que você foi assinalada para se casar com uma cruel besta. E muitos dos
vizinhos destas linhagens que andam a caçar por estas montanhas, outros
lavradores, dizem que viram este dragão quando à tarde voltam de procurar de
comer, que se põe a nadar por este rio para passar para cá; todos afirmam que
se quer engordar com estes presentes e manjares que lhe dá, quando esta sua
gravidez estiver no final e você estiver bem cheia, para gozar de mais fartura
que se tem que tragar; assim que nisto está agora sua estimativa e
julgamento. Se por ventura quer mais, ou acreditar em suas irmãs, que por sua
Primeiro livro123
saúde andam solícitas e que viva com nós segura de perigo fugindo da morte,
ou se quiser possivelmente ser enterrada nas vísceras desta cruel besta.
Porque se as vozes sozinhas que neste campo ouvem, ou o escondido prazer e
perigoso dormir, juntando-se com este dragão lhe deleitam, seja como você
quer, que nós com isto cumprimos, e já fizemos ofício de boas irmãs.»
Então, a mesquinha da Psique, como era moça e de nobre condição,
acreditou o que lhe disseram, com palavras tão espantáveis saiu fora de si:
pelo qual lhe esqueceu as advertências de seu marido e de todas as promessas
que lhe fez, lança-se no profundo de sua desdita e desventura; tremendo, a cor
amarela, não podendo quase falar, cortando as palavras e meio falando, como
melhor pôde, disse desta maneira:
«Vocês, senhoras irmãs, fazem ofício de piedade e virtude como é razão:
acredito eu muito bem que aqueles que tais coisas lhes disseram não fingiram
mentira, porque eu até hoje nunca pude ver a cara de meu marido, nem soube
de onde é. Somente o ouço falar de noite, com isto passo e sofro do marido
incerto e que foge da luz; desta maneira consinto que digam que tenho uma
grande besta por marido; que me espanta dizendo que não o posso ver:
sempre me ameaça que me virá grande mal se instar em querer ver sua cara.
E porque assim é, se agora podem socorrer ao perigo de sua irmã com alguma
ajuda e favor saudável, façam-me socorrer, porque senão o fazem poderei
muito bem dizer que a negligência seguinte corrompe o benefício da
providência passada.»
Quando as duas más mulheres acharam o coração e vontade de Psique
descoberto para receber o que disserem, deixados os enganos secretos,
começaram com as espadas descobertas publicamente a combater o
Primeiro livro124
pensamento temeroso da simples mulher, uma delas disse desta maneira:
«Porque o vínculo de nossa irmandade nos compele por sua saúde a tirar
diante dos olhos qualquer perigo, mostraremos-lhe um caminho que há dias
pensamos, o qual só tirará porto de saúde, e é este: Você tem que esconder
secretamente na parte da cama onde revista deitar uma navalha bem aguda,
que na palma da mão se aguçou, porá um candelabro cheio de azeite bem
aparelhado e aceso debaixo de alguma cobertura ao canto da sala: com todo
este arranjo, muito bem dissimulado, quando vir aquela serpente e subir na
cama como acostumou, desde que você veja que ele começa a dormir e com o
grande sono começa a respirar, salta da cama e descalça ao passo, saca o
candelabro debaixo de onde está escondido, tira o candelabro oportunidade
para a façanha que quer fazer; com aquela navalha, elevada primeiro a mão
direita com o maior esforço que puder, dá em o nó da nuca daquela serpente
venenosa, corte-lhe a cabeça: não pense que lhe faltará nossa ajuda, porque
logo que você com sua morte trouxer vida para si, estaremos esperando-a com
muita ânsia, para lhe levar daqui com todos estes seus servidores e riquezas
que aqui tem, lhe casaremos como desejamos com homem humano, sendo
você mulher humana.»
Com estas palavras acenderam tanto as vísceras de sua irmã, que
deixaram quase tudo ardendo. E elas, temendo do mau conselho que davam à
outra não viesse algum grande mal por isso, partiram-se, e com o vento
acostumado se foram até em cima do penhasco, de onde fugiram o mais
rápido que puderam, entrando em suas naves, foram às suas terras.
Psique ficou sozinha: embora ficando fatigada daquelas fúrias não estava
sozinha, mas chorando flutuava seu coração como o mar quando anda com
Primeiro livro125
tormenta; como ela deliberara com vontade muito obstinada o conselho que
lhe deram, pensando como tinha que fazer aquele negócio, mas ainda
titubeava e estava incerta do conselho, pensando no mal que lhe podia vir;
desta maneira já o queria fazer, já o queria dilatar, agora ousava, agora temia,
já desconfiava, já se zangava. Enfim, o que mais lhe fatigava era que em um
mesmo corpo aborrecia à serpente e amava a seu marido. Quando já era tarde
que a noite vinha, ela começou a equipar-se com muita pressa, àquela sua má
façanha; sendo de noite veio o marido à cama, o qual, depois de burla-se com
ela, começou a dormir com grande sono. Então, Psique, como era delicada do
corpo e do ânimo, mas, ajudando-lhe a crueldade de seu fado se esforçou;
tirando o candelabro debaixo de onde estava, tomou a navalha na mão; sua
ousadia venceu e mudou a fraqueza de seu gênero. Como ela iluminasse com o
candelabro e aparecesse todo o segredo da cama, visto uma besta, a mais
mansa e muito doce de todas as feras: digo que era aquele formoso deus do
amor que se chama Cupido, o qual estava deitado muito belamente; com sua
vista alegrando-se, a luz da vela cresceu, a sacrílega e aguda navalha
resplandeceu.
Quando Psique viu-o, espantada e posta fora de si, desfalecida, com a cor
amarela, tremendo, cortou-se e caiu sobre os joelhos; quis esconder a navalha
em seu seio e fizera, salvo pelo temor de tão grande mau como queria fazer,
caiu-lhe a navalha da mão. Estando assim fatigada e desfalecida, quanto mais
olhava a cara divina do Cupido tão mais recreava com sua formosura. Via-lhe
os cabelos como fios de ouro, cheios de aroma divino; o pescoço, branco como
o leite; a cara, branca e vermelha como rosas tintas, os cabelos de ouro
pendurando por toda parte, que resplandeciam como o Sol e venciam à luz do
candelabro. Tinha deste modo nos ombros pétalas das cores de rosas e flores;
Primeiro livro126
como que as asas fixas, mas as outras plumas debaixo das asas tenras e
delicadas estavam tremendo muito garbosamente; todo o corpo do outro
estava formoso e sem plumas, como convinha ao filho da deusa Vênus, que o
pariu sem arrepender-se por isso. Estava ante os pés da cama o arco e as
setas, que são armas do deus do amor; o qual, tudo olhava Psique, não se
cansava de olhá-lo, maravilhando-se das armas de seu marido; tirou da aljava
uma seta, tentando com o dedo, ver se era aguda como diziam, cortou-lhe um
pouco a seta, de maneira que começaram a sair umas gotas de sangue da cor
de rosas, desta maneira, Psique, não sabendo, caiu e foi presa de amor do deus
do amor: então, com muito maior ardor de amor, abaixou-se sobre ele e
começou a beija-lo com tão grande prazer, que temia não despertasse tão
disposto.
Estando ela neste agradar, ferida do amor, o candelabro que tinha na
mão, ou por não ser fiel, ou de inveja mortal, ou que por ventura ela também
quis tocar o corpo do Cupido, ou possivelmente beijá-lo, lançou de si uma gota
de azeite fervendo e caiu sobre o ombro direito do Cupido. Oh, candelabro
ousado, temerário e vil servidor do amor! Você queima ao deus de todo o fogo;
porque para isto você não foi mister, mas sim algum apaixonado achou-o
primeiro para gozar na escuridão da noite do que bem queria. Desta maneira o
deus Cupido, queimado, saltou da cama; reconhecendo que seu segredo era
descoberto, discretamente, desapareceu e fugiu dos olhos da desventurada de
sua mulher. Psique arrebatou com ambas as mãos a perna direita do Cupido,
que se levantava, assim, foi dependurada pelos seus pés, pelas nuvens do céu,
até que caiu no chão. Mas, o deus do amor não a quis desamparar caída em
terra; veio voando a sentar-se em um cipreste que estava ali perto, de onde
com irritação, gravemente, começou a repreendê-la dizendo desta maneira:
Primeiro livro127
«Oh, Psique, mulher simples: eu, não recordando dos mandamentos de
minha mãe Vênus, a qual me mandara que se apaixonasse por um homem
muito miserável sob linhagem, a quis bem e fui seu apaixonado; mas, isto que
fiz bem sei que fizera levianamente! Eu mesmo, que sou atirador para os
outros, feri-me com minhas setas e tomei por mulher. Parece que o fiz por lhe
parecer serpente e porque você perdeu a cabeça, que traz os olhos que bem
lhe quiseram. Não sabe você quantas vezes lhe dizia que se guardasse disso, e
benignamente, avisava-lhe para que se separasse disso. Mas, aquelas boas
mulheres suas conselheiras rapidamente pagar-me-ão o conselho que lhe
deram; e a si, com minha ausência, fugindo-lhe, castigar-lhe-ei.»
Dizendo isto, levantou-se com suas asas e voou alto para o céu.
Psique, quando arremessou em terra e quanto podia com a vista, olhava
como seu marido voava, aflito seu coração com muitos choros e angústias.
Depois que seu marido desapareceu voando pelas alturas do céu, ela,
desesperada, estando na ribeira de um rio, lançou-se de cabeça dentro; mas o
rio se tornou manso por honra e serviço do deus do amor, cuja mulher era ela,
o qual acostumou a inflamar de amor às mesmas águas e às ninfas delas.
Assim, que temendo de si mesmo, tomou-a com as ondas, sem lhe fazer mal,
colocou-a sobre as flores e ervas de sua ribeira. Acaso o deus Pan, que é deus
das montanhas, situava-se em um monte alto perto do rio: no qual tocando
com uma flauta e ensinando a tocar à ninfa Canha. Estavam deste modo, ao
redor dele, uma manada de cabras, que andavam pastando as árvores e matas
que estavam sobre o rio. Quando o deus peludo viu Psique tão deprimida e
assim ferida de dor, que já ele bem sabia sua desdita e pena, chamou-a,
começou a adulá-la e consolar com brandas palavras, dizendo desta maneira:
Primeiro livro128
«Donzela sabida e formosa: como sou pastor e rústico, mas, por ser velho
sou instruído de muitos experimentos; de maneira que, embora conjeturo
aquilo que os prudentes varões chamam adivinhação, eu conheço deste seu
andar titubeando com os pés, da cor amarela de sua cara, de seus grandes
suspiros e lágrimas dos olhos; bem acredito certo que você anda fatigada e
morta de grande dor; porque assim é, você escute-me e não torne a lançar-se
dentro do rio, nem se mate com nenhum outro gênero de morte; estorva de si
o luto e deixa de chorar. Antes procura aplacar com preces ao deus Cupido,
que é maior dos deuses; trabalha por merecer seu amor com serviços e
adulações, porque é mancebo delicado e muito agradável.»
Primeiro livro129
CAPÍTULO V
Como Psique, muito triste, foi se consolar com as irmãs da desventurada
fortuna em que caíra por seu conselho; elas, ambiciosas de casar com o deus
Cupido, foram despenhadas em pena de sua maldade; e como sabendo a
deusa Vênus este acontecimento, trabalhou por vingar-se do Cupido.
Quando acabou de dizer isto, o deus pastor, Psique, sem lhe responder
palavra nenhuma, a não ser somente adorando sua deidade, começou a andar
seu caminho; antes que andasse muito, entrou por um atalho que atravessava,
pelo qual indo, chegou a uma cidade aonde era o reino do marido de uma
daquelas suas duas irmãs: quando a rainha sua irmã soube que estava ali,
mandou-a entrar; depois que ambas se abraçaram, perguntou-lhe o que era a
causa de sua vinda. Psique respondeu:
«Não recorda você, senhora irmã, o conselho que me deram ambas, que
matasse àquela grande besta que retornava a mim de noite em nome de meu
marido antes que me tragasse e comesse, para o qual me deu uma navalha? O
qual, como eu queria fazer, tomei um candelabro; assim que olhei seu gesto e
cara vejo uma coisa divina e maravilhosa: ao filho da deusa Vênus, digo, ao
deus Cupido, que é deus do amor, que estava belamente dormindo; como eu
estava incitada de tão maravilhosa vista, turvada de tão grande prazer, não me
cansei de ver aquele formoso gesto, a caso fortuito e péssimo fervendo o
azeite do candelabro, que tinha na mão, caiu uma gota fervendo em seu
ombro; com aquela grande dor despertou, como me viu armada com ferro e
fogo, disse-me: «Como fez tão grande maldade e traição? Toma logo todo o seu
e vai para sua casa.» Além disto disse: «Eu tomarei a sua irmã em seu lugar;
casar-me-ei com ela, dando-lhe penhor e dote.» Dizendo isto, mandou ao vento
Primeiro livro130
boreal que me ventilasse fora dos términos de sua casa.»
Não acabara Psique de falar estas palavras, quando a irmã, estimulada e
incitada de mortal inveja, composta de uma mentira para enganar a seu
marido, dizendo que soubera da morte de seus pais, meteu-se em uma nave e
começou a andar até que chegou àquele penhasco grande, no qual subiu,
como que outro vento àquela hora ventava; mas ela, com aquela ânsia e com
cega esperança disse:
«Oh Cupido! Receba-me, que sou digna de ser sua mulher, e você, vento
boreal, recebe à sua senhora.»
Com estas palavras deu um salto grande do penhasco abaixo; mas, ela
nem viva, nem morta pôde chegar ao lugar que desejava, porque por aqueles
penhascos e pedras fez-se aos pedaços, como ela merecia; assim morreu,
fazendo-se manjar das aves e bestas daquele monte. Depois desta não
demorou muito a pena e vingança da outra sua irmã; porque, indo Psique por
seu caminho mais adiante, chegou a outra cidade, na qual morava a outra sua
irmã, segundo o que dissemos; a qual, deste modo com engano de sua
irmandade, fez nem mais nem menos como a outra: que querendo o
casamento que não lhe cumpria, fosse quanto mais disposta pôde àquele
penhasco, de onde caiu e morreu, como fez a outra. Enquanto isso, Psique,
andando muito angustiada em busca de seu marido Cupido, cercava todos os
povos e cidades; mas ele, ferido da chaga que lhe fez a gota de azeite do
candelabro, estava jogado doente e gemendo na cama de sua mãe. Então,
uma ave branca que se chama gaivota, que nadava com suas asas sobre as
ondas do mar, mergulhou perto do fundo do mar Oceano; achou ali à deusa
Vênus, que se lavava e nadava naquela água; à qual chegou e disse-lhe como
Primeiro livro131
«seu filho Cupido estava mal de uma grave chaga de fogo que lhe dava muita
dor, chorando, em muita dúvida de sua saúde, pela qual toda a gente e família
de Vênus era infamada e vituperada; pelos povos e cidades de toda a terra;
dizendo que ele se ocupou e afastou-se com uma mulher serrana e
montanhesa; deste modo afastou-se, andando, no mar nadando, a seu prazer;
por isso, já não há entre as pessoas prazer nenhum, nem graça, nem
formosura; mas, todas as coisas estão rústicas, grosseiras e sem adorno; já
ninguém se casa, nem ninguém tem amizade com mulher, nem amor de filhos;
a não ser, tudo ao contrário, sujo e feio, para todos irritante.»
Quando aquela ave faladeira disse estas coisas à Vênus, repreendendo
seu filho Cupido, Vênus, com muita ira, exclamou fortemente:
-Parece que já aquele bom de meu filho tem alguma amiga; dá-me tanto
prazer, que me serve com mais amor que nenhuma, que me saiba o nome
daquela que enganou este moço de pouca idade: agora seja alguma das
ninfas, ou do número das deusas, ou agora seja das musas, ou do ministério de
meu agradecimento.»
Aquela ave faladeira não calou o que sabia, dizendo:
«Certo, senhora; não sei como se chama; penso, embora me lembro, que
seu filho morreu por uma moça chamada Psique.»
Então, Vênus, indignada, começou a dar vozes, dizendo:
«Certamente, ele deve amar àquela Psique que pensava ter meu gosto e
era invejosa de meu nome: pelo que mais tenho irritação neste negócio é que
me fez sua cúmplice, porque eu lhe mostrei e ensinei por onde conhecesse
aquela moça mortal.»
Desta maneira, brigando e gritando, rapidamente saiu do mar e foi logo à
Primeiro livro132
sua câmara, aonde achou seu filho mal, conforme o ouvira, e da porta começou
a dar vozes, dizendo desta maneira:
«Honesta coisa é, que cumpre muito a nossa honra e a sua boa fama o
que fizeram! Parece-lhe boa coisa menosprezar e ter em pouco os
mandamentos de sua mãe, que mais é sua senhora, dando-me pena com os
sujos amores de minha inimizade; a qual nesta sua pequena idade juntou
contigo com seus atrevidos e temerários pensamentos? Pensa você que tenho
eu de sofrer por amor à nora que seja minha inimiga? Mas, você, mentiroso e
corrompedor de bons costumes, presume que só é engendrado para os
amores; que eu, por ser já mulher de idade, não poderei parir outro Cupido?
Pois, quero agora que saiba: eu poderei engendrar outro muito melhor que
você; embora, porque mais sinta a injúria, adotarei por filho algum de meus
escravos e servidores; dar-lhe-ei asas, chamas de amor, com o arco e as setas;
tudo que dava a você, não para estas coisas em que você anda, que até bem
sabe você que dos bens de seu pai nada lhe dei para esta negociação; mas
você, como desde moço foi mau criado, tem as mãos agudas, muitas vezes,
sem reverência nenhuma, tocou aos seus maiores e até a mim, que sou sua
mãe. A mim mesma digo que, como parricida, cada dia me descobre e muitas
vezes me fere; agora me menospreza como se fosse viúva, inclusive não teme
seu padrasto, o deus Marte, muito forte e tão grande guerreador. Que não
posso eu dizer isto que você muitas vezes, por me dar pena, acostumou a lhe
dar mulheres? Mas, eu farei que se arrependa deste jogo; que você sinta bem
estas azedas e amargas bodas que fez; como isto que digo é muito, porque
este burlará de mim. Pois, o que farei agora, ou de que maneira castigarei a
este velhaco? Não sei se peço favor de minha inimiga Temperança, a qual eu
ofendi muitas vezes, pela luxúria e vício deste; como quer que assim seja, eu
Primeiro livro133
delibero de falar com esta dona, embora seja rústica e severa; pena recebo
nisso, mas, não é de desprezar o prazer de tanta vingança; por isso, eu quero
falar-lhe, que não há nenhuma outra que melhor castigue este mentiroso; tirelhe
as setas e o arco; dispa-lhe de todos os seus fogos de amores; não somente
fará isto, mas a sua pessoa mesma resistirá com fortes remédios. Então,
pensarei eu que minha injúria está satisfeita quando lhe raspar a cabeça
aqueles cabelos de cor de ouro, que muitas vezes lhe embelezei com estas
minhas mãos; quando lhe tosquiar aquelas asas que eu em minha saia
lubrifiquei com algas e almíscar muitas vezes.»
Depois que Vênus disse todas estas palavras, saiu muito zangada,
dizendo palavras de irritação; mas, a deusa Ceres e Juno, como a viram
zangada, foram acompanhá-la e perguntaram-lhe o que era a causa, porque
trazia o gesto tão turbado, e os olhos, que resplandeciam de tanta formosura,
trazia tão revoltos, mostrando sua irritação. Ela respondeu:
«A bom tempo vêm para me perguntar a causa desta irritação que trago,
embora não por minha vontade, mas sim, porque outro me deu isso; portanto,
eu rogo-lhes que com todas suas forças busquem àquela fugitiva de Psique,
onde quer que a encontrem, porque eu bem sei que vocês bem sabem toda a
história do que aconteceu em minha casa, deste filho que não ouso dizer que é
meu.»
Então elas, sabendo bem as coisas que passaram, desejando amansar a
ira de Vênus, começaram a falar desta maneira:
«Que tão grande delito pôde fazer seu filho que você, senhora, esteja
contra ele, zangada com tão grande teimosia e inflexibilidade; aquela que ele
muito ama, você deseje destruir? Porque lhe rogamos que olhe bem se for
Primeiro livro134
crime para este, que lhe parecesse bem uma donzela. Não sabe que é homem?
Se esqueceu já quantos anos tem seu filho? Porque é mancebo e formoso, você
pensa que é ainda moço? Você é sua mãe e mulher de juízo; sempre
experimentou os prazeres e jogos de seu luxo; você culpa-o; repreende suas
artes, vícios e amores; quer encerrar a tenda pública dos prazeres das
mulheres?»
Desta maneira elas queriam satisfazer ao deus Cupido, embora estava
ausente, por medo de suas setas. Mas, Vênus, vendo que elas tratavam sua
injúria burlando-se dela, deixando-as com a palavra na boca, quanto mais
rapidamente pôde tomou seu caminho para o mar, de onde saíra.
Primeiro livro135
Sexto livro
ARGUMENTO
Depois de procurar com muita fatiga ao Cupido; depois do que lhe avisou
Ceres, do mau acolher que achou em Juno, Psique, de sua própria vontade
ofereceu-se à Vênus; logo escreve a ascensão de Vênus ao céu e como pediu
ajuda aos deuses; quão soberba tratava à Psique, mandando-lhe que separasse
de um montão grande de todas as sementes cada linhagem de grãos por sua
parte, que lhe trouxesse o Velocino de Ouro; do licor, do lago infernal,
trouxesse-lhe um jarro cheio; deste modo trouxesse uma bolsa cheia de
formosura de Prosérpina; todas as quais feitas com ajuda dos deuses; Psique
casou com seu Cupido no conselho dos deuses. E suas bodas foram celebradas
no céu, do qual matrimônio nasceu o Deleite.
Primeiro livro136
CAPÍTULO I
Como Psique, muito machucada, chorando, foi ao templo de Ceres e ao
de Juno a lhes demandar socorro de sua fadiga, nenhuma lhe deu para não
zangar Vênus.
-Enquanto isso, Psique discorria, andava por diversas partes e caminhos;
procurando de dia e de noite, com muita ânsia e trabalho, se poderia achar
rastro de seu marido; tão mais lhe crescia o desejo de achá-lo, quanto era a
pena que trazia em buscá-lo; deliberava consigo que senão pudesse com suas
adulações, como sua mulher amansar, que ao menos como serva, com seus
rogos e orações o aplacaria. Indo nisto pensando viu um templo em cima de
tão alto monte, e disse:
«Onde sei eu agora se por ventura meu senhor mora neste templo?»
Logo endireitou o passo para lá, o qual como que já desfalecia pelos
grandes e contínuos trabalhos; mas, a esperança de achar seu marido a
aliviava. Assim, havendo já subido e passado todos aqueles Montes, chegou ao
templo e entrou; onde viu muitas espigas de trigo e cevada; foices e outros
instrumentos para segar; mas, tudo estava pelo chão, sem nenhuma ordem,
confuso, como costumam fazer os colhedores quando o trabalho lhes cai das
mãos. Psique, como viu todas estas coisas derramadas, começou a separar
cada coisa por sua parte, compô-las e embelezando tudo; pensando, com
razão, que de nenhum deus se devem menosprezar as cerimônias, antes,
procurar sempre ter propícia sua misericórdia. Estando Psique embelezando e
compondo estas coisas entrou a deusa Ceres, quando a viu, começou de longe
a dar grandes vozes, dizendo:
«Oh, Psique desventurada! A deusa Vênus anda por todo mundo com
Primeiro livro137
maior anseio, procurando rastro de si; com quanta fúria pode, deseja e busca
trazer-lhe para a morte; com toda a força de sua deidade procura haver
vingança e você agora está aqui cuidando de minhas coisas. Como você pode
pensar outra coisa, a não ser o que cumpre à sua saúde?»
Então, Psique lançou-se a seus pés, começou a regar com suas lágrimas
e varrer a terra com seus cabelos; suplicando e pedindo-lhe perdão com muitos
rogos e preces, dizendo:
«Rogo-lhe, senhora, pela sua mão direita, mão semeadora dos pães;
pelas cerimônias alegres das sementeiras; pelos segredos das cestas de pão;
pelos carros que trazem os dragões, seus servos; pelas aradas e campos da
Sicília; pelo carro de Plutão que arrebatou à Prosérpina; pela descendência de
suas bodas; pelo regresso, quando retornou com as tochas ardendo de
procurar a sua filha; pelo sacrifício da cidade eleusínias; pelas outras coisas e
sacrifícios que se fazem em silêncio; que socorra a triste alma de sua serva
Psique; consinta-me que entre estes montões de espigas possa esconder-me
alguns poucos dias, até que a cruel ira de tão grande deusa, como é Vênus, por
espaço de algum tempo se amanse, ou até que ao menos minhas forças,
cansadas de tão contínuo trabalho, com um pouco de repouso se restituam.»
Ceres respondeu-lhe:
«Certamente, comovi a compaixão por ver suas lágrimas e o que me
roga; desejo ajuda-la; mas, não quero incorrer em desgraça daquela boa
mulher de minha cunhada, com a qual tenho antiga amizade. Assim, você,
parte logo depois de minha casa, e recebe em graça que não foi presa por
mim, nem retida.»
Quando isto ouviu Psique, contra o que ela pensava, afligida por dobrada
pena e irritação tomou seu caminho, retornando para trás; viu um formoso
Primeiro livro138
templo, que estava em uma selva de árvores muito grandes, em um vale, o
qual era edificado muito polidamente; como se ela tivesse por sorte, nenhuma
via duvidosa, ou de melhor esperança, jamais deixar de provar; que andava
procurando socorro de qualquer deus que achasse; chegou à porta do templo e
viu muito ricos dotes de roupas e vestimentas penduradas nos postes e ramos
das árvores, com letras de ouro que declaravam a causa por que eram ali
oferecidas e o nome da deusa a quem ofereciam. Então, Psique, os joelhos
fincados, abraçando com suas mãos o altar e limpando as lágrimas de seus
olhos, começou a dizer desta maneira:
«Oh, você, Juno, mulher e irmã do grande Júpiter! Ou você está no antigo
templo da ilha de Samos, a qual se glorifica porque você nasceu ali e se criou;
ou está nas cadeiras da alta cidade de Cartago, a qual lhe adora como donzela
que foi levada ao céu em cima de um leão; ou se por ventura está na ribeira do
rio Inaco, o qual lhe faz comemoração; que é casada com Júpiter e rainha das
deusas; ou você está nas cidades magníficas dos gregos, aonde todo Oriente
honra-lhe como deusa dos casamentos e todo Ocidente chama-a de Lucina; ou
onde quer que esteja, rogo-lhe que socorra minhas extremas necessidades; a
mim, que estou fatigada de tantos trabalhos passados, rogo-lhe liberar-me de
tão grande perigo que está sobre mim; porque eu bem sei, que de sua própria
vontade costuma socorrer quão fecundadas estão em perigo de parir.»
Acabando de dizer isto, logo apareceu-lhe a deusa Juno, com toda sua
majestade, e disse:
«Por Deus, que eu queria dar meu favor e tudo o que pudesse à suas
rogativas, mas contra a vontade de Vênus, minha nora, a qual sempre amei em
lugar de minha filha, não o poderia fazer, porque a vergonha resiste. Além
Primeiro livro139
disto, as leis proibem que ninguém possa receber aos escravos fugitivos contra
a vontade de seus senhores.»
Primeiro livro140
CAPÍTULO II
Como cansada de procurar remédio para achar seu marido Cupido,
Psique, acertou de apresentar-se diante de Vênus por lhe demandar mercê,
porque Mercúrio a pregoara, e como Vênus a recebeu.
Com este naufrágio da fortuna, espantada, Psique vendo do mesmo
modo, que já não podia alcançar a seu marido, que andava voando, desesperase
por toda sua saúde, começou a aconselhar-se com seu pensamento nesta
maneira: Que remédio se pode já procurar, nem tentar para minhas penas e
trabalhos aos quais o favor e ajuda das deusas, embora elas o queriam, não
pôde aproveitar? Porque assim é, aonde poderia eu fugir, estando cercada de
tantos laços? Que casas, ou em que subterrâneos poderia esconder-me dos
olhos inevitáveis da grande deusa Vênus? Porque não pode fugir, toma coração
de homem e fortemente, resiste à quebrada e perdida esperança, ofereço-lhe
de sua própria vontade à sua senhora; com esta obediência, embora seja
tarde, amansará seu ímpeto e sanha. Sabe você se por ventura achará ali, na
casa da mãe, ao que muitos dias faz que anda a procurar? Desta maneira
equipada para o duvidoso serviço e certo fim, pensava consigo o princípio de
sua futura súplica. Neste meio tempo, Vênus, zangada de andar procurando
Psique pela terra, achou de subir ao céu; mandando equipar seu carro, o qual
Vulcano, seu marido, muito sutil e polidamente fabricara, dar-lhe-ia em penhor
de seu casamento, feito as rodas à maneira da Lua, muito rico e precioso; com
dano de tanto ouro e de muitas outras aves, que estavam perto da câmara de
Vênus, saíram quatro pombas muito brancas, pintados os pescoços, e puseram
para levar o carro; recebida a senhora em cima do carro, começaram a voar
alegremente; depois atrás do carro de Vênus começaram a voar muitos
Primeiro livro141
pássaros e aves, que cantavam muito docemente, fazendo saber quando vinha
Vênus. As nuvens deram lugar, os céus se abriram e o mais alto deles recebeua
alegremente; as aves foram cantando; com ela não temiam as águias e
falcões que encontravam. Desta maneira, Vênus, chega ao palácio real de
Júpiter; com muita ousadia e atrevimento, pediu ao Júpiter que mandasse ao
deus Mercúrio lhe ajudasse com sua voz, que havia mister para certo negócio.
Júpiter, outorgou-o e mandou que assim se fizesse. Então ela, alegremente,
acompanhada por Mercúrio, partiu-se do céu, a qual desta maneira falou com
Mercúrio:
«Irmão de Arcádia, você sabe bem que sua irmã Vênus nunca fez coisa
alguma sem sua ajuda e presença; agora você não ignora quanto tempo há
que eu não posso achar àquela minha serva, que anda escondendo-se de mim;
assim já não tenho outro remédio; mas, sim você, publicamente, pregoe que
darei grande prêmio a quem a descobrir. Portanto, rogo-lhe que faça
rapidamente o que digo. Em seu pregão dá os sinais e indícios, por onde
rapidamente, se possa conhecer. Porque se algum incorrer em crime de
encobri-la ilicitamente, não se possa defender alegando ignorância.»
Dizendo isto, deu-lhe um memorial no qual se continha o nome de Psique
e as outras coisas que tinha que pregoar. Feito isto, logo se foi à sua casa. Não
esqueceu Mercúrio o que Vênus lhe mandou fazer; logo se foi por todas as
cidades e lugares, pregoando desta maneira: Se algum tomar ou mostrar onde
está Psique, filha do rei e serva de Vênus, que anda desaparecida, venha-se à
Mercúrio, pregoeiro, que está depois do templo de Vênus; ali receberá por
galardão de seu indício, da mesma deusa Vênus, sete beijos muito suaves e
outro muito mais doce. Desta maneira pregoando Mercúrio, todos os que o
ouviam, com cobiça de tanto prêmio, enfeitaram-se para procurá-la. Tal coisa,
Primeiro livro142
ouvida por Psique, tirou-lhe toda tardança de apresentar-se diante de Vênus;
chegando ela às portas de sua senhora, saía dela uma donzela de Vênus, de
nome Costume, a qual, quando viu Psique, começou a dar grandes vozes,
dizendo:
«Você, dona, má escrava, até que já sente que têm senhora: até sobre
toda a maldade de suas más manhas, finge agora que não sabe quanto
trabalho passamos buscando-a. Mas bem está, porque caiu em minhas mãos;
faz conta que caiu no cárcere do inferno, onde não poderá sair, rapidamente,
receberá as penas de sua contumácia e rebeldia.»
Dizendo isto, arremeteu a ela, com grande audácia, com as mãos, puxoulhe
os cabelos e começou a levá-la diante Vênus; com o que Psique não resistia
à ida. Assim, logo que Vênus a viu começou a rir como revistam fazer todos os
que estão com muita ira, e meneando a cabeça, arranhando-se na orelha,
começou a dizer:
«Basta, que já esteja contente de falar com sua sogra; por certo, antes
acredito eu que o fez para ver seu marido, que está à morte das chagas de
suas mãos; mas, está segura que eu a receberei como convém a boa nora.»
Quando disse isto, mandou chamar suas criadas, Costume e a Tristeza, às
quais, como vieram, mandou que açoitassem à Psique. Elas, seguindo o
mandamento de sua senhora, deram tantos de açoites à coitada Psique, que a
afligiram e atormentaram; assim, voltaram a apresentar outra vez diante de
sua senhora. Quando Vênus a viu começou outra vez a rir, e disse:
«E até vê como no mexerico de seu ventre inchado comove-nos a
misericórdia? Pensa fazer-me avó bem ditosa com o que sair desta sua
gravidez? Ditosa eu, que na flor de minha juventude chamar-me-ão avó e o
Primeiro livro143
filho de uma mortal velhaca ouvirá que lhe chame neto de Vênus. Mas, néscia
eu sou nisto, porque muito posso eu dizer que meu filho é casado, porque
estas bodas não são entre pessoas iguais; além disto, fizeram em um monte
sem testemunhas e não consentindo seu pai, pelo qual estas bodas não se
podem dizer legitimamente feitas; e por isto, se eu consentir que você tenha
que parir, ao menos, nascerá de si um bastardo.»
Dizendo isto, arremeteu com ela e rompeu-lhe a touca, travando-lhe os
cabelos e dando-lhe cabeçadas, que a afligiu gravemente; logo tomou trigo,
cevada, milho, sementes de adormideiras, grãos-de-bico, lentilhas e favas;
tudo misturado e feito em um grande monte, disse à Psique:
«Você parece-me tão disforme e velhaca mortal, que com nada postergue
seus apaixonados, a não ser com os muitos serviços que lhes faz. Pois, eu
quero agora experimentar sua diligência. Afasta todos os grãos destas
sementes que estão juntas neste montão, e cada semente destas, muito bem
dispostas e separa-as por si, tem-me isso que dar antes da noite.»
Dito isto, ela foi jantar às bodas de seus deuses. Psique, embargada com
a grandeza daquele mandamento, estava discretamente como uma morta, que
nunca elevava a mão a começar tão grande obra para nunca acabar. Então,
aquela pequena formiga do campo, havendo afronta de tão grande trabalho e
dificuldade, como era o da mulher do grande deus do amor, amaldiçoando a
crueldade de sua sogra Vênus, discorreu rapidamente por esses campos,
chamou, rogou a todas as batalhas e multidões de formigas dizendo-lhes:
«Oh, sutis filhas e criadas da terra, mãe de todas as coisas, haja
misericórdia, pena e socorram com muita velocidade a uma moça mortal
formosa, mulher do deus do Amor, que está em muito perigo!»
Primeiro livro144
Então, como ondas de água, vinham infinitas formigas caindo umas sobre
as outras, e com muita diligência cada uma, grão a grão, apartaram todo o
monte. Depois de afastados e divididos todos os gêneros de grãos de cada
montão sobre si, rapidamente, foram-se dali. Logo, ao começo da noite, Vênus,
voltando de sua festa, farta de vinho e muito cheirosa, repleta toda a cabeça e
corpo de rosas resplandecentes, vista a diligência do grande trabalho, disse:
«Oh má! Não é sua, nem de suas mãos esta obra, mas, sim daquele a
quem você por seu mal e por ele fez.»
Dizendo isto, deu-lhe um pedaço de pão, para que comesse e fosse
deitar. Enquanto isso, o Cupido estava sozinho e encerrado em uma câmara, a
qual estava mais para dentro de casa; na qual estava ali encerrado assim, para
que a ferida não se danificasse, se algum mau desejo lhe viesse; como para
que não falasse com sua amada Psique. Desta maneira, dentro de uma casa e
debaixo de um coberto, afastados os apaixonados, com muita fadiga passaram
aquela noite negra e muito obscura.
Primeiro livro145
CAPÍTULO III
No qual trata como a velha, procedendo em seu muito longo conto, narra
os trabalhos que Vênus deu à Psique, para lhe dar ocasião de se desesperar e
morrer. E como, por comiseração dos deuses, Vênus a perdoou, e com muito
prazer celebraram-se as bodas no céu.
Depois que amanheceu, mandou Vênus chamar a Psique e disse desta
maneira:
«Vê você, aquela floresta, por onde passa aquele rio, que tem aquelas
grandes árvores ao redor, debaixo do qual está uma fonte perto? E vê aquelas
ovelhas resplandecentes e de cor de ouro que andam por ali pastando sem que
ninguém as guarde? Pois, vai logo lá, traga-me a flor de seu precioso velocino
de qualquer maneira que o possa fazer.»
Psique, com muito gosto foi para lá, não com pensamento de fazer o que
Vênus lhe mandara, mas sim, para dar fim à seus males, lançando-se de um
penhasco daqueles dentro do rio. Quando Psique chegou ao rio, uma cana
verde, que é mãe da música suave, meneada por um doce ar por inspiração
divina, falou desta maneira:
«Psique, você que sofreste tantas tribulações, não queira sujar minhas
santas águas com sua misérrima morte, nem tampouco, chegue a estas
espantosas ovelhas, porque tomando o calor e ardor do Sol revistam ser muito
raivosas; com os chifres agudos e as frentes de pedra, até mordendo com os
dentes venenosos, matam a muitos homens. Mas, depois que passar o ardor do
meio-dia, as ovelhas repousarão à frescura do rio, poderá esconder-se debaixo
daquele alto plátano, que bebe da água deste rio que eu bebo. Quando você
vir que as ovelhas, posposta toda sua ferocidade, começam a dormir, sacudirá
Primeiro livro146
os ramos e folhas daquele monte que está perto delas e ali achará as jubas de
ouro que se pegam por aquelas matas quando as ovelhas passam.»
Desta maneira a cana, por sua virtude e humanidade, ensinava à pobre
Psique de como se remediar. Ela, quando isto ouviu, não foi negligente em
cumpri-lo. Mas, fazendo e guardando tudo o que ela disse, furtou o ouro com a
lã daqueles Montes; pegou, trouxe e jogou-o no regaço de Vênus. Contudo,
nunca mereceu perto de sua senhora seu galardão segundo seu trabalho,
antes, torcendo as sobrancelhas com uma risada falsa, disse desta maneira:
«Tampouco acredito eu agora, nisto que você fez, não faltou quem lhe
ajudasse falsamente. Entretanto, eu quero experimentar se por ventura você o
faz com seu esforço e prudência, ou com ajuda de outro; portanto, olhe bem
aquela altura daquele monte, aonde estão aqueles penhascos muito altos, de
onde sai um bebedouro muito negro; desce por aquele vale, onde faz aquelas
lacunas negras e turvas; e dali saem alguns arroios infernais. Dali, da altura
onde sai aquela fonte, traga-me este copo cheio de rocio daquela água.»
Dizendo isto, deu-lhe um copo de cristal, ameaçando-a com palavras
ásperas senão cumprisse o que lhe mandava. Psique, quando isto ouviu,
rapidamente, se foi para aquele monte, para subir em cima dele e dali deitarse,
para dar fim à sua amarga vida. Porém, quando chegou ao redor daquele
monte, viu uma mortal e grandiosa dificuldade para chegar nele, porque
estava ali um penhasco muito alto que parecia que chegava ao céu, tão liso,
que não havia quem por ele pudesse subir; acima daquele saía um bebedouro
negro e espantável, o qual, saindo de sua nação, corria por aqueles penhascos
abaixo e vinha por um canal estreito cercado de muitas árvores; do qual vinha
um vale grande, que estava cercado de uma parte e de outra de grandes
Primeiro livro147
penhascos; aonde moravam dragões muito espantáveis, com os pescoços
elevados e os olhos tão abertos, para velar, que jamais os fechavam, nem
pestanejavam, de tal maneira, que, perpetuamente, estavam em vigília;
quando ela chegou ali, as mesmas águas falaram-lhe, dizendo-lhe muitas
vezes:
«Psique, afaste-se daí, olhe muito bem o que faz. E guarde-se de fazer o
que quer; foge logo, se não, prova que morrerá.»
Quando Psique viu a impossibilidade que tinha de chegar àquele lugar,
tornou-se como uma pedra; e, embora estava presente com o corpo, estava
ausente com o sentido. De tal maneira, que com grande medo do perigo
estava tão morta, que carecia do último consolo e distração das lágrimas. Mas,
não pôde esconder-se aos olhos da Providência, tanta fadiga e confusão da
inocente Psique, a qual, estando nesta fadiga, aquela ave real de Júpiter que se
chama águia, abertas as asas, veio voando, subitamente, recordando do
serviço que antigamente fez Cupido à Júpiter, quando por sua diligência
arrebatou ao Ganimedes, o troiano, para seu corpo, querendo dar ajuda e
pagar o benefício recebido, em ajudar aos trabalhos de Psique, mulher de
Cupido, deixou de voar pelo céu, chegou a presença de Psique e disse-lhe
desta maneira:
«Como você é tão simples e néscia de tais coisas, que espera poder
furtar nem somente tocar uma só gota desta fonte não menos cruel que muito
santo? Você nunca ouviu alguma vez que estas águas estígeas são espantáveis
aos deuses e até mesmo à Júpiter? Além disto, os mortais, juram pelos deuses,
mas os deuses costumam jurar pela majestade do lago Estige; mas, dê-me
este copo que traz.»
Primeiro livro148
O qual lhe deu e a águia o arrebatou da mão muito disposto; voando
entre as bocas, dentes cruéis e as línguas de três ordens daqueles dragões; foi
à água e encheu o copo, consentindo a mesma água; até lhe admoestando,
que rapidamente se fosse, antes que os dragões a matassem. A águia, fingindo
que por mandato da deusa Vênus e para seu serviço viera por aquela água,
pela qual causa mais facilmente chegou a encher o copo e sair livre com ela;
desta maneira, retornou com muito prazer e deu o copo à Psique, cheio de
água; a qual levou logo à deusa Vênus. Contudo, nunca pôde aplacar, nem
amansar a crueldade de Vênus; antes ela, com sua risada mortal, como
costumava, falou ameaçando-a com maiores e piores torturas, dizendo:
«Já você me parece uma maga e grande feiticeira, porque muito bem
obtemperou meus mandamentos e fez o que eu mandei; todavia, você, luz de
meus olhos, ainda retira outra coisa que tem que fazer. Toma esta bolsa, a qual
lhe dou; vai aos palácios do inferno, dará esta bolsa à Prosérpina, dizendo-lhe:
Vênus roga-lhe que lhe dê aqui um pouco de sua formosura, que baste sequer
para um dia, porque tudo quão formoso ela tinha o perdeu e consumou
curando a seu filho Cupido, que está muito mal; volta disposta com ela, porque
tenho necessidade de lavar a cara com isto para entrar no teatro e festa dos
deuses.»
Então, Psique, abertamente, sentiu seu último fim e que era compelida,
rapidamente, à morte que lhe preparava. Que maravilha pensava, porque era
compelida a que, de sua própria vontade, e por seus próprios pés entrasse no
inferno, onde estavam as almas dos mortos? Com este pensamento, não
demorou muito, que se foi a uma torre muita alta para retornar dali abaixo,
porque desta maneira ela pensava descer muito disposta e, diretamente, aos
infernos. Todavia, a torre falou desta maneira: «por que, coitada de si, quer se
Primeiro livro149
matar, jogando-se daqui abaixo, porque já este é o perigo e trabalho que tem
que passar? Porque se uma vez sua alma separar-se de seu corpo, bem poderá
ir de certo ao inferno. Porém, acredite-me, que de maneira nenhuma poderá
voltar a sair dali. Não está muito longe daqui uma nobre cidade de Achaya, que
se chama Lacedemonia; perto desta cidade procura um monte que se chama
Tenaro, o qual está afastado em lugares remotos. Neste monte está uma porta
do inferno, pela boca daquela cova mostra-se um caminho sem caminhantes,
por onde se você entrar, em passando a soleira da porta, pelo canal da cova
direita, poderá ir até os palácios do rei Plutão; mas, não entenda que tem que
levar as mãos vazias, porque lhe convém levar em cada uma das mãos uma
sopa de pão molhada em melado, e na boca tem que levar duas moedas;
depois que já tiver andado boa parte daquele caminho da morte achará um
asno preso carregado de lenha; com ele um cavaleiro, também preso, o qual
lhe rogará que lhe dê certos antros para jogar na carga que lhe cai; porém,
você passe calada, sem lhe falar palavra; depois, quando chegar ao rio morto
onde está Caronte, ele pedirá o pedágio, porque assim passa ele em seu barco
do outro lado para os mortos que ali chegam; porque tem que saber que até ali
entre os mortos há avareza, que nem Caronte, nem aquele grande rei Plutão
fazem coisa alguma de graça; se algum pobre morre cumpre-lhe buscar
dinheiro para o caminho, porque senão os levar na mão não passarão dali. A
este velho dará em nome do frete uma moeda daquelas que levar; mas, tem
que ser ele mesmo, tome-a com sua mão de sua boca. Depois que houver
passado este rio morto achará outro velho morto e podre que anda nadando
sobre as águas daquele rio, e elevando as mãos lhe rogará que o receba dentro
do barco; todavia, você não tenha piedade, que não lhe convém. Passado o rio
e andando um pouco adiante achará umas velhas tecedeiras, tecendo um
Primeiro livro150
tecido, as quais lhe rogarão que lhes toque as mãos; porém, não o faça, porque
não convém lhes tocar de maneira nenhuma. Tem que saber que todas estas
coisas e outras muitas nascem das armadilhas de Vênus, que queria que lhe
pudessem tirar das mãos uma daquelas sopas, a qual seria muito grave dano,
porque se uma delas perdesse, jamais voltaria a esta vida. Ademais, saiba que
está um pouco adiante um cão grandioso, que tem três cabeças, o qual é muito
espantável; ladrando com aquelas bocas abertas espanta aos mortos, aos
quais já nenhum mal pode fazer; e sempre vela ante a porta do obscuro palácio
de Prosérpina, guardando a casa vazia de Plutão. Quando aqui chegar, com
uma sopa que lhe lance o freará e poderá logo passar facilmente; entrará
aonde está Prosérpina, a qual a receberá benigna e alegremente; mandar-lhe-á
sentar e dará muito bem de comer. Todavia, sente-se no chão e come daquele
pão negro que lhe derem; pede logo depois, da parte daquilo Vênus, por quem
vem, e recebido o que lhe derem na bolsa, quando retornar, amansará a raiva
daquele cão com a outra sopa. Quando chegar ao barqueiro avarento, dar-lhe-á
a outra moeda que guardou na boca; passando aquele rio retornará pelas
mesmas pisadas por onde entrou, e assim verá esta claridade celestial.
Sobretudo, as coisas disponho-lhe que guarde uma; que de maneira nenhuma
trate de abrir, nem olhar o que traz na bolsa, nem procure ver o tesouro
escondido da divina formosura.»
Desta maneira aquela torre, havendo afronta de Psique, declarou-lhe o
que lhe era mister de adivinhar. Não demorou Psique, que logo se foi ao monte
Tenaro; tomadas aquelas moedas e aquelas sopas como lhe mandou a torre,
entrou por aquela boca do inferno; passando aquele, discretamente, cavaleiro
coxo; pagou ao Caronte seu frete por que lhe passasse; menosprezado deste
modo o desejo daquele velho morto que nadava; também, não atendendo os
Primeiro livro151
enganosos rogos dos velhos tecedores; amansando a raiva daquele temeroso
cão com o manjar daquela sopa, chegou, passando tudo isto, aos palácios de
Prosérpina; porém, não quis aceitar o assentamento que Prosérpina lhe
mandava dar, nem quis comer daquele manjar que lhe ofereciam; mas,
humildemente, sentou-se ante seus pés, e contente com um pedaço de pão
baço, expô-lhe a empreitada que trazia de Vênus; e logo, Prosérpina encheulhe
a bolsa secretamente do que pedia; a qual logo partiu, aplacado o ladrar e
a braveza do cão infernal com o engano da outra sopa que ficava; dando a
outra moeda ao Caronte, o barqueiro, por que a passasse, voltou do inferno
mais esforçada do que entrou. Depois de adorada a clara luz do dia, que voltou
a ver, como queria cumprir isto, acabava o serviço que Vênus mandara, vindolhe
ao pensamento uma temerária curiosidade, dizendo:
«Bem sou eu néscia trazendo comigo a divina formosura que não tome
dela sequer um pouco para mim, para que possa agradar àquele meu formoso
apaixonado.»
Quando isto disse, abriu a bolsa, dentro da qual nada havia, nem
formosura alguma, salvo um sonho infernal e profundo, o qual destampado,
cobriu à Psique de uma névoa de sonho grosso, que todos seus membros
tomou e possuiu; no mesmo caminho por onde vinha, caiu dormindo como uma
coisa morta. Mas, Cupido, já que convalescia de sua chaga, não podendo
tolerar, nem sofrer a longa ausência de sua amiga, estando já bem disposto, as
asas restauradas, porque havia dias que folgava, saiu por uma janela pequena
de sua câmara, onde estava encerrado; foi disposto a socorrer sua mulher
Psique; separando dela o sono, arrojado outra vez dentro na bolsa, tocou,
levemente, à Psique com uma de suas setas e despertou-a dizendo-lhe:
Primeiro livro152
«Até você, mesquinha de si, não castiga, que por pouco fosse morta por
semelhante curiosidade que a que fez comigo? Mas, vê agora com a
empreitada que minha mãe lhe mandou, enquanto isso, eu proverei em outro
que for mister.»
Dito isto, levantou-se com suas asas e voou. Psique levou o que trazia de
Prosérpina e deu à Vênus; enquanto isso, Cupido, que andava muito fatigado
do grande amor, a cara amarela, temendo a severidade não acostumada de
sua mãe, retornou-se à arena de seu peito; com suas ligeiras asas voou ao céu
e suplicou ao grande Júpiter que lhe ajudasse; e contou-lhe toda sua causa.
Então Júpiter pegou-lhe pela barba, trazendo-lhe a cara com as mãos começou
a beija-lo, dizendo:
«Como quero você, senhor filho, nunca me guardou a honra que se deve
aos pais por mandamento dos deuses; mas, até este mesmo peito, no qual se
encerram e dispõem todas as leis dos elementos; às vezes das estrelas, muitas
vezes o feriu com contínuos golpes do amor; sujou com muitos laços de
terrestre luxúria; aleijou minha honra e fama com adultérios torpes; sujos
contra as leis, especialmente, contra a lei Julia, e à pública disciplina;
transformando minha cara e formosura em serpentes, em fogos, em bestas,
em aves e em qualquer outro ganho. Contudo, recordando-me de minha
mansidão e de que você cresceu entre estas minhas mãos, eu farei tudo o que
você quer, e você saiba guardar-se de outros que desejam o que você deseja.
Isto seja como uma condição: que se você souber de alguma donzela formosa
na terra, que por este benefício que de mim recebe deve me pagar com ela a
recompensa.»
Depois que isto falou, mandou a Mercúrio que chamasse a todos os
Primeiro livro153
deuses ao conselho; e se algum deles faltasse, que pagasse dez mil talentos de
pena. Por tal medo todos vieram e encheu o palácio onde estava Júpiter, o
qual, situado na cadeira alta, começou a dizer desta maneira:
«Oh, deuses, escritos no branco das musas! Vocês todos sabem como
este mancebo que eu criei em minhas mãos procurei refrear os ímpetos e
movimentos ardentes de sua primeira juventude. Mas, já basta, que ele é
infamado entre todos de adultérios e de outras corrupções, pelo qual é bem
que se tire toda ocasião, e para isto me parece que sua licença de juventude
deve-se atar com laço de matrimônio. Ele escolheu uma donzela, a qual privou
de sua virgindade: tenha-a, possua-a e sempre use de seus amores.»
E dizendo isto, voltou a cara à Vênus e disse-lhe:
«Você, filha, não se entristeça por isso; não tema a sua linhagem nem ao
estado do matrimônio mortal, porque eu farei que estas bodas não sejam
desiguais, mas legítimas ou ordenadas como o direito o manda.»
Logo mandou a Mercúrio que tomasse à Psique e a subisse ao céu, a qual
Júpiter deu a beber do vinho aos deuses, dizendo-lhe:
«Toma, Psique, bebe isto e será imortal; Cupido nunca se separará de si;
estas suas bodas durarão para sempre.»
Dito isto, não demorou muito quando veio o jantar muito abundante,
como à tais bodas convinha. Estava sentado à mesa Cupido no primeiro lugar e
Psique em seu regaço. Na outra parte estava Júpiter com Juno, sua mulher, e
depois, por ordem, todos os outros deuses. O vinho de alfajor, que é um vinho
dos deuses, subministrando Ganimedes ao Júpiter, como corpo dele, e aos
outros, o deus Baco. Vulcano, cozinhava o jantar; as ninfas, enchiam de flores,
rosas e outros aromas a sala onde jantavam; as musas cantavam muito
Primeiro livro154
docemente; Apolo cantava com sua viola; Vênus entrou na suave música e
dançou belamente. Desta maneira era o convite ordenado: que o coro das
musas cantasse e o sátiro tocasse a gaita de fole e o deus Pan tangesse um
tamboril. Desta maneira veio Psique em mãos do deus Cupido.
Estando já Psique em tempo de parir, nasceu-lhes uma filha, a qual
chamamos Prazer.
Desta maneira aquela idosa louca e leviana contava este conto à donzela
cativa; mas eu, como estava ali perto, ouvia tudo, doía-me que não tinha tinta,
papel para escrever e anotar tão formosa novela.»
Primeiro livro155
CAPÍTULO IV
Como, depois que a velha acabou de contar esta fábula a uma donzela,
para consolá-la, vieram os ladrões, e como, tornando-se a ausentar, provou
Lucio a libertar-se com fuga, levando consigo à donzela, e topando aos ladrões
no caminho, voltaram ameaçando-os de morte.
Nisto entraram os ladrões pela porta, carregados, dizendo que brigaram
muito fortemente; deixados na casa alguns dos feridos para que curassem
suas chagas, alguns dos outros mais esforçados retornavam, conforme diziam,
por certos fardos e coisas que deixaram escondidas em uma cova; logo,
comeram muito depressa e arrebatadamente; tiraram do estábulo eu e o meu
cavalo, dando-nos boas varadas para que trouxéssemos aquelas coisas; postos
no caminho, passadas muitas costas e vales, indo muito fatigados, quase de
noite chegamos a uma cova, de onde, carregados de muitas coisas, que em
pouco de tempo não nos deixaram descansar, voltaram ao caminho; eles se
apressavam com tanto medo, que com os muitos paus que me davam,
empurrando-me para que andasse; lançaram-me e fizeram-me cair sobre uma
pedra que estava perto do caminho, de onde recebi tantos golpes e
chibatadas, que para me levantar, aleijaram-me a perna direita e no casco da
mão sinistra. E como eu comecei a andar coxeando, um daqueles ladrões
disse:
-Até quando temos que manter atrofiado a este asno cansado e até agora
coxo?
Ao qual outro respondeu:
-O que se maravilha? Que com mau pé entrou em nossa casa; depois que
a nosso poder veio, nunca houvemos outro bom ganho, a não ser feridas e
Primeiro livro156
mortes de nossos companheiros.
Nisto acrescentou outro:
-Certo, o que eu faria é que, como ele, embora o pesar, levou esta carga
até em casa, logo lhe lançaria desses penhascos abaixo para que desse de
comer e fosse manjar agradável dos abutres.
De tanto que os mansos e misericordiosos homens entre si brigavam de
minha morte, chegamos à casa, porque o temor da morte me fez asas nos pés.
Quando chegamos, logo rapidamente, tiraram-nos de cima o que levávamos;
não cuidando de nossa saúde, nem tampouco de minha morte, chamaram seus
companheiros que ficaram em casa feridos; segundo o que eles diziam, era
para lhes contar a irritação que tiveram com nossa tardança. Em tudo isto, não
tinha eu pouco medo da morte, de que me ameaçaram, e pensando nela dizia
comigo desta maneira:
-No que está, Lucio? Que coisa mais extrema pode esperar? Esta morte
muito cruel está equipada por deliberação e acordo dos ladrões, e no certo
perigo pouco aproveita o esforço. Vê estes riscos e penhascos muito agudos? A
qualquer parte que cair por elas lhe desmembrará e fará pedaços; porque a
arte mágica que você andava a procurar não lhe deu tão somente a cara, as
fadigas e trabalhos de asno; mas, não couro grosso como de asno, a não ser,
magro e muito sutil, como de andorinha. Porque assim é, por que não se
esforça e enquanto pode provê a sua saúde? Tem agora muito boa
oportunidade para fugir, enquanto os ladrões não estão em casa, tem que
temer, por ventura, a guarda de uma velha meio morta, a qual pode matar
com um coice com sua pata coxa? Mas, até onde poderei fugir? Ou quem me
acolherá em sua casa? Este pensamento, certo, parece-me néscio e de asno;
Primeiro livro157
pois, que caminhante me achará no caminho que não cavalgue em cima de
mim e leve-me consigo?
Dizendo isto, com muito alegre esforço, quebrei o cabresto com que me
ataram e pus-me a correr quanto mais disposto pude; mas, não podendo fugir
os olhos de falcão daquela falsa velha, a qual, quando me viu solto, tomou
audácia e esforço, mais que sua idade e condição podiam dar-lhe, arrebatoume
pelo cabresto e instou a querer retornar por força ao estábulo; mas eu,
recordando-me do propósito mortal daqueles ladrões, não me movi à piedade
alguma, antes, elevados os pés, dava-lhe um par de coices naqueles peitos,
que dava com ela em terra. A velha, como queria, estava em terra, ainda me
tinha fortemente pelo cabresto, de maneira que, embora eu corria, levava-a
meio arrastanda; a qual logo começou com grandes vozes e gritos a pedir
ajuda de outra força maior que a sua; mas, a ninguém chamava ajuda com
suas vozes, porque ninguém ouvia que lhe pudesse socorrer, salvo aquela
donzela que ali estava presa, a qual, às vozes que a velha dava, saiu e viu uma
festa de aparato para ver. Convém saber: a idosa, travada não de um touro,
mas de um asno, e como aquilo viu, tomada em si força de varão, ousou fazer
uma façanha muito formosa; travou-me com suas mãos no cabresto e com
palavras de adulação começou a deter um pouco, saltou em cima de mim;
desde que ali se viu incitava-me outra vez para que corresse; eu assim, pela
vontade que tinha de fugir como por escapar aquela donzela, também, por
quão varadas muitas vezes me dava, corria como um cavalo, saltando quanto
podia; tentava responder às delicadas palavras da donzela, até algumas vezes,
fingindo-me querer arranhar no espinhaço, voltava a cabeça e beijava os
formosos pés da moça. Então ela, com grande suspiro, olhando em marco até o
céu, disse:
Primeiro livro158
-Oh, soberanos deuses, dêem ajuda e favor à meus extremos perigos; e
você, cruel fortuna, deixe-me já de perseguir; já basta, que já lhe sacrifiquei
com estas minhas penas e tribulações; você, trata de minha liberdade e de
minha saúde; se me levar sã e salva à minha casa, voltar à meus pais e à meu
formoso marido, quantas graças lhe darei! Quantas honras lhe farei! Primeiro
estas suas crinas muito bem penteadas; adorna-lo-ei com minhas jóias, que me
deu meu marido; em sua frente penteada farei uma repartição; as cerdas de
sua cauda, que por negligência estão revoltas e mal cuidadas, com muita
diligência as polirei e embelezarei; todo o adornarei com placas de ouro, que
resplandeça como as estrelas do céu, como quando em algum triunfo o povo
sai com muita pompa e gozo a receber ao que trunfa; de contínuo trarei no
seio, debaixo da vestimenta de seda, avelãs e outros manjares delicados para
engordar a si, meu salvador e conservador; mas, entre estes manjares e a
perpétua liberdade que terá, a qual é felicidade de toda a vida, não lhe faltará
glória de sua honra. Porque eu farei um testemunho e perpétua memória desta
minha presente fortuna da divina providência; pintarei em uma tabela a
imagem e semelhança desta minha presente fuga, colocarei no palácio
principal de minha casa; a qual será vista e ouvida entre outras novelas; será
perpetuada esta história por escritos de homens letrados, que diga assim: Uma
donzela de linhagem real, fugiu de seu cativeiro, levada por um asno. Você
será comparado aos antigos milagres, porque para exemplo de sua verdade
acreditam que Frixo nadou pelo mar sobre um carneiro; Aréion escapou em
cima de um golfinho; Europa cavalgou e fugiu em cima de um touro; porque se
foi verdade que Júpiter se transfigurou em boi, bem pode ser que neste meu
asno esconda-se alguma figura de homem, ou imagem dos deuses.
Enquanto isso, a donzela replicava consigo muitas vezes estas coisas,
Primeiro livro159
mesclando com este desejo grandes e contínuos suspiros, chegamos aonde
afastavam-se três caminhos. Quando ali chegamos, ela, tirando-me do
cabresto com quanta força podia, instava de endireitar-me pelo caminho da
mão direita, porque aquela era a via para ir à casa de seus pais.
Todavia, eu, sabendo que os ladrões foram por ali fazer outros roubos e
assaltos, resistia fortemente; e comigo, discretamente, dizia desta maneira: «O
que faz, moça desventurada, o que faz? Por que se apressa para a morte? O
que é que a insta fazer com meus pés? Porque não somente perderá a si, mas,
a mim também.» Estando nós brigando cada um com sua insistência, em causa
final disputando da propriedade do chão, ou dividir o caminho, eis aqui os
ladrões carregados do que roubaram; tomaram-nos às mãos; com a claridade
da Lua, conheceram-nos um pouco de longe, com uma risada falsa e maligna;
começaram a saudar-nos e um deles disse desta maneira:
-Para onde tão depressa tresnoitam este caminho; não temem as bruxas
e fantasmas da solidão da noite? E você, muito boa donzela, dá muita pressa
em ir ver seus pais? Porque se assim é, nós socorreremos sua solidão e
mostraremos-lhe um caminho bem longo para ir à seus pais.
E seguindo as palavras com o fato, jogou mão no cabresto e retornou
para trás dando-me boas pauladas e chibatadas com um pau nodoso que trazia
na mão. Então eu, contra minha vontade, voltando à morte que me preparava,
recordei-me da dor da unha e comecei cabeceando a coxear. Aquele que me
tornou para trás disse:
-E como você outra vez titubeia e vacila? Estes suas patas podres podem
fugir e não sabem andar? Agora, pouco há, venciam a celeridade de Pégaso,
aquele cavalo que voava.
Primeiro livro160
De tanto que este companheiro muito prazeroso jogava comigo desta
maneira, sacudindo-me muito boas varadas, já chegamos ao canto de sua
casa; eis aqui, onde vimos aquela idosa que estava enforcada, com uma corda,
do ramo de um alto cipreste, a qual os ladrões desprenderam, assim com sua
corda ao cangote, lançaram-na por estes penhascos abaixo; entrando em casa,
depois que ataram a donzela com suas cordas, pegaram o jantar que a
desventurada velha em sua última diligência preparara; depois que com seus
ânimos bestiais e ferocidade tragaram tudo o que ali havia, começaram entre
si a praticar e considerar de nossa pena, de sua vingança; como costumava
acontecer entre gente turbulenta, foram diferentes as sentenças que cada um
disse. O primeiro disse que lhe parecia que deviam queimar viva àquela
donzela. O segundo, que a jogassem às bestas. O terceiro, que a deviam
enforcar em uma forca. O quarto mandava que com torturas a despedaçassem.
Certo, o dito de todos, como queriam que fosse, à morte preparavam. Então,
um daqueles mandou calar a todos, e com palavras agradáveis começou a
falar desta maneira:
-Não convém à seita de nosso colégio, nem à mansidão de cada um, nem
mesmo tampouco a minha modéstia, sofrer que lhes sejam cruéis mais do que
o delito merece; nem devem trazer para isto bestas ferozes, nem forca, nem
fogo, nem torturas, nem mesmo tampouco morte apressada. Assim que se
tomarem meu voto, têm que dar vida à donzela, mas aquela vida que merece.
Não acredito eu que lhes esqueceu o que deliberaram fazer deste asno;
embora, contínuo preguiçoso, mas, grande comilão, e até agora mentiroso,
fingindo que estava coxo, era ministro e medianeiro da fuga desta donzela.
Assim que me parece que amanhã degolemos a este asno; tiradas todas as
vísceras, pela barriga, costuremos-lhe dentro esta donzela que ouve mais que
Primeiro livro161
a nós; somente que tenha a cara de fora, todo o corpo da moça encerre-se no
corpo do asno; depois, parece-me que se deve pôr este asno assim cheio e
costurado em cima de um penhasco destes, aonde lhe dê o ardor do Sol. Desta
maneira sofrerão ambos todas as penas que nós, diretamente, sentenciamos.
Porque esse asno receberá a morte que dias mereceu, ela sofrerá os bocados
das feras bestas quando seus membros serão roídos pelos vermes; também
passará pena de fogo quando o Sol acenderá o ventre do asno, com seus
grandes ardores; deste modo sofrerá pena da forca quando os cães e bois
levarão suas carnes e vísceras aos pedaços; além disto, devem pensar muitas
torturas e penas que passará ela; sendo viva morrerá no ventre da besta
morta, grande fedor seus narizes penarão, de não comer se secará de fome
mortal; e como estará costurada, não terá livres as mãos para poder se matar.
Os ladrões, quando ouviram isto que aquele dizia, não somente com os
pés, mas com todas as suas vontades e ânimos, amealharam-se àquela
sentença, a qual ouvindo eu com estas grandes orelhas, o que outra coisa
poderia fazer, a não ser chorar minha morte, que seria no outro dia?
Primeiro livro162
Sétimo livro
ARGUMENTO
A história que Luciano escreveu em um livro, Apuleio a repetiu em
muitos, contando longamente cada coisa por si, por que não parecia que era
intérprete de obra alheia, a não ser fazedor de história nova, e por que na
variedade das coisas costumou ser muito agradável prendesse, adulasse e
deleitasse aos leitores sem lhes dar nojo. Assim agora, conta como de amanhã
um daqueles ladrões veio de fora e contava aos outros de que maneira
culpavam ao Apuleio e imputavam-lhe o roubo e destruição que se fazia na
casa de Milón; que a nenhum dos ladrões culpavam de tão grande crime, salvo
só ao Apuleio, que era capitão e autor de toda esta traição, porque nunca mais
apareceu; o qual, ouvindo Apuleio, que parecia asno, gemia consigo,
queixando-se, amargamente, que era tido por culpado não sendo, por traidor
sendo bom e que não podia defender sua causa. Entretece algumas fábulas
muito graciosas, a maldade de um moço que trazia lenha com ele e outros
enganos de mulheres.
Primeiro livro163
CAPÍTULO I
Que trata como vindo um ladrão da companhia da cidade de Hipata,
conta aos companheiros a segurança que de seus feitos espiou por lá; como
ouviu na casa de Milón que toda a culpa do roubo jogavam à Lucio Apuleio e
como receberam um afamado ladrão na companhia.
No dia seguinte de manhã, depois de saído o Sol, um da companhia
daqueles ladrões, segundo eu conheci em suas falas, entrou pela porta;
quando chegou à entrada da cova sentou-se ali para recobrar fôlego e
começou a falar com sua companhia desta maneira:
-Quanto toca à casa de Milón o da cidade de Hipata, a qual há pouco
roubamos, já podemos estar seguros, porque eu o hei bem solicitado; depois
que roubamos tudo daquela casa e partimos para esta nossa estadia, misturouse
entre aquela gente popular daquela cidade, fazendo parecer que me doía e
me pesava daquele negócio.
Andava olhando que conselho tomavam sobre procurar quem fizera
aquele roubo, de que maneira e como queriam fazer a pesquisa para procurar
os ladrões; o qual tudo eu olhava para lhes dizer como mandaram; não
somente por duvidosos argumentos, mais por razões provadas, todos os
daquela cidade e de consentimento de todos pediam não sei que Lucio,
dizendo ser o autor manifesto de tão grande crime; o qual, poucos dias antes,
com certas cartas fingidas e fingindo-se homem de bem, fazia amizade,
estreitamente, com aquele Milón; enquanto, que o recebeu por hóspede em
sua casa; por amigo muito íntimo entre seus familiares e amigos; ele deteve-se
alguns dias em sua casa, fingindo ter amores com uma criada de Milón; espiou
muito bem as fechaduras da porta e dos palácios onde Milón tinha todo seu
Primeiro livro164
patrimônio; para o qual não pequeno indício se acha contra aquele mau
homem, porque naquela mesma noite, no momento daquele roubo, ele fugiu;
desde então, nunca mais apareceu; porque tivesse ajuda para sua fuga, muito
rapidamente, longe e bem longe, se escondesse, deixando atrás os que o
seguiam; teve bom remédio que levou consigo, no que cavalgou, naquele seu
cavalo branco, em que viera, deixando na estalagem à seu moço; o qual
achado ali pela justiça da cidade, mandaram-no jogar no cárcere como
testemunha, que sabia das maldades e conselhos de seu senhor; no outro dia,
posto a questão de tortura, que o quebrantaram e desmembraram quase até
levá-lo a morte, nunca confessou coisa alguma do que lhe perguntavam; pela
qual enviaram muitos do número da cidade à terra daquele Lucio, para lhe
fazer pagar a pena do delito que cometera.
Contando ele estas coisas eu gemia e chorava dentro das vísceras,
fazendo comparação daquela minha primeira fortuna, daquele Lucio bemaventurado,
com a presente calamidade de asno mal-aventurado; além disso
disto, vinha-me no pensamento que os varões da antiga doutrina, não sem
causa, fingiam, pronunciavam ser a fortuna cega e sem olhos; a qual sempre
dava suas riquezas à homens maus e que não as mereciam; nunca escolhia
algum dos homens por julgamento e justiça; antes, conversava principalmente
com tais pessoas das quais devia fugir se de longe as visse; o que mais
extremo e pior é de todos os extremos, que nos dá diversas e contrárias
opiniões; de tal maneira que um mau homem seja glorificado e louvado com
fama de bom varão; pelo contrário, um bom seja maltratado em boca dos
maus. Assim que eu, a quem seu cruel ímpeto trouxe e transformou em uma
besta de quatro patas, da mais vil sorte de todas as bestas; da qual desdita,
justamente, teria manchada e se doeria a quem quer daquele a quem
Primeiro livro165
acontecesse; embora fosse muito mau homem, sobretudo, era agora acusado
de crime de ladrão contra meu hospedeiro muito amado, que tanta honra me
fez em sua casa, o qual crime, não somente quem quer poderia nomear
latrocínio; todavia, mais justamente se chamaria parricídio; com tudo isto, não
podia defender minha causa, ao menos negar com uma só palavra; finalmente,
por que a má consciência não parecesse que estando eu presente consentia a
tão acelerado crime, com esta impaciência zangado, quis dizer. «Não fiz eu tal
coisa.» A primeira sílaba bem a disse, não uma vez, mas muitas; porém, as
seguintes palavras nunca as pude declarar; fiquei na primeira voz, zurrando
sempre uma coisa: Não, não! A qual nunca pude mais pronunciar, como queria
que meneasse os lábios cansados e redondos. Que mais posso eu me queixar
de crueldade da fortuna, mas sim inclusive, não tive vergonha de me juntar e
fazer-me companheiro de meu cavalo, servidor que me trouxe nas costas?
Estando comigo, flutuando em tais pensamentos, vinha-me aquele cuidado
principal, em que recordava-me como por conselho e deliberação dos ladrões
eu estava sentenciado para ser sacrifício da alma daquela donzela; olhando
muitas vezes minha barriga, parecia-me que já estava parindo à mesquinha da
moça. Entretanto, com prazer, aquele que trouxe de mim falsa relação do furto,
tirados de seu seio mil ducados que ali trazia costurados, os quais, segundo
dizia, roubara de diversos caminhantes, jogando-os dentro da arca para
proveito comum de todos, começou a inquirir e perguntar solícito da saúde de
todos os companheiros; sabendo como alguns dos mais esforçados eram
mortos em diversos, embora não preguiçosos casos, persuadiu-os que
enquanto isso não roubassem os caminhos e guardassem tréguas com todos;
até que entendessem em procurar companheiros e com a malícia da nova
juventude fosse restituído o número de sua companhia, como antes estava,
Primeiro livro166
porque fazendo assim poderiam compelir, pondo medo aos que não quisessem
e provocando com prêmio aos que de sua vontade quisessem; que não haveria
poucos que, renunciando à vida pobre e servir, não quisessem mais seguir sua
opinião e companhia; a qual parecia que era coisa de grande estado e poderio;
dizendo que ele falara, por sua parte, com um homem há pouco, alto de corpo
e mancebo bem esforçado; persuadiu-lhe e, finalmente, acabado com ele que
voltasse a exercitar as mãos, que trazia embotadas da longa paz; que
enquanto pudesse, usasse dos bens da boa fortuna e não queria sujar suas
esforçadas mãos pedindo pelo amor de Deus, mas sim se exercitasse
agarrando ouro à mãos cheias. Quando aquele mancebo disse estas coisas,
todos os que ali estavam consentiram nisso, dizendo que tal homem como
aquele, que era já provado nas armas, que deveria ser logo chamado;
procuraram outros para suprir o número dos companheiros. Então aquele saiu
fora de casa e demorou um pouco, o qual trouxe consigo um mancebo grande
e esforçado, como prometera, que não sei se se poderia comparar a nenhum
dos que estavam presentes, porque, além da grandeza de seu corpo,
sobrepujava em altura aos outros toda a cabeça; com prazer, então o
apontavam os cabelos das barbas; como vinha muito mal vestido e mal
embelezado, com um roupa folgada vil e quebrado, entre o qual parecia o peito
e ventre com as crostas, calos duros e fortes; desta maneira, quando entrou
em casa, disse:
-Deus lhes salve, servidores do fortíssimo deus Marte e meus fiéis
companheiros; recebam, querendo de própria vontade, um homem de grande
coração que quer estar em sua companhia; que de melhor ganho recebe
feridas no corpo, que dinheiro na mão; é melhor que a morte, a qual outros
temem; não pensem que sou pobre e descartado, nem estimem minhas
Primeiro livro167
virtudes destes panos quebrados, porque eu fui capitão de um esforçado
exército que quase destruímos toda a Macedônia: eu sou aquele ladrão famoso
que há por nome Hemo de Tracia, do qual todas as províncias temem. Eu sou
filho daquele Terón, que foi muito famoso ladrão; eu fui criado com sangue de
homens; cresci entre os homens de guerra; fui herdeiro e imitador da virtude
de meu pai; mas, no espaço de pouco tempo perdi aquelas grandes riquezas e
aquela primeira multidão de meus fortes companheiros; porque além de eu ser
procurador do imperador César, fui também seu capitão de duzentos homens,
de onde a má fortuna derrubou-me e foi causa de todo o meu mal. Deixado isto
à parte, como já em sua presença começara, tomarei a ordem de contar o
negócio para que saibam como passou. No palácio do imperador César havia
um cavaleiro muito nobre, fidalgo, muito conhecido e privado do imperador, ao
qual cruel inveja, por malícia de alguns acusado, lançou e desterrou do palácio.
Sua mulher, de nome Plotina, dona de muita fidelidade, de singular prudência e
castidade, que acrescentara à linhagem de seu marido com dez filhos que
pariu; menosprezando, desprezando os prazeres e repousos da cidade,
acompanhou-lhe e foi companheira de sua desdita, a qual, cortados os cabelos,
em hábito de homem, rodeada uma cinta cheia de ouro e de jóias muito
preciosas; entre as mãos e espadas dos cavaleiros que a guardavam, saiu sem
nenhum temor, sendo participante de todos os perigos; sustentando cuidado
contínuo pela saúde de seu marido; sofreu, passou contínuas tribulações com
ânimo e esforço de homem. Depois de passadas muitas dificuldades e perigos,
por mar e por terra, chegou à cidade de Zacinto, aonde sua sorte e ventura lhe
daria por algum tempo estadia e morada; mas, quando chegou ao porto de
Acciaco, por onde nós andávamos roubando toda a Macedônia, já que era de
noite, por afastar-se do mar para tomar algum ar fresco, começou naquela
Primeiro livro168
noite a dormir em uma tenda que estava perto do mar; aonde nós chegamos e
roubamos tudo quanto trazia; não com pouco perigo de nossas pessoas
partimos dali, porque como aquela dona ouviu o som da porta quando a
abríamos, lançou-se em sua câmara, dando gritos e vozes, que despertou a
todos, chamando por seus nomes à seus escudeiros, criados e a toda a
vizinhança, que lhe devesse socorrer; senão fosse o medo que cada um tinha
de si mesmo escondiam-se, o negócio foi de tal maneira que não partiríamos
dali sem pena; mas, depois de pouco, aquela dona, muito boa e honrada, de
grande fé e graciosa em bons costumes, porque é razão de contar a verdade,
suplicou à majestade do imperador César, alcançou muita presteza, retornou à
seu marido; deste modo impetrou cheia de vingança do roubo que fizera.
Finalmente, que o imperador não quis que houvesse colégio, nem companhia
do ladrão Hemo; logo se desfez e perdeu, porque tudo pode a vontade de um
grande príncipe. Assim, feita pesquisa contra nós, toda a companhia dos
cavaleiros e pendões daquela hoste foi morta e destruída; eu sozinho, em
grande pena e fadiga, escondi-me entre os outros e escapei da boca do inferno
nesta maneira: Vestido com uma roupa de mulher, colocada uma touca na
cabeça, calçados os pés com alpargatas de mulheres brancas e magras; assim
escondido debaixo deste hábito de mulher, cavalgando em cima de um asno
que ia carregado de espigas de cevada, passei por meio das batalhas dos
inimigos. Os quais, pensando que era uma mulher arteira, deixaram-me passar
livremente, quanto mais que naquele tempo eu não tinha barbas e a juventude
resplandecia-me na cara; mas, com tudo isto, eu nunca me apartei, nem caí da
glória de meu pai, nem de meu esforço e virtude. Verdade é que quase com
medo, passando perto das lanças e espadas dos cavaleiros, encoberto com
enganoso hábito alheio, eu sozinho ia por essas vilas e castelos, onde
Primeiro livro169
arrumava o que podia, para provisão de meu caminho.
Dizendo isto, despojou daqueles panos rasgados que trazia vestidos e
tirou dois mil ducados de ouro, dizendo:
-Vêem aqui este saco; até digo que em dote os dou de boa vontade para
seu colégio e companhia; até me ofereço por seu capitão fiel; se vocês,
senhores, não recusam isto, eu me obrigo a fazer que em espaço de breve
tempo esta sua casa, que agora é de pedra, se torne toda de ouro.
Não demoraram mais os ladrões; todos de acordo, de um voto lhe
fizeram seu capitão; vestiram-lhe logo uma vestimenta de seda, como
convinha a tal capitão, tirando-lhe primeiro a roupa maltrapilha, embora rico,
que trazia. Desta maneira reformado, deu paz e abraçou a cada um deles, e
sentado em mais alto lugar que nenhum, começava a fazer festa com seu
jantar de muitos manjares.
Primeiro livro170
CAPÍTULO II
Como aquele mancebo recebido na companhia por Hemo, afamado
ladrão, descobriu-se ser Lepolemo, marido da donzela, o qual a libertou com
sua boa intenção e levou a sua terra.
Então, falando uns com os outros, começaram a dizer da fuga da donzela
e de como eu a levava nas costas, dizendo deste modo da monstruosa e não
ouvida morte que para ambos nos prepararam; o qual, tudo por ele ouvido,
perguntou onde estava aquela moça; levaram-o aonde estava; quando a viu na
prisão carregada de ferros, começou a desprezá-la, fazendo um som com os
narizes; saiu logo depois da câmara, e desde que se voltou a sentar, disse logo
aos ladrões:
-Eu, senhores, não sou tão bruto nem temerário que queira refrear sua
sentença e acordo; mas eu pensaria que tinha dentro, em meu coração,
pecado de má consciência se dissimulasse o que me parece que é bom e
proveitoso; mas, uma coisa têm que pensar: que isto que eu lhes digo é por
sua causa e proveito. Portanto, se isto que disser não lhes rogo, digo que
tenham liberdade para lhes tornar ao asno. Porque eu, senhores, penso que os
ladrões e os que deles sabem mais, nada devem antepor a seu ganho; também
esta vingança é danosa muitas vezes à ele e à outros. Pois, se matarão a
donzela no asno, não farão outra coisa a não ser exercitar sua irritação sem
nenhum proveito nem ganho. Portanto, parece-me que esta donzela se deveria
levar a alguma cidade, porque não seria leve o preço que por ela se desse,
segundo sua idade; que até eu conheço, dias há, alguns rufiões, dos quais
alguém poderia, segundo eu penso, comprar esta moça com grandes talentos
de ouro, para pô-la ao partido, como ela merece, e até de semelhante fuga que
Primeiro livro171
esta, quando ela tiver servido no bordel, não lhes dará pouca vingança. Este é
meu parecer, o que eu faria, para ser útil e proveitoso; mas, sobretudo, digo
que vocês são senhores de meus conselhos e de todas minhas coisas.
Desta maneira, aquele advogado do fisco dos ladrões, propunha nosso
pleito e causa, como muito bom defensor da donzela e do asno.
Mas, como os outros se demoravam para deliberar, com a tardança de
seu conselho atormentavam minhas vísceras e o meu pobre espírito.
Finalmente, de boa vontade todos se amealharam à sentença do novo ladrão;
logo, soltaram à donzela das cadeias em que estava; a qual, como viu aquele
mancebo, ouviu fazer menção do bordel e do rufião; começou com uma grande
risada alegrar-se tanto, que me veio o pensamento que toda linhagem das
mulheres merecia ser vituperado, por ver uma donzela que, esquecido o amor
do mancebo seu marido e o desejo das castas bodas que com ele teria que
fazer, alegrou-se subitamente ouvindo o nome do sujo e fedido bordel. E a
verdade é que a seita e costumes de todas as mulheres pendiam então do
julgamento de um asno. Aquele mancebo, tornando a repetir a fala,
procedendo adiante, disse:
-Pois, por que não preparamos de suplicar e fazer sacrifício ao deus
Marte, nosso companheiro, e também para vender esta moça e procurar
companheiros para nosso colégio? Mas, segundo eu vejo, não há aqui animal
nenhum para fazer sacrifício, nem temos vinho para que, suficientemente,
possamos beber. Assim, dêem-me dez companheiros destes, com os quais eu
me contentarei, e irei a um lugar destes por aqui perto, onde comprarei o que é
mister para comer e outras coisas necessárias.
Desta maneira, partindo dali, os outros acenderam um grande fogo e
Primeiro livro172
fizeram um altar ao deus Marte de gramas verdes. Em pouco momento
retornou aquele, e os outros traziam certos odres cheios de vinho e uma
manada de gado adiante, de onde tomaram um bode grande e escolhido, de
muitos anos, com as jubas elevadas, o qual sacrificaram ao deus Marte, seu
companheiro, a quem eles seguiam, e logo preparando para comer muito
abundantemente; então, aquele hóspede novo disse:
-Vocês, senhores, não somente me têm que ter por capitão de suas
batalhas e roubos, mas também é razão que me devam sentir muito diligente
para seus prazeres.
E dizendo isto, com muita graça falando, ministra a todos com diligência,
varrendo a casa, pondo a mesa, cozinhando manjares saborosos e pondo-os
diante, abundantemente, para que comessem; principalmente, esmerava-se
em encher e fartar a todos com grandes e espessas taças de vinho. Entre isto,
algumas vezes, fingindo que ia pelas coisas necessárias para a mesa, entrava
onde estava a moça e trazia-lhe algumas coisas de comer que escondido tirava
da mesa; alegre trazia-lhe deste modo alguma taça de vinho, da qual ele
gozava primeiro e ela o recebia de boa vontade; e alguma vez que ele a queria
beijar ela o consentia, recebendo-lhe com a boca aberta, tais coisas me
desagradavam em extrema maneira, e dizia comigo: «Oh, moça donzela! Tão
rápido esqueceu seu esposo e daquele seu muito amado, por quem tanto
chorava; antepor este arrivista e cruel matador àquele, que não sei quem é,
você novo marido e esposo, que seus pais juntaram consigo? Não lhe acusa a
consciência; parece que, pisado o amor e afeição que lhe tinha, convém-lhe ser
má mulher entre estas lanças e espadas? Pois o que será se de alguma
maneira os outros ladrões sentirem esta brincadeira? Pensa que não tornará
outra vez ao asno e outra vez me causará a morte? Certo, você brinca e burla
Primeiro livro173
de couro alheio.» De tanto que eu, em meu pensamento, falsamente acusava
estas coisas e disputava delas com grande irritação, conheci de suas mesmas
palavras, algo duvidosas, embora não muito obscuras para asno discreto, que
aquele mancebo não era Hemo, ladrão famoso, mas que era Lepolemo, marido
da donzela; porque procedendo em suas palavras, que já um pouco mais
claramente falassem, não percebendo minha presença, falavam muito baixo, e
ele disse:
-Você, senhora Carites, minha muito doce esposa, tenha bom esforço,
que todos estes seus inimigos lhe darei presos e cativos nas mãos.
Dizendo isto, não cessa de lhes dar o vinho, já misturado e algo morno,
com maior instância; de maneira que eles estavam já lixados do vinho, da
violência e multidão dele; ele se abstinha de não beber, e por Deus que me
deu suspeita que lhes jogaria dentro dos cântaros do vinho algumas ervas para
fazer dormir; finalmente, que todos, sem que um faltasse, estavam sepultados
em vinho, e alguns deles preparados para a morte. Então, Lepolemo, sem
nenhuma dificuldade e trabalho, pôs eles nas prisões e presos nelas como lhe
pareceu, pôs em cima de mim a donzela e endireitou o caminho para sua terra,
a qual chegamos. Toda a cidade saiu para ver o que muitos desejavam; saíram
seu pai, mãe e parentes, cunhados, servidores, criados e escravos; as faces
repletas de gozo, que quem o visse poderia ver muito bem uma grande festa
de pessoas de toda linhagem e idade; que, por Deus, era um espetáculo digno
de grande memória ver uma donzela triunfante em cima de um asno. Eu
também, como homem varão, porque não parecesse que era alheio do
presente prazer, elevadas minhas orelhas e torcidos os narizes, zurrei muito
fortemente, e até posso dizer que cantei com clamor alto e grande.
Primeiro livro174
CAPÍTULO III
Como, celebradas as bodas da donzela, pensou-se com grande conselho
que prêmio se daria ao Lucio, asno, em recompensa de sua liberdade; onde
conta os grandes trabalhos que padeceu.
Depois que a donzela entrou em casa, os pais a receberam e davam de
presente como melhor podiam. Lepolemo tomou-me com outra multidão de
asnos e burros de carga da cidade; retornou para trás, aonde eu ia de boa
vontade, porque tinha muita vontade e desejo de voltar a ver a prisão e
cativeiro daqueles ladrões, aos quais achamos bem atados com o vinho mais
que com cadeias; assim que nós, carregados de ouro e prata e outras coisas
deles, que nada lhes deixamos, tomamos aos ladrões atados como estavam;
uns envoltos os lançávamos desses penhascos abaixo; outros degolados com
suas espadas, deixados por ali. Com esta tal vingança, alegres e com muito
prazer, voltamo-nos à cidade, aonde puseram todas aquelas riquezas no
tesouro e arca pública dela; a donzela dizendo ao Lepolemo, seu marido, como
era razão e direito. Dali, a dona, que já era casada, buscava-me e nomeava-e
como a seu guardador, que lhe liberara de tanto perigo; nesse mesmo dia das
bodas mandou-me encher o cocho de cevada e pôr feno tão abundantemente
que bastasse para um camelo. Quantas maldições poderia eu jogar agora à
minha Fotis, que é merecedora delas e da ira dos deuses, porque me
transformou em asno e não em cão, porque via por ali os cães fartos daquelas
relíquias e sobras das bodas e do jantar muito abundante. Depois de passada a
primeira noite de bodas, a recém casada não se esqueceu, assim perto de seus
pais como de seu marido, de agradecer-me, rogando que lhe prometessem de
fazer-me muita honra; para o que, chamados outros amigos de juízo e idade,
Primeiro livro175
perguntou-lhes que conselho dariam, como pudesse remunerar tanto benefício
como de mim recebera, e a gente disse que me encerrassem em casa sem que
coisa alguma fizesse; engordassem-me com cevada, favas e boa cama; mas,
venceu a este outro, que olhou mais a minha liberdade, dizendo que me
jogassem ao campo com as éguas, e que ali, andando a meu prazer, folgando
entre elas, daria a meus senhores muitas mulas e boas; assim chamaram o
eguariço, falando-lhe muito longamente e com grande prefação de palavras,
entregaram-me a ele que me levasse; aonde, por certo, eu ia muito alegre e
contente, acreditando que já renunciara o trabalho e cargas que costumavam
jogar-me; além disto, gozava-me que me deram aquela liberdade em princípio
do verão, quando os prados estavam cheios de ervas e flores, onde pensava
achar algumas rosas, porque me subia um contínuo pensamento que, fazendo
tantas honras e dando tantas graças a um asno, que me transformando em
homem humano, com muitos maiores benefícios me honrariam. Mas, depois
que aquele eguariço me apartou e levou longe da cidade, nenhum prazer, nem
nenhuma liberdade eu tomei; porque logo sua mulher, que era avarenta e
muito má fêmea, pôs-me a moer em uma padaria; com um pau nodoso
castigava-me de contínuo, ganhando com meu couro para si e para os seus;
não somente era contente de me fatigar e trabalhar por causa de sua
alimentação, mas, matava-me moendo, continuamente, por dinheiro o trigo de
seus vizinhos; por todos estes trabalhos e fadigas não me dava de comer a
cevada que devam para mim; mesquinho, a qual torrava e fazia-me moer com
minhas contínuas voltas; vendia à esses vizinhos próximos; a mim, que andava
atento todo o dia ao contínuo trabalho da padaria, à noite me punha uns
poucos de farelos de cereais sujos e por abater, cheios de pedras, que não
havia quem os pudesse comer. Estando eu bem domado com tais penas e
Primeiro livro176
tribulações, a cruel Fortuna, trouxe-me para outra nova tortura; convém saber:
que como dizem eu me glorificasse ter sofrido trabalhos de louvar, assim em
casa como fora dela, aquele bom pastor que tarde escutou o mandado de seu
senhor, cedeu já de jogar-me às éguas; finalmente, desde que eu me vi asno
livre, alegre e saltando com meus passos brandos a meu prazer, andava
escolhendo as éguas que melhor me pareciam, acreditando que tinham que ser
minhas apaixonadas. Mas, até aqui a alegre esperança procedeu ao fim e saída
mortal, porque os garanhões, como estavam fartos, grossos e muito terríveis,
por haver muitos dias que andavam pastando, eram certo muito mais fortes
que nenhum asno; temendo a mim, guardando que não fizesse adultério
monstruoso com suas amigas, não guardando a amizade que Júpiter mandou
ter com seus hóspedes, começaram a perseguir sua ira com muita fúria e ódio.
Um, elevando seu grandes peito em alto, sua cabeça alta e com as patas sobre
minha cabeça, brigava com suas unhas contra mim; o outro, com suas ancas
redondas e grossas voltando-as para mim, dava-me coices; outro, ameaçandome
com seus malditos relinchos, rebaixadas as orelhas e descobertas as hastes
dos brancos dentes, mordia-me todo. Assim o havia eu lido na história do
grande rei da Tracia, que dava a seus cavalos os mesquinhos dos hóspedes,
que acolhia para despedaçá-los e comê-los. Tanto era aquele tirano escasso da
cevada, que com abundância de corpos humanos sujava a fome de seus
raivosos cavalos. Daquela mesma maneira eu era mordido e rasgado aos saltos
e vários golpes daqueles cavalos; tanto, que pensava seria melhor voltar à
padaria.
Mas, a Fortuna, que não se fartava de me atormentar, instruiu-me e
aparelhou de novo outra maior pestilência e dano; a qual foi que me jogaram a
trazer lenha de um monte e entregaram-me a um moço que me levasse e
Primeiro livro177
trouxesse, o mais falso rapaz e maligno de todos os do mundo: que não me
fatigava tanto a áspera ascensão do monte muito alto, nem as pedras e
penhascos ásperos por onde passando quebrantava-me as unhas, como os
grandes e muitos golpes de quão varadas, freqüentemente, dava-me, de tal
maneira, que dentro do coração entrava-me a dor das feridas, e com o pé
direito sempre me dava tantos golpes; que me afligindo em um lugar, esfolavame
o couro e aberto um buraco de uma chaga muito larga, que mais se pode
dizer fossa e até janela grande. Contudo, não deixava de sempre martelar em
uma mesma chaga cheia de sangue, enchia-me tão grande carga de lenha nas
costas, que quem quer que a visse dissesse, bastava mais para um elefante,
que para um asno. Aquele falso rapaz, cada vez que a carga pesava mais a
uma parte, deitava-se a um lado, em lugar de tirar-me a lenha daquele canto
para que, tirado o peso, tirasse-me daquela fadiga, ou ao menos, passar a
lenha de um lado ao outro para igualar a carga, fazia ao contrário, porque
jogava muitas pedras à outra parte. Assim curava o mal e pena de minha
carga. Não contente com tão grande peso de cargas como me jogava, depois
de outras muitas fadigas e tribulações, como tínhamos que passar um rio que
acaso estava no caminho, para não molhar os pés, saltava em cima de minhas
ancas; assim passava cavalgando, embora ele fosse pequeno, a sobrecarga
que me jogava era de tão grande peso, que se acaso na lama esbarrasse que
estava na beira do rio eu caía com a fadiga da carga, o bom cavaleiro, em
lugar de ajudar-me com a mão, elevando-me a cabeça com o cabresto e
tirando a cauda, ou ao menos, tirar-me alguma parte da carga de cima até que
me levantasse, nenhuma ajuda destas fazia-me, embora via-me cansado;
antes, começando da cabeça, e até das orelhas, com um pau bem pesado,
dava-me tantos golpes que todo o couro esfolava; até tanto que com as feridas
Primeiro livro178
e paus que me dava, fazia-me levantar. Este mau rapaz pensou e fez uma
travessura desta maneira; tomou um molho de sarças, com os espinhos muito
agudos e venenosos, as quais, atadas, pendurou e pôs debaixo de minha cauda
para me atormentar; de maneira que, como eu começasse a andar, comovidas
e incitadas chegavam-me com suas esporas e mortais aguilhões.
Assim que eu estava posto entre dois maus: porque se queria fugir
correndo, ia muito mais receoso a força dos espinhos, e caía um pouco, para
que não me machucassem as sarças, dava-me de varadas para me fazer
correr; que certo aquele maligno rapaz não parecia que pensava em outra
coisa a não ser como me matar e estragar; assim jurava e algumas vezes
ameaçava-me. Certo de sua detestável malícia, estimulava para que fizesse
outras piores coisas; porque um dia, a causa que minha paciência já não podia
sofrer sua grande soberba, dei-lhe um par de coices, por causa disto ele
inventou contra mim um crime e façanha endiabrada; colocou-me em cima
duas rajadas de tascos muito bem ligados com suas cordas; assim, levou-me
por esse caminho adiante, chegando a uma aldeia, furtou uma brasa de fogo
acesa e colocou-a em meio da carga; o fogo, esquentado e criado com o
abastecimento dos tascos, elevou grandes chamas, de maneira que o ardor
mortal me cobriu, que nem havia remédio à tão grande mal, nem aparecia
socorro algum à minha saúde; como semelhante perigo não sofresse tardança,
antes perverte todo bom conselho, a providência da fortuna resplandece às
vezes muito alegre nos casos cruéis e contrários. Não sei se o fez aqui para me
guardar para outro maior perigo; mas, certamente, ela liberou-me do presente
e certa morte. Acaso estava um charque de água turva, que tinha chovido no
dia anterior, o qual, quando eu vi, lancei-me dentro em um salto, sem pensar
outro perigo; a chama foi logo apagada de tal maneira, que eu fui vazio da
Primeiro livro179
carga e escapei livre da morte; mas, aquele maligno e temerário moço tornou
contra mim toda sua malignidade que fizera, dizendo e afirmando a todos os
pastores que por aí estavam que, passando eu pelos fogos dos vizinhos
daquela aldeia, de minha própria vontade, titubeando os passos, tomara
aquele fogo, e até fazendo brincadeira de mim, acrescentava dizendo: «Até
quando temos que manter atrofiado a este engendrador de fogo?»
Primeiro livro180
CAPÍTULO IV
No qual Lucio conta grandes trabalhos que padeceu por causa de vir em
poder e mãos de um rapaz que em extremo lhe fatigou, até que um urso o
despedaçou no monte.
Não passaram muitos dias que me buscou outro maior engano. Vendeu a
carga de lenha que eu trazia em uma casa daquela aldeia; retornou vazio à
casa, dando vozes que não podia sua força bastar a minha maldade; que ele
não queria mais serviço neste miserável ofício e as queixa que inventava
contra mim eram desta maneira:
-Vocês vêem este preguiçoso, lento e grande asno? Além de outras
maldades que cada dia faz, agora fatiga-me com novos perigos: como vê por
esse caminho algum caminhante; agora seja mulher velha, moça donzela para
casar, ou moço de tenra idade; logo lança a carga ao chão; até algumas vezes,
a sela e tudo quanto traz em cima, com muita fúria corre como apaixonado por
pessoas humanas, e lançados por aquele revisto prova de fazer com eles o que
é contra natureza; até remói-os com sua boca suja, que parece que os quer
beijar; o qual nos é causa de muitos litígios e questões, até possivelmente
algum dia trar-nos-á maior dano. Que agora mesmo, achou no caminho uma
moça honesta e formosa; quando a viu, lançou por esse chão a carga de lenha
que trazia, arremeteu à ela com ímpeto furioso, o gentil apaixonado derrubou a
mulher pelo chão, ali, em presença de todos, trabalhava por subir em cima
dela; de tal maneira, que se não fosse pelos gritos e vozes que deu, acudiramna
os que passavam pelo caminho, tirando-a dentre braços e pernas, certo que
ele abrisse e rompesse a mesquinha da moça, ela morresse e deixasse-nos
pena e desgraça.
Primeiro livro181
Com estas mentiras, mesclando outras palavras que muito
atormentavam a meu vergonhoso calar, incitou cruel e ferozmente os ânimos
dos pastores para minha destruição. Finalmente, que um deles disse:
-Pois se assim é, por que não sacrificamos este marido público e adúltero
comum de todas e fazemos sacrifício dele, qual o merecem aquelas suas bodas
contra natureza? E você, moço, ouça: mata-o logo, joga as vísceras e
entranhas à nossos cães; a outra carne guarda-a para que comam os criados,
porque polvilhada cinza em cima do couro o levaremos à seus senhores, e,
finalmente, podemos mentir dizendo que o matou um lobo. Quando isto ouviu
aquele mortal inimigo e acusador meu estava muito alegre por ser executor da
sentença dos pastores; procurando sempre meu mau, recordando-se daqueles
coices que lhe dera; doía-me porque não o matei, tirada toda tardança
começou logo a amolar a faca em uma pedra. Então, um da companhia
daqueles lavradores disse:
-Grande mal é que matemos desta maneira um asno tão formoso como
este; que por luxúria, ou amores ele seja acusado, careçamos de sua obra e
serviço tão necessário; quanto mais que lhe tirando os companheiros nunca
mais será ciumento, nem se elevará para fazer má coisa, a nós tiraremos de
perigo, ele se fará muito mais formoso e grosso. Porque eu vi muitos, não
somente destes asnos preguiçosos, mas cavalos muito ferozes, que eram
ciumentos de tal maneira, que ficavam bravos e cruéis; fazendo-lhes de castrálos,
tornavam-se muito mansos, sem nenhuma fúria; por isso, não eram menos
hábeis para trazer a carga e fazer tudo o que era mister. Se tudo isto que lhes
digo crêem e parece-lhes bem, daqui a pouco momento eu acertei de ir a este
mercado que aqui perto se faz; tiradas de casa as ferramentas que são mister
para fazer esta cura, voltarei aqui, rapidamente, castrado este apaixonado
Primeiro livro182
cruel e bravo, eu o torno mais manso que um cordeiro.
Com esta sentença eu fui revogado das mãos da morte; mas, como fiquei
depois reservado para aquela pena, eu lamentava e chorava vendo que era já
morto na última parte de meu corpo.
Finalmente, eu deliberava de deixar morrer de fome, ou de me matar
jogando-me de um penhasco abaixo, pois, já que tinha que morrer, que
morresse inteiro. Enquanto isso, eu demorava para pensar e escolher qual
destas mortes tomaria; de manhã aquele malvado moço que me queria matar
me levou àquele monte onde costumávamos trazer lenha; ali, amarrou-me
muito bem no ramo de um carvalho. Eu muito bem atado, ele se foi um pouco
adiante com sua tocha para cortar lenha; eis aqui que de uma grande cova,
que ali estava, saiu um urso espantável, levantou a cabeça, a qual, quando eu
vi, com sua vista repentina, muito espantado e temeroso, pendurei todo o peso
do corpo sobre as curvas dos pés, a nuca alto atirei quanto pude; de maneira
que quebrei o cabresto com que me ataram e pus-me a fugir quanto pude; dali
abaixo não somente corria com os pés, mas, com todo o corpo; meio
tropeçando, saí por esses campos planos, fugindo com maior ímpeto daquele
grande animal e do velhaco do homem, que era pior que o urso.
Então um caminhante que por ali passava, como me viu vagabundo e
solitário, cavalgou em cima de mim; com um pau que trazia na mão, começou
a jogar por outro caminho que eu não sabia. Mas, eu não ia contra minha
vontade, antes me forjava para andar muito disposto, para deixar aquela cruel
carniça de meus companheiros; tampouco, curava-me muito, porque aquele
dava-me com o pau, porque costumava cada dia esfolar-me com varadas; mas,
aquela fortuna, que sempre foi contrária e pertinaz à meus casos, perverteu
Primeiro livro183
muito rapidamente esta minha fuga tão oportuna e logo ordenou outras novas
armadilhas. Aqueles meus pastores andavam a procurar uma vitela que se
perdera, atravessando e andando por muitas partes, por acaso encontraram
conosco; logo, quando me conheceram, tomaram-me pelo cabresto e
começaram a levar-me; mas, aquele outro resistia com muita ousadia,
chamando ajuda e protestando a fé dos homens e do senhorio que tinha em
mim, dizendo: «Por que me roubam? Por que me salteiam?» Eles disseram:
«Você diz que lhe tratamos sem cortesia, levando furtado nosso asno? Antes
tem que dizer onde escondeu o moço que trazia o asno, o qual você matou.»
Dizendo isto, deram com ele em terra, sacudiram-lhe muito bem de coices e
murros; ele jurava que nunca vira quem trouxera o asno, mas sim, o certo, era
que ele o achara solto e só, por esse caminho, que o tomara por ganhar o
achado; mas, que a verdade era que ele pensara de restitui-lo a seu dono, e
que rogou a Deus que este asno, o qual nunca encontrasse, pudesse falar com
voz humana para que declarasse e desse testemunho de sua inocência, porque
certo lhes pesasse da injúria que lhe fizeram. Desta maneira, instando e
defendendo sua causa, nada lhe aproveitava, porque os pastores zangados
jogaram-lhes as mãos ao cangote e assim o tornaram até perto daquela
montanha onde o moço costumava fazer lenha para levar a casa; o qual nunca
pareceu em toda aquela terra, mas por fim acharam seu corpo desmembrado,
despedaçado e espalhado em muitas partes; o qual eu por muito certo, sentia
que era feito pelos dentes daquele animal, e por Deus eu dissesse o que sabia
se o fato de falar me ajudasse, mais aquilo só que podia me alegrava comigo
daquela vingança, embora viera tarde. Os pastores agarraram todos aqueles
pedaços do corpo; com muita pena ajuntados e compostos o enterraram ali;
desta maneira, incriminando, acusando meu guia evidente e meu Belerofonte,
Primeiro livro184
dizendo que era cruelmente ladrão e matador; levaram-no bem preso e atado;
retornaram à suas casas e choças dizendo que no dia seguinte o levariam ante
à justiça para que lhe dessem a pena que merecia. Enquanto isso, os pais do
moço morto lamentavam e choravam seu filho, eis aqui vem aquele rústico que
fora ao mercado, o qual não lhe esquecera o que prometeu; vinha pedindo
muito insistentemente que me castrassem, ao qual um dos que ali estavam
disse:
-Não é nosso dano presente do que você agora, somente pede. Mas,
antes convém que amanhã, não somente cortemos a natureza deste péssimo
asno, mas, é razão que também lhe cortemos a cabeça, não crê que para isto
faltará ajuda e diligência destes.
Desta maneira fizera que minha desgraça se dilatasse até outro dia.
Eu, comigo, dava graças ao bom moço, porque ao menos, sendo morto,
dava um dia de espaço à minha carniça. Contudo, nunca dera um pouco de
espaço ao meu repouso e prazer, porque a mãe daquele moço, chorando a
morte amarga de seu filho, com muitas lágrimas e prantos, coberta de luto,
arrancava suas penas com ambas as mãos, uivando e gritando; desta maneira
lançou-se em meu estábulo, aonde esbofeteando a cara e dando murros nos
peitos, disse desta maneira:
-Agora este asno está muito seguro sobre seu cocho, entendendo em
tragar e comendo sempre alarga sua profunda barriga, que nunca se farta; não
se recorda de minha amarga mancha, nem do caso desventurado que
aconteceu a seu professor defunto; antes, parece-me que menospreza, tem em
pouco minha velhice e fraqueza; pensa que acontecerá pena de tão grande
crime como fez e cometeu; mas como quero que seja, ele presume que é
Primeiro livro185
inocente e sem culpa, de certo é coisa conveniente aos maus atrevimentos
contra a consciência culpada esperar segurança. Mas, oh, Deus!, voltando a
meu propósito, sua besta de quatro patas maligna, embora tomasse
emprestada fala de homem, a quem, embora fosse a mais néscia pessoa do
mundo, poderia persuadir que esta sua crueldade pode vagar de culpa?
Principalmente, se pudesse socorrer e ajudar ao mesquinho do moço à coices e
bocados. Como pôde muitas vezes lhe dar de coices e não pôde quando lhe
matavam defendê-lo com aquela mesma ousadia e esforço? Certo, se pudesse
arrebatá-lo em cima de suas costas e tira-lo das mãos daquele cruel ladrão e
inimigo. Finalmente, não, devesse só pôr-se a fugir e desamparar aquele seu
companheiro professor e pastor. Não sabe que aqueles que negam ajuda e
socorro aos que estão em perigo de morte, porque vão contra os bons
costumes e contra o que são obrigados, revistam ser punidos e castigados?
Mas, você, homicida traidor, não se alegrará muito tempo com minha pena e
tribulação: eu prometo fazer de maneira que sinta esta miserável minha dor,
por forças naturais.
E como isto disse, desenvolvidas suas mãos, desatou uma bandagem que
trazia rodeada, ligados meus pés e mãos com ela apertou-me muito
fortemente, porque não subtraísse distração alguma para minha vingança;
arrebatou uma tranca com que costumavam fechar as portas do estábulo e não
cessou de me dar de paus, até que com o peso da madeira vencida e fatigada
sua força lhe saltou da mão. Então, queixando que tanta disposição tinha
cansado, arremeteu ao fogo e tomou um tição ardendo, e lançou-me em meio
das virilhas, que me queimou, até que já não me restava a não ser só um
remédio, em que me esforçava, que soltei uns gases de líqüido, que lhe sujei
toda a cara e os olhos. Finalmente, que com aquela cegueira e fedor se apartou
Primeiro livro186
tanta pena e destruição de mim, que, se não, perecia eu, asno Meléagro,
queimado por aquela Altéia.
Primeiro livro187
Oitavo livro
ARGUMENTO
Neste livro conta desventurada morte do marido de Carites, e de como
ela tirou os olhos a seu apaixonado Trasilo; como ela mesma, de sua própria
vontade, matou-se, e a mudança que fizeram seus criados depois de sua
morte; conta muito lucidamente de certos cornucópias da deusa Síria, dizendo
de seus vícios e sujeiras, como se cortavam os membros para ganhar dinheiro,
e depois como descobriram os enganos que traziam.
Primeiro livro188
CAPÍTULO I
Como vindo um mancebo à casa de seu amo, Lucio conta com admirável
demora como Trasilo, por amores de Carites, matou com engano a Lepolemo, e
como tirou os olhos ao Trasilo e depois, matou a si.
Nessa mesma noite, ao primeiro canto dos galos, veio um mancebo de
uma cidade que estava ali perto, o qual, conforme me parecia, devia ser um
dos criados e servidores de Carites, aquela donzela que padeceu comigo tantas
tribulações e trabalhos na casa daqueles ladrões. Este mancebo, estando
sentado ao fogo com os outros criados e moços, contava coisas maravilhosas e
espantáveis da desventura e infortúnio que viera à fortuna à casa de sua
senhora, dizendo desta maneira:
-Eguiços, vaqueiros e boiadeiros: queira-lhes contar como eu tive uma
mesquinha de uma senhora, a qual morreu de um caso muito grave, embora
não foi desacompanhada e sem vingança ao outro mundo; é melhor, saibam
todas as coisas, quero-lhes dizer este negócio como aconteceu desde o
começo, para que possam muito bem, aos que são mais discretos e a boa
fortuna os ensinou a escrever colocar em escritura a maneira de história. Era
um mancebo desta cidade que está aqui perto, fidalgo e nobre de linhagem,
cavaleiro assaz rico; mas, era dado aos vícios da luxúria e botequins, andando
de contínuo nas hospedarias e bordéis, acompanhado de ladrões e sujando
suas mãos com sangue humano, o qual se chamava Trasilo: tal era sua fama e
assim se dizia dele. Este mancebo foi um dos principais que pediu em
casamento esta dona Carites, sendo ela de idade para casar, com toda sua
possibilidade trabalhou por casar-se com ela; como quer que em linhagem
precedia a todos os outros; também, com suas grandes dádivas e presentes
Primeiro livro189
convidava a vontade e julgamento de seus pais; mas, por seus maus costumes
ele foi descartado e repelido. Depois que a filha de meu senhor casou-se e veio
em mãos daquele nobre varão Lepolemo, Trasilo criava e continuava entre si o
amor por ele começado; recordando-se daquela indignação e irritação que
tinha por lhe negar o casamento, procurava acesso para seu cruel desejo;
finalmente, que achando oportuna ocasião para a maldade que há dias
pensava, aparelhou-se a fazer a traição. No dia que a donzela foi sacada da
mão dos ladrões por astúcia e esforço de seu marido, ele, mostrando alegrar-se
mais evidente que outro, mesclou-se com os outros que faziam alegrias; com
muito gozo mostrava com sua presença, que tinha prazer da linhagem que
sairia dos novos desposados; por honra de tão nobre geração, receberam em
sua casa como dos principais hóspedes; discretamente, o conselho de sua
traição mentia, enganava com sua pessoa de gesto e fiel amigo. Já com muita
conversação e contínuas falas; algumas vezes que comia e bebia com eles, era
muito amado. Com a amizade que lhe tinham, o néscio mal-aventurado, pouco
a pouco, lançou-se no poço profundo do amor. Por que não? Porque o fogo do
primeiro amor primeiro deleita com muito pouco calor, mas, com a isca da
conversação, de pouco ardor sai tão grande fogo que todo o homem queima.
Finalmente, Trasilo deliberou consigo muitos dias antes de fazer o que pudesse;
como não achasse lugar oportuno para poder falar com a dona secretamente,
visse deste modo que pela multidão dos que a guardavam estavam cercados
todos os caminhos para cumprir sua vontade, e também conhecesse que o
vínculo do novo amor e afeição que entre o marido e a mulher crescia não se
pudesse desatar; que a dona, embora quisesse, como ela não podia querer tal
coisa, não era possível começar a fazer maldade a seu marido, mas, com tudo
isto Trasilo era forçado e compelido com insistência obstinada a procurar o que
Primeiro livro190
não podia alcançar como se pudesse efetuá-lo. E o que agora lhe parecia muito
difícil de alcançar, o amor louco que cada dia mais se esforçava, fazia-lhe
acreditar e ter esperança por sua idade e juventude que era fácil coisa de
haver. Mas, eu rogo agora que, com muita atenção, entendam no que parou o
ímpeto desta furiosa luxúria. Um dia, Lepolemo tomou consigo ao Trasilo e foi à
caça de monte para procurar animais, assim como coisas, porque nisto não há
ferocidade, nem braveza como nos outros animais; também Carites não
consentia, que seu marido fosse caçar bestas armadas com dentes ou com
chifres, pelo perigo que disso podia seguir.
Chegando a um monte muito espesso de árvores, começaram os
caçadores a chamar os cães, que eram caçadores de linhagem, para que
tirassem dali quão animais havia, e como os cães eram ensinados daquela
arte, espalharam-se logo cercando todas as saídas daquele monte.
Estando assim cada um aguardando em sua estadia, feito sinal pelos
caçadores, começaram pulsar e ladrar tão receosos, que toda a montanha
encheram de vozes, da qual não saiu corço, nem gamo, nem cervo, que é
manso mais que nenhuma outra fera; mas, saiu um porco-espinho grandioso e
nunca outro tal visto, grosso e espantável, com as cerdas levantadas em cima
do lombo, jogando babas, com o som das navalhas, os olhos de fogo, sua vista
espantável, com ímpeto cruel que parecia um raio; e logo, como chegaram os
principais e mais esforçados cães, dando com as navalhas para cá e lá matouos
e despedaçou-os; depois saltou as redes por onde primeiro enfeitou seu
caminho e por ali saltou. Nós, quando aquilo vimos, espantados de grande
medo, como não fomos acostumados daquela perigosa maneira de caça,
principalmente que estávamos sem armas e sem nenhuma maneira de defesa,
escondemo-nos entre aqueles ramos e folhas das árvores. Trasilo, como achou
Primeiro livro191
oportunidade de traição e maldade que pensara, falou com o Lepolemo
enganando desta maneira:
-O que é a causa, por que, confusos de medo e semelhantes à fraqueza
destes nossos cervos, ou espantados como mulheres, deixamos perder tão
formosa presa de medo de nossas mãos? Por que não subimos em nossos
cavalos e seguimos este porco? Toma você esta flecha, eu tomarei minha
lança.
Dizendo isto, não demoraram mais e saltaram logo em seus cavalos e
com maior gana seguiram depois do porco; o qual, vendo-se apertado, não
esqueceu seu esforço e tornou com grande ímpeto e cheio de sua ferocidade,
dando golpes com as navalhas, afligindo e rompendo ao primeiro que tomava.
Mas, o primeiro que chegou a ele foi Lepolemo, que lhe lançou a flecha que
levava, pelas costas. Trasilo perdoou ao javali e arrojou a lança ao cavalo de
Lepolemo, que lhe cortou as curvas das patas, de maneira que o cavalo caiu
para a parte onde estava ferido e contra sua vontade deu com seu senhor em
terra. Não demorou o porco, que com muita fúria veio para ele e começou a
rasgar a roupa; ele, queria levantar, o porco deu-lhe tantas navalhadas, que lhe
abriu por muitas partes; contudo, nunca o bom de seu amigo socorreu-lhe, nem
se arrependeu da traição começada, nem se pôde fartar por ver, em quanto
perigo estava seu amigo; ao menos, deveria com isto satisfazer a sua
crueldade; antes fez ao contrário, porque querendo levantar Lepolemo e
cobrindo suas feridas, rogando-lhe com muita fadiga que o socorresse, Trasilo
enfiou-lhe a lança pela coxa da perna direita, tão maior golpe deu-lhe quanto
acreditou que a chaga da lança era semelhante às feridas das navalhas. Do
mesmo modo, matou ao porco. Desta maneira morto Lepolemo, saímos todos
de onde estávamos escondidos e corremos lá. Trasilo, como que acabado o que
Primeiro livro192
desejava, vendo morto a seu amigo, estava alegre; mas, com a cara cobriu o
gozo, fingindo tristeza e dor; com muita ânsia abraçava o corpo que ele matou.
De maneira que nada deixou de fazer, embora dissimulado, para cumprir o
ofício dos que choram a morte de seus amigos. Somente os olhos nunca
puderam derramar lágrimas; assim, ele confortando-se conosco, que
chorávamos de coração e verdadeiramente, a culpa que tinha sua mão,
atribuia ao porco. Quase não acabou de fazer este mal tão grande, quando a
fama corria por uma parte e por outra; a primeira jornada foi a casa de
Lepolemo, a qual feriu as orelhas de sua desventurada mulher. Quando a
mesquinha recebeu tal mensageiro, o qual nunca outro ouvirá, sem juízo,
comovida de grande furor e pena, correndo como louca por essas ruas e
praças; depois pelos campos, dando vozes, queixando da morte de seu marido;
logo, juntaram-se muitos da cidade, tristes, chorando, seguindo atrás dela,
acompanhando sua dor, que quase ninguém ficou na cidade com vontade de
ver o que passara. Eis aqui onde vem o corpo de seu marido, o qual, como ela
viu, caiu amortecida em cima dele; certamente, ela desse a alma ali, como o
prometera, mas sim, apartada por força de seus criados, ficou viva.
Depois, com muita pompa e honra, acompanhando todo o povo, levaramo
a enterrar. Trasilo, contudo, não fazia a não ser dar vozes e chorar, as
lágrimas que ao princípio de seu pranto não tinha, crescendo já o gozo da
morte de seu amigo, saíam-lhe dos olhos, enganando a verdade com muitos
nomes de amor e caridade, chamando-lhe amigo, ambos da mesma idade, seu
companheiro e seu irmão; finalmente, que lhe chamava por seu próprio nome
com muito choro e dor. Assim mesmo, algumas vezes tomava as mãos de
Carites, para que não desse golpes no peito, afastava-lhe a dor quanto podia,
com palavras brandas empenhava-se muito que não tomasse tanta pena,
Primeiro livro193
intrometendo distrações de outros casos acontecidos com muitos e vários
exemplos. Desta maneira, colocando todos os ofícios de amor e piedade,
sempre mostrava vontade de tocar à dona, quanto podia e deleitando-se
maliciosamente, pensava fazer tomar seu aborrecível amor.
Depois de acabadas as exéquias da sepultura, a dona logo procurou ir
aonde estava seu marido, para o qual começou a tentar todas as vias que
pôde, das quais lhe pareceu a mais repousada e mansa, que não há mister
faca, nem espada, semelhante a uma aprazível folga, a fome; escolhendo esta
para melhor morrer, já passara algum dia sem comer, estando escondida em
profundas trevas, chorando e malaventurada, onde assim deliberava de morrer.
Mas, Trasilo, com instância malvada, algumas vezes por si mesmo, outras pelos
familiares de casa, pelos parentes e pais da mesma moça, trabalhou com ela
que confortasse os membros quase já desfalecidos, amarelos e sujos da fome,
lavando-se e comendo algum pouco. Ela, como tinha muita reverência à seus
pais, embora contra sua vontade, para satisfazer à obediência que era
obrigada, obedeceu, mas, não com gesto alegre, embora, um pouco mais que
costumava, fez o que lhe mandavam, comendo como fazem os que querem
viver, como queriam, todos os dias e noites consumia em choroso desejo.
Dentro de seu peito e de suas vísceras se desfazia seu coração lamentando e
chorando continuamente. A imagem de seu marido defunto, que ela fizera à
semelhança do deus Baco, continuamente adorava e honrava como à Deus,
era-lhe distração; no qual se atormentava. Trasilo, como era homem
arrebatado e temerário, como seu nome o declara, antes que as lágrimas
tivessem satisfeito à dor, antes que o furor do coração cessasse e o pranto se
aplacasse, não ocorrendo muito tempo para que a pena se o amansasse, que
até estava chorando a seu marido, tirando os cabelos e rasgando suas
Primeiro livro194
vestimentas, não duvidou de lhe falar, dizendo-lhe que se casasse com ele;
com a pouca vergonha que tinha, não duvidou tampouco descobrir o segredo
de seu peito, os inefáveis enganos e maldades que pensava. Carites, quando
isto ouviu, espantou-se de voz tão nefanda, e foi ferida assim como de um
grande trovão ou relâmpago, ou como de um raio do céu, de maneira que caiu
seu corpo e o ânimo se obscureceu. Mas em pouco, retornando algo em si,
começou a fazer um feroz pranto e choro; olhando sobre aquele negócio que o
malvado Trasilo propunha-lhe, era razão de olhar, pôs o desejo do demandante
em demora de maior conselho, nessa mesma noite apareceu-lhe a alma do
pobre de seu marido Lepolemo, que era morto, a qual, elevando a cara
ensangüentada, amarela e muito disforme, quebrou o casto sonho de sua
mulher, dizendo:
-Senhora mulher, o qual não convém que de outro homem nenhum diga,
nem por este nome seja de outro chamada; se tiver memória, em seu coração,
recorda-se de mim; ou se por ventura, o vínculo do amor retirou-se do coração
pelo acontecimento de minha grave e amarga morte; eu dou-lhe licença para
que se case em boa hora com quem quer, com uma condição, que jamais se
case com o traidor sacrílego de Trasilo, nem fale com ele, nem se sente à
mesa, nem durma na mesma cama com ele; foge de sua mão sangrenta que
me matou. Não queira se casar com quem matou a seu marido, que aquelas
chagas, cujo sangue lavaram suas lágrimas, não são todas das navalhas do
porco, porque a lança do malvado de Trasilo fez-me alheio de si.
Desta maneira contou-lhe todas as outras coisas, por onde lhe
manifestou toda a traição que passara. Ela, como estava muito triste, com
sonho muito temeroso, apertou a cara com a roupa, dormindo emanavam
tantas lágrimas, que banhava a cama; despertou muito espantada do repouso
Primeiro livro195
que tinha sem folga, assim como se despertasse espantada de um grande
trovão; voltando a chorar, começou a dar uivos e gritos muito longamente; rota
a camisa, dava-se bofetadas com as mãos na cara. Contudo, nunca descobriu a
pessoa o sonho que vira, dissimulada a traição e maldade de Trasilo, deliberou
consigo de matar ao malvado matador, de afastar-se dela, sair de vida tão
mesquinha e desventurada. No dia seguinte, eis aqui onde volta outra vez, o
abominável demandante de prazer tão disposto e não convencível; começou a
instar nas orelhas, que fechavam para entender em coisa de casamento; mas
ela, com astúcia maravilhosa, dissimulando seu coração, começou meigamente
a menosprezar as palavras de Trasilo, o qual, com muita instância, importunava
e, humildemente, rogava-lhe que queria casar-se com ele e respondeu:
-Até agora, a formosa cara de seu irmão e meu amado marido apresentase
ante meus olhos, até o aroma celestial de seu corpo dura em meu nariz e
até, também, aquele formoso Lepolemo vive dentro de meu coração. Portanto,
você tomará bom conselho de conceder o tempo necessário para o luto e
pranto que uma mesquinha fêmea como eu é obrigada a fazer, legitimamente,
por seu marido, até que passem alguns meses e cumpra-se o ano, o qual
cumprirá assim a minha honra como ao proveito de minha saúde. Por ventura,
com a pressa de nosso casamento, não ressuscitemos a alma de meu marido
com sua causa e irritação justa, para dano e fim de sua saúde e vida.
Trasilo, não satisfeito com estas palavras, nem contente ao menos com o
prometido que fazia daquele pouco tempo, voltou a instar, jogando palavras
falsas de sua língua lastimeira, tanto que Carites, vencida de sua
inoportunidade, com grande dissimulação, começou a dizer desta maneira:
-Necessária coisa é, Trasilo, que você me outorgue o que com muita
Primeiro livro196
vontade e ânsia lhee peço: o qual é que, por alguns dias, secretamente
sejamos em um, de tal maneira que nenhum dos familiares de casa o sinta, até
que passem alguns dias em que se cumpra o ano.
Trasilo, quando isto ouviu, oprimido da enganosa promessa da mulher,
consentiu alegremente por cumprir sua vontade com ela a furto; logo, desejou
com grande vontade a noite e obscuras trevas, pospondo todas as coisas a
uma vontade, que era tê-la a seu prazer. Carites disse-lhe:
-Você, Trasilo, olhe bem que o faça discretamente, coberta a cabeça e
com sua capa, sozinho, sem companhia, virá a minha porta calando ao
primeiro sono, somente com um assobio que dê, despertará a esta minha ama,
a qual estará esperando à porta, quando chegar, ela abrirá e receberá em
casa, sem nenhuma luz e se meterá em minha câmara.
Quando isto ouviu Trasilo, cedeu muito da maneira que dizia de suas
bodas mortais, não suspeitando outra alguma má coisa, a não ser, turbado
com a esperança, somente se queixava do espaço do dia e da muita tardança
da noite. Depois que o Sol deu lugar à noite, Trasilo, aparelhado como o
mandou Carites, enganado com a vela enganosa da ama, lançou-se à câmara
cheio de prazer e esperança; então a velha, por mandato de sua senhora,
começou-lhe a adular e fazer carícias; secretamente, tirado um jarro grande de
vinho, o qual estava misturado com certa medicina para lhe dar sono, dali com
uma taça deu-lhe a beber três ou quatro vezes, fingindo que sua senhora se
demorava porque estava ali seu pai doente e ela estava perto dele até que
repousasse; desta maneira, Trasilo, bebendo daquele vinho, certamente, com
aquele desejo que tinha, facilmente a velha o enterrou em um profundo sono.
Estando ele já disposto para sofrer todas as injúrias que lhe queriam fazer
Primeiro livro197
dormindo de costas, a velha chamou Carites, a qual, com esforço varonil e
cruel ímpeto, arremeteu com aquele matador, estando sobre ele, disse estas
palavras:
-Vêem aqui o fiel companheiro de meu marido; este é aquele nobre
caçador; este é o marido muito amado; esta mão é aquela mão direita que
derramou meu sangue; este é o peito que pensou e compôs aqueles
enganosos rodeios, palavras para minha destruição e perda; estes são os olhos
a quem eu em má hora agradei, os quais, de nenhuma maneira suspeitando as
trevas perpétuas que lhes tinham que vir, acautelaram sua pena, pois dorme
seguro e sonha bem a seu prazer, que eu não lhe ferirei com faca, nem com
espada; nunca rogo a Deus que tal faça, para que não se iguale com meu
marido em semelhante gênero de morte. Mas, sendo vivo, morrerão seus olhos
e não verá coisa alguma a não ser quando dormir; eu farei que você sinta ser
mais bem-aventurada a morte de seu inimigo que a vida que você houver,
porque, certo, você não verá luz e haverá mister quem lhe guie; à Carites não
terá, nem gozará de suas bodas, nem se alegrará com o repouso da morte,
nem agradará com o desejo da vida; mas, andará como uma estátua, incerto,
andando entre o Sol e o inferno, que nem saiba se pode contar com os vivos ou
com os mortos; andará muito tempo procurando a mão que quebrou seus olhos
e não a achará, a qual na pena e confusão é muito miserável e cheio de toda
angústia, que não saiba de quem se pode queixar; além disto, eu sacrificarei e
aplacarei a sepultura de Lepolemo com o sangue de seus olhos, deste modo
farei sacrifício com estes seus olhos à sua alma santa. Por sua causa eu que
por esta minha tardança, você ganhe alguma demora de sua tortura e por
ventura você agora sonha ou pensa em meus pestíferos abraços? Assim,
deixadas as trevas do sono, vela e acordada a outra cegueira de pena, alta e
Primeiro livro198
levantada a cara vazia de luz; reconhece a vingança, entende sua desdita,
conta suas manchas. Desta maneira arrancarei seus olhos à mulher casta e
limpa; desta maneira ilumina as tochas das bodas ao tálamo de seu
casamento. Desta maneira terão as deusas do matrimônio por vingadas e terá
a cegueira por companhia e perpétuo estímulo de consciência.
Assim, falando e profetizando, Carites tirou um alfinete da cabeça e feriu
com ele os olhos de Trasilo, deixando-o assim cego de todo, enquanto que com
a dor não sentida desprezava a embriaguez daquele sono, ela arrebatou a
espada nua que seu marido Lepolemo costumava rodear e pôs-se a correr
furiosamente por meio da cidade, que por certo eu não sabia que mal era que
queria fazer, assim correu até a sepultura de seu marido. Nós e todo o povo,
sem ficar ninguém em casa, seguimos detrás dela, dispondo uns aos outros
que tirássemos a espada de suas furiosas mãos; mas, Carites sentou-se perto
da sepultura de Lepolemo, ameaçando uns e outros com a espada na mão,
depois que viu os prantos e choros dos que ali estavam, disse:
-Afastem, senhores, estas lágrimas inoportunas; apartem o pranto, que é
alheio de minhas virtudes, porque eu me vinguei do cruel matador de meu
marido; eu puni e castiguei ao ladrão e malvado ladrão de minhas bodas; já é
tempo que com esta espada procure o caminho para ir aonde está meu
Lepolemo.
Depois que contara por ordem todas as coisas, que seu marido o revelou
em sonho, deste modo, de que maneira e com quanta astúcia enganou ao
Trasilo, deu com a espada por debaixo do peito direito; assim caiu morta e
revolta em seu próprio sangue; finalmente, não podendo falar claro, lhe saiu a
alma. Então os criados da pobre Carites correram rapidamente, e, com muita
Primeiro livro199
diligência lavado o corpo, naquela mesma sepultura enterraram-na, dando
perpétua companheira à seu marido.
Trasilo, vistas todas estas coisas que por ele passaram, não podendo
achar gênero de morte que satisfizesse a seu presente tribulação, tendo-se por
muito certo que nenhuma espada, nem faca podia bastar à grande traição por
ele cometida, foi ao sepulcro de Lepolemo e estando ali disse assim:
-Oh, almas de inimizades, vêem aqui onde vem a vítima e sacrifício de
sua própria vontade para sua vingança!
E dizendo isto, lançou-se no sepulcro, fechadas as portas da tumba,
deliberou por fome tirar de si a alma, condenada por sua sentença.
Primeiro livro200
CAPÍTULO II
Como depois que os vaqueiros, eguiços, mordomos do gado de Carites e
Lepolemo souberam que seus senhores eram mortos, roubada toda a fazenda
que estava na propriedade, fugiram para terras estranhas; e do que pelo
caminho lhes aconteceu.
Contando estas coisas, aquele mancebo que ali viera aos outros
lavradores, que com grande atenção o escutavam, suspirava algumas vezes, e
outras também chorava, mostrando grande pena. Então eles, temendo a
novidade da mudança de outro senhor e havendo grande mancha da desdita
que veio na casa de seu senhor, preparam-se para fugir; mas, aquele mordomo
da casa, encarregado das éguas e gado, o qual me recebeu muito
recomendado para tratar e me curar bem, todas quantas coisas tinha que
apreciava na casa carregou em cima de minhas costas e de outros cavalos;
assim, partiu desamparando esta sua primeira morada. Nós levávamos nas
costas meninos e mulheres; levávamos galinhas, frangos, pássaros, gatos e
armas; qualquer outra coisa que por seu fraco passo podia deter a fuga,
andava com nossos pés; como a carga era grande, não me fatigava o peso
dela; antes, a fuga era prazerosa para mim, por deixar aquele velhaco que me
queria castrar e desfazer-me de homem.
Indo por nosso caminho, passando uma encosta muito íngreme de um
espesso monte, entramos por uns grandes campos, já que a noite vinha, que
quase não víamos o caminho, chegamos a uma vila muito rica, aonde os
vizinhos nos defenderam que não caminhássemos de noite, nem mesmo
tampouco de manhã antes do dia, porque havia por ali infinitos lobos muito
grandes e de terríveis corpos, ferozes e muito bravos, que costumavam
Primeiro livro201
destruir e maltratar toda aquela terra; que salteavam nos caminhos a maneira
de ladrões, matando aos que passavam; até com a fome, eram tão raivosos,
que combatiam e entravam nos lugares que por ali havia, de maneira que o
dano e destruição que fizeram nos gados, já começavam a fazer nos homens;
finalmente, disseram-nos que por aquele caminho por onde tínhamos que
passar havia muitos corpos de homens comidos, branqueando os ossos e
roídos, sem nenhuma carne; por isso, que fôssemos muito precavidos, que não
andássemos por aquele caminho a não ser em dia claro e sereno, que o dia
fosse já bem alto e o Sol forte; desviando-nos e afastando-nos dos Montes,
onde eles espreitavam, porque com o Sol do dia o ímpeto e braveza destas
bestas feras refreiam-se e detêm; que não fôssemos derrubados, mas, toda a
companhia junta acontecêssemos àqueles perigos e dificuldades. Mas, aqueles
malvados fugitivos que nos levavam, cegos com o atrevimento da pressa que
eles levavam e medo que não os seguissem, descartando o conselho saudável
que lhes davam, não esperaram o dia, mas perto de meia noite carregaramnos
e começaram a caminhar. Então eu, por medo do perigo, escondido,
quanto mais pude, meti-me em meio de todos, e, escondido em meio de todas
as outras bestas, procurava quanto podia defender minhas ancas que não me
mordesse algum lobo, e todos se maravilhavam como eu andava mais leve que
quantos cavalos ali foram; mas, aquilo não era leviana alegria, mas, era indício
do medo que levava. Finalmente, que eu pensava comigo que aquele cavalo
Pégaso, por medo, nasceram-lhe asas com que voou, por isso voou até o céu,
havendo medo que não lhe mordesse a ardente Quimera. Aqueles pastores que
nos levavam iam a maneira de um exército: uns levavam lanças; outros,
dardos; outros, paus e pedras nas mãos, das quais havia assaz abundância,
porque o caminho era todo cheio delas; outros levavam lanças bem agudas;
Primeiro livro202
alguns levavam tochas ardendo para espantar os lobos; de tal maneira foram,
que não lhes faltava a não ser uma trompetista para que parecesse hoste de
batalha. Mas, como que passamos nosso medo sem perigo, caímos em outro
laço muito maior, porque os lobos, ou por ver muita gente, ou pelas luzes, de
que eles tinham grande medo, ou por ventura porque eram de outra parte,
nenhum deles vimos, nem apareceu perto nem longe; mas, os vizinhos
daquelas bandas, por onde passávamos, como viram tanta gente armada,
pensaram que eram ladrões, provendo à seus bens e fazendas, com grande
temor que tinham de ser roubados, chamaram os cães e mastins, que eram
mais raivosos e ferozes que lobos; mais cruéis que ursos, os quais criaram
assim bravos e furiosos para guarda de suas casas e gados; com seus assobios
acostumados e outras tais vozes enviaram os cães contra nós; eles, além de
sua própria braveza, reforçados com as vozes de seus amos, cercaram-nos de
uma parte e de outra; começam a saltar e morder a gente, sem fazer distinção
de homens, nem de bestas; mordiam tão ferozmente que a muitos jogaram por
esse chão. Fizeram uma festa que era mais para haver mancha do que para
contar, porque como havia muitos cães que ardiam como raivosos, aos que
fugiam arrebatavam com os dentes, e aos que estavam caídos arremetiam; aos
que estavam cansados tiravam-lhes os pedaços, de tal maneira, que a bocados
passavam por toda nossa companhia. Além deste perigo aconteceu outro
maior; os vilãos, de cima dos telhados e de uma encosta que estava ali perto,
lançavam-nos tantas pedras, que não sabíamos do que tínhamos que fugir; de
um lado os cães que andavam perto de nós, do outro, mais longe, as pedras
que vinham sobre nós; de maneira que estávamos em farto apuro. Nisto veio
uma pedra que maltratou a uma mulher que ia em cima de mim, ela, com
grande dor, começou a dar grandes gritos e vozes chamando a seu marido,
Primeiro livro203
que era um pastor daqueles, que viesse a socorrer; ele, quando a viu, limpando
o sangue, começou a dar gritos, dizendo:
-Justiça, Deus! Por que matam os tristes caminhantes e os perseguem;
espantam e apedrejam com tão cruéis ânimos? Que roubo é este? Que dano
lhes fizemos? Não morram em covas de bestas feras, nem entre os penhascos
de selvagens bárbaros, que lhes gozem derramando sangue humano.
Quando ouviram isto, logo cessou o chover das pedras e apartaram a
tempestade dos cães bravos, e um daqueles lavradores que estava em cima de
um cipreste, disse:
-Não creiam que nós, tendo cobiça de seus despojos, queríamos roubarlhes,
mas pensando que o mesmo queriam fazer à nós, pusemo-nos em defesa,
para tirar nosso dano de suas mãos; assim daqui adiante podem ir por seu
caminho seguros, em paz.
Isto dito, começamos a andar nosso caminho bem maltratados, cada um
contava seu mau; uns feridos de pedras; outros mordidos dos cães, de maneira
que todos foram machucados. Indo adiante já boa parte do caminho, chegamos
a um vale de muitas árvores, muito espesso de verduras e frescos, aonde
acordaram aqueles pastores que nos levavam de parar um momento, para
descansar e curarem as feridas; assim deitaram todos por aquele prado; depois
de repousarem, curando suas chagas o melhor que puderam; um lavava o
sangue em um arroio de água; outros, com esponjas molhadas, remediavam o
inchaço de suas chagas; outros ligavam as feridas com ataduras e desta
maneira, cada um procurava sua saúde. Enquanto isso, um velho apareceu por
uma colina, o qual devia de ser pastor de uma manada de cabras que
apascentava por ali, um dos de nossa companhia perguntou-lhe se tinha leite
Primeiro livro204
ou coalhada para vender, e o velho pastor de cabras, meneando a cabeça,
disse:
-Agora cuidam de coisas de comer, de beber e outra refeição? Não sabem
em que lugar estão?
Dizendo isto, agarrou suas cabras e foi bem longe. Tais palavras e sua
fuga não pouco medo pôs aos nossos pastores; assim, estando eles espantados
e não vendo a quem perguntar que coisa era aquela; apareceu outro velho
muito maior que aquele, de mais idade, com um estribilho em mãos,
encurvado, vinha como homem cansado, chorando muito receoso chegou a
nós; fazendo grandes reverências, começou a beijar a cada um daqueles
mancebos nos joelhos, dizendo:
-Senhores, por sua virtude e pelo Deus que adoram, que me socorram
em tribulação a mim, velho coitado, de um menino meu neto que quase está à
porta da morte; o qual vinha comigo neste caminho e atirou uma pedra a um
passarinho que estava cantando; para matá-lo, caiu em uma cova que estava
cheia de árvores por cima, que não aparecia, acredito que está no último de
sua vida, embora pelas vozes que dá, chamando socorro, conheço que ainda
está vivo; mas, por minha velhice e fraqueza, como vêem, não lhe pude ajudar;
vocês, senhores, que são mancebos e robustos, facilmente podem socorrer a
este mesquinho velho, liberando aquele menino, que não tenho outro herdeiro
nem sucessor de minha linhagem.
Dizendo isto, o velho puxava as barbas e queixava as penas, de maneira
que todos tinham dó dele; mas um, mais robusto que nenhum, mais moço, de
grande corpo e forças, que só ouvira o ruído passado, levantou-se alegre e
perguntou em que lugar estava; o velho o mostrou com o dedo entre umas
Primeiro livro205
sarças e matas espessas; assim que o mancebo seguiu depois do velho para
onde lhe mostrara. Os companheiros, quando comeram e nós pastamos,
carregaram-nos para continuar seu caminho, e como aquele mancebo não
vinha, começaram a dar-lhes vozes; quando viram que não respondia,
enviaram um para que o buscasse e dissesse-lhe que viesse rápido, que era já
hora de caminhar; aquele demorou um pouco em procurar ao outro; retornou
amarelo e espantado, dizendo que vira uma coisa maravilhosa daquele
mancebo; que viu como estava morto no chão, meio mordido e um dragão
espantável em cima dele, comendo-o todo, e que não aparecia o velho; o qual,
visto pelos pastores e conhecendo que não havia naquela terra outro morador,
a não ser aquele velho, reconheceram que aquele era o dragão, assim
deixaram aquela má terra e dando-nos boas varadas, fugiram quanto puderam.
Primeiro livro206
CAPÍTULO III
No qual Lucio prossegue contando muitos e notáveis acontecimentos que
se ofereceram sendo asno, e principalmente o que lhe aconteceu quando lhe
furtaram os pastores de Carites, onde se contam coisas graciosas.
Logo chegamos a uma aldeia onde estivemos toda aquela noite e ali
aconteceu uma coisa que eu desejo contar.
Um escravo de um cavaleiro, cuja era aquela propriedade, estava ali por
mordomo e guarda de toda a fazenda; era casado com uma moça, esposa
deste modo daquele cavaleiro; o marido andava apaixonado por outra moça
livre, filha de um vizinho dali; a mulher, com dor e irritação dos amores do
marido, tomou quantos livros de suas contas tinha, toda a fazenda e roupa de
casa; não estando ali seu marido, queimou tudo; não contente com o que
fizera, nem pensando que estava vingada da injúria, tornou-se contra si
mesmo, tomou nos braços um menino filho do marido, atou-o consigo e lançouse
em um poço muito fundo. O senhor, quando soube da morte de sua esposa
e do menino, que fora por causa dos amores do marido, teve muita irritação;
tomou-o nu e melado, atou-o muito fortemente a uma figueira velha, que tinha
muitas formigas que ferviam de um lado a outro; as quais, como sentiram a
doçura do mel e o aroma da carne, embora fossem pequenas, mas infinitas,
com os contínuos e espessos bocados que lhe davam, em três ou quatro dias
comeram-lhe até as vísceras, que deixaram os ossos brancos e sem carne
nenhuma, atado à triste da figueira, do qual os outros lavradores estavam
espantados e com muita irritação. Deixamos também esta abominável terra e
partimos; todo aquele dia andamos por grandes campos, até que cansados
chegamos a uma cidade muito nobre e muito povoada, aonde aqueles pastores
Primeiro livro207
determinaram de tomar suas casas e morar toda sua vida, porque lhes parecia
que ali poderiam muito bem esconder dos que de longe viessem procurar;
além disto, convidava-lhes a morar ali a abundância de muito pão e
manutenções que havia. Finalmente, depois de repousarem três dias para
descansar, porque nos refizéssemos do caminho, para melhor nos poder
vender, foram aos mercadores, e um pregoeiro com grandes vozes começou
apregoar, pedindo seu preço por cada um. O cavalo e outro asno foram
comprados por uns mercadores ricos; mas, eu, sozinho, quase descartado,
todos deixavam-me e passavam; já estava eu muito zangado dos que ali
estavam, que todos me apalpavam as gengivas, querendo saber e contar pelos
meus dentes a idade que tinha; com este asco, chegando para mim um que lhe
fediam as mãos sovando muitas vezes minha boca com seus dedos sujos,
passou um bocado na mão, que quase lhe cortei os dedos; o qual espantou
tanto aos que ali estavam ao redor, que nenhum quis me comprar, dizendo que
era asno bravo e feroz; então o pregoeiro começou a dar grandes vozes, que já
estava rouco, dizendo graças e brincadeiras contra minha desdita e fortuna.
-Até quando demoraremos para vender este pônei ou asno velho? Ele
tem as mãos e pés lascados, fraca e muito ruim cor, preguiçoso, sobretudo
bravo e feroz, tão sem proveito que não é bom a não ser para fazer de sua pele
um crivo para crivar esterco de cabras, ou demo-lo a algum que não pese de
perder a palha que comer.
Desta maneira, jogando aquele pregoeiro, fazia dar grandes risadas aos
que ali estavam; mas aquela minha muito má fortuna, da qual eu fugindo por
tantas províncias, nunca pude fugir, nem com tantos males e tribulações como
passei pude aplacar, outra vez de novo lançou seus olhos cegos contra mim,
dando-me um comprador pertencente para minhas duras adversidades; sabem
Primeiro livro208
tudo bem? Um velho calvo e velhaco, coberto de cabelos dos lados planos e
meio grisalhos, da menor linhagem e dos sedimentos de todo o povo; o qual
andava com outros trazendo para a deusa Síria por essas praças, vilas e
lugares, tangendo pandeiros e mendigando de porta em porta.
Este mendigo, com muita vontade que tinha de comprar, perguntou ao
pregoeiro de onde era eu. Respondeu-lhe que era da Capadócia, que era muito
bom e assaz robusto. Perguntou-lhe mais, que idade tinha. O pregoeiro,
burlando-se de mim, disse:
-Um astrólogo que olhou a constelação de seu nascimento, disse que
poderia agora ter cinco anos; mas, sei que ele saberá melhor estas coisas
segundo a profissão de sua ciência; como eu sabendo incorro na pena da lei
Cornélia se lhe vender cidadão romano por escravo, mas por que não compra
um servidor tão bom e proveitoso, que lhe poderá ajudar tanto em casa como
fora dela?
Com tudo isto, aquele comprador mau não deixou de perguntar quando
isto ouviu e tirar umas coisas de outras; finalmente, perguntou com muita
ânsia se eu era manso. O pregoeiro disse-lhe:
-É tão manso, que não parece asno, a não ser cordeiro; para tudo o que
quer é aparelhado; não remói, nem dá coices; que não pode acreditar a não ser
que debaixo do corpo de um asno mora um homem muito pacífico e modesto,
o qual pode logo conhecer e experimentar, porque se colocar a cara entre as
coxas de suas pernas, facilmente poderá saber e ver quão grande paciente
mostrar-se-á.
Desta maneira o pregoeiro, com suas grosserias, tratava àquele glutão;
mas ele, que reconheceu que o pregoeiro lhe burlava, fez que se zangava e
Primeiro livro209
disse-lhe:
-Oh, corpo surdo e morto, pregoeiro louco; a muito poderosa deusa Síria,
criadora de todas as coisas; santo Sabadio, a deusa Belona, a mãe Réia Cibele;
a senhora Vênus, com seu filho Adônis, tornem-lhe cego pelo que diz contra
mim tantos jogos e enganos! Pensa você, néscio, que tenho eu de confiar à
deusa um asno feroz para que jogue por esse chão a imagem divina e que a
mim, mesquinho, seja forçado, com os cabelos soltos, a discorrer procurando
algum meio para minha deusa, que está arremessada no chão?
Quando eu ouvi estas palavras, subitamente, como quem sai do juízo,
pensei saltar e correr por que me vendo aquele velhaco movido de ferocidade
e braveza, deixasse-me de comprar; mas acautelou meu pensamento o
argucioso comprador, porque logo tirou o dinheiro da bolsa, o qual com muito
gozo, facilmente, recebeu meu amo, por irritação e chateado que estava,
convém saber dezessete dinheiros; logo, atou-me com uma correia de esparto;
assim atado deu ao Filebo, que assim se chamava aquele que era meu senhor;
ele tomou como a noviço servidor, levou-me à sua casa, e logo a entrada da
porta começou a dar vozes aos de sua casa, dizendo:
-Moças, um servidor trago-lhes formoso do mercado: vejam aqui.
Todavia, aquelas moças que ele dizia era uma manada de moços
travestis, os quais, quando o ouviram, tendo com isso muito prazer e alegria,
com vozes roucas e mulheris elevaram grandes clamores, pensando que era
verdade que lhes trazia algum escravo que fosse aparelhado para o que eles
queriam; mas, quando viram que não acontecia como eles pensavam, nem era
servo para donzela, mas era um asno para homem, o rosto torcido e com
irritação repreendiam a seu mestre, dizendo-lhe que não trouxera servidor para
Primeiro livro210
eles, mas que trazia marido para si. Dizendo, além disto:
-Pois, guarde-se que você só não coma tão formoso frango; mas, faz
parte dele a nós, que somos seus criados.
Estas e outras tais coisas falando entre si, ataram-me a um cocho que ali
perto estava; havia entre aqueles um mancebo alto e de bom corpo, o qual
sabia muito bem tocar flauta e trombeta, estava ali pego por salário para andar
por lá fora com os que traziam para a deusa e para tocar a trombeta, mas em
casa exercitando-se em contentar àqueles meio mulheres. Quando ele me viu
em casa, com muito gosto me jogou de comer e alegre disse estas palavras:
-Basta que você veio para me ajudar à miserável trabalho; rogo à Deus
que viva, contente à seu senhor, ajude meus lombos cansados e vazios.
E ouvindo eu estas coisas, já pensava em minhas fadigas vindouras.
Primeiro livro211
CAPÍTULO IV
Como, depois que ao Lucio asno comprou um embusteiro da deusa Síria,
foi destinado para trazer sobre si à deusa; onde conta acontecimentos e casos
notáveis daquela falsa religião de embusteiros.
No dia seguinte, vestidos de várias cores e cada um com seu traje,
barbeadas as caras com seus cosméticos sujos e os olhos alcoolizados, saem
muito compostos com suas mitras e túnicas; outras vestimentas em cima de
linho e algodão; outros levavam túnicas brancas rodadas, pintadas de cores
variadas e calçados sapatos tintos. Indo eles desta maneira, puseram sobre
mim a sua deusa, coberta de uma vestimenta de seda, para que a levasse; nus
os braços até os ombros, levavam facas e tochas nas mãos; como homens
furiosos saltavam, e com o som da trompetista incitavam seus bailes como
homens sem juízo. Andaram por algumas casas e bandas, chegamos a uma
casa, o dono chamava-se Britino; logo, que apareceram, começaram a correr
para lá, fazendo grande ruído com uivos e desconcertadas vozes furiosamente,
baixando a cabeça, torcendo uma parte e outra os cangotes, pendurando os
cabelos e rodeando-lhe à cabeça e mordendo-se algumas vezes os braços;
finalmente, com umas facas que traziam de dois fios davam-se navalhadas nos
braços. Entre estes havia um deles que com maior fúria, assim como homem
diabólico, fingia aquela danificada loucura, para parecer que com as
preferências dos deuses revistam os homens não ser melhores em si, mas
antes fazer-se fracos e doentes. Pois espera e verá o que galardão teve que a
Providência celestial: ele começou a dizer, adivinhando à grandes vozes e
fingindo maior mentira, que queria castigar e repreender a si mesmo, dizendo
que tinha pecado contra sua santa religião; e por isso, queria ele tomar, por
Primeiro livro212
suas próprias mãos, a pena que merecia por aquele pecado que cometera;
assim arrebatou um açoite, o qual era a própria insígnia daqueles meio
mulheres, torcidas muitas cordas de lã de ovelhas, enfeitados com articulações
de pés de carneiro em cores; deu com aqueles nós muitos golpes, até que
adormeceu as carnes, que parecia, maravilhosamente, preservado para poder
sofrer a dor daquelas chagas; que visse como das feridas das facas e dos
golpes da disciplina, todo acostumado, banhava-se da sujeira daquele sangue
efeminado; tal coisa não pouco cuidado e fadiga punha em meu coração,
vendo derramar tão longamente, sangue de tantas feridas; por ventura que ao
estômago daquela deusa estranha não lhe desejasse muito sangue de asno
como aos estômagos de alguns homens deseja muito leite; assim, quando já
estavam cansados, certo, por melhor dizer, estavam fartos de abrir suas
carnes, fizeram pausa cessando daquela carniça e começaram a recolher, em
suas saias abertas, dinheiro de cobre, e até também de prata, que muitos lhes
ofereciam; além disto, davam-lhes jarros de vinho, outros de leite; queijo,
farinha e trigo; alguns davam cevada para mim, que trazia à deusa. Eles, com
aquela cobiça, roubavam tudo que podiam, lançando de costas, que para isto
traziam de intenção, equipados para aquele embuste; todos os jogavam em
cima de mim; de maneira que já eu ia bem carregado com carga dobrada,
porque ia feito depósito e templo; desta maneira discorrendo por aquela
região, a roubavam. Chegando a uma vila principal, como ali acharam proveito
de algum ganho alegre, fizeram um convite de prazer, que tiraram um carneiro
gordo a um vizinho dali, com uma mentira de sua fingida predicação, dizendolhe
que com sua esmola e sacrifício fartasse à deusa Síria, que estava faminta;
assim que seu jantar, bem equipado, foram ao banho e logo vieram muito bem
lavados; trouxeram consigo a um mancebo aldeão dali bem forte e bem
Primeiro livro213
preparado para jantar com eles; quando comeram uns bocados de salada, ali,
diante da mesa, aqueles sujos velhacos começaram a burlar com aquele
mancebo, que tinham nu. Eu, quando vi tão grande traição e maldade, não
podendo sofrer os meus olhos, tentei dar vozes, dizendo: Oh, romanos!; mas
não podendo pronunciar as outras letras e sílabas, somente disse muito claro e
muito robusto, como convém e é próprio dos asnos: Oh, Oh; o qual, como disse
a tempo oportuno, a causa que muitos mancebos de uma aldeia dali perto
andavam a procurar um asno que lhes furtaram aquela noite e andavam muito
aguciosos procurando por todos os caminhos e lugares retirados, ouvindo meu
zurro dentro daquelas casas, acreditaram que naquele rincão esconderam seu
asno; pensavam lançar-se dentro para tomá-lo onde quer que o achassem; de
improviso todos juntos saltaram em casa, onde tomaram aqueles velhacos,
fazendo aquelas malditas sujeiras; quando nos viram começaram a chamar
todos os vizinhos para que vissem aquele trabalho torpe e sujo; além disto,
fazendo brincadeira, elogiavam muito a pura castidade daqueles embusteiros.
Eles, embaraçados e turvados com esta infâmia, que facilmente foi divulgada
por todo o povo, pelo qual, com muita razão, aborreceram e ficaram malquistos
de todos, aquela noite, às doze, postas todas suas roupas, partiram-se
furtivamente daquela vila; andaram boa parte do caminho, antes do dia, já
bem claro o dia, entramos por um deserto de solidão, que ninguém andava por
ali. Então falaram entre si primeiro e depois preparam-se para meu dano e
morte; assim tirada a deusa de cima de mim e posta em terra, tiraram-lhe
todos aqueles paramentos que trazia e nu ataram-me à um carvalho; com
aquele açoite que estava encadeado de ossos de ovelhas, deram-me tantos
açoites, que quase chegaram ao último da morte; houve ali um que com uma
tocha trazida na mão ameaçava-me cortar as pernas, dizendo por que eu tivera
Primeiro livro214
vitória, infamando tão feianchão à sua casta e limpa vergonha. Os outros, não
por respeito de minha saúde, mas por contemplação da deusa, que estava
discretamente, acertaram que eu não morresse; de tal maneira que me
voltaram a carregar daquelas coisas que levava; ameaçando-me com suas
espadas, chegamos a uma nobre cidade, aonde um varão principal dali,
homem de boa vida e que era muito devoto da deusa Síria, quando ouviu o
som dos timbales e pandeiros; o cantar daqueles embusteiros, à maneira dos
que cantam os sacerdotes da deusa Cibele, correu logo a recebê-los; muito
devotamente recebeu por hospédes à deusa, fez-nos colocar dentro do cercado
de sua larga casa; logo começaram a entender em aplacar e sacrificar à deusa
com grande veneração e com grossos animais e sacrifícios. Neste lugar
recordo-me eu escapar de um maior perigo de morte, o qual foi este: um
lavrador dali enviou em presente ao senhor daquela casa um quarto de cervo
grandioso e gordo, o qual recebeu o cozinheiro e o pendurou, negligentemente,
depois da porta da cozinha, não muito alto do chão; um galgo que ali estava,
sem que ninguém o visse, alcançou-o, alegre com sua presa, rapidamente
desapareceu diante dos olhos dos que ali estavam; o cozinheiro, quando
conheceu seu dano e a grande negligência em que acontecia, chorando muito
ferozmente, como desesperado, que já quase seu senhor demandava de jantar,
não sabendo o que fazer, com o muito temor, beijou e abraçou a um menino
que tinha e tomou uma corda para enforcar-se; a mulher, que o queria bem,
não escondendo o caso extremo de seu triste marido, com ambas as mãos
arremeteu a seu marido para lhe tirar o nó mortal da corda que tinha ao
cangote, e disse-lhe:
-Como tão espantado fez este presente mau, no qual cansou e perdeu
todo seu juízo, não olha este remédio fortuito que acaso lhe veio pela
Primeiro livro215
providência dos deuses? Porque se neste último ímpeto da fortuna retorna em
si, acordado e escute-me; toma este asno que agora veio aqui, leva a algum
lugar afastado, desguedelha-o, uma de suas patas, que é semelhante da
perdida, corte-a, muito bem guisado, picado, ou de outra maneira que seja
muito saborosa, ponha diante de seu senhor em lugar do cervo.
Ao velhaco açoitado cedeu de sua saúde com sua morte, elogiando a
sagacidade e astúcia de sua mulher, acertando de fazer de mim aquela
carniça, amolava suas facas.
Primeiro livro216
Nono livro
ARGUMENTO
Neste nono livro conta a astúcia do asno como escapou da morte; de
onde se seguiu outro maior perigo, que acreditaram que rabiava com a água
que bebeu, viram que estava são. Conta deste modo de uma mulher que
enganava a seu marido, porque seu apaixonado, dizendo que queria comprar
um tonel velho, burlou ao marido. Idem ao engano das sortes que traziam
aqueles sacerdotes da deusa Síria e como foram tomados com o furto; de
como venderam a um padeiro, onde conta da maldade de sua mulher e de
outras; depois venderam a um hortelão; da desdita que veio a toda a gente da
casa; como um cavaleiro tomou ao hortelão; o hortelão tomou por força ao
cavaleiro e escondeu-se com o asno, onde depois acharam-o.
Primeiro livro217
CAPÍTULO I
Como Lucio, asno, livrou-se da morte com boa astúcia, por duas vezes
que lhe ofereceu: uma, das mãos de um cozinheiro que lhe queria matar; e
outra, dos criados da casa que presumiram rabiava.
Desta maneira aquele carniceiro traidor armava contra mim suas cruéis
mãos; eu, com a presença de tão grande perigo, não tendo conselho, nem
havia tempo para pensar muito no negócio, deliberei fugindo escapar a morte
que sobre mim estava, e rapidamente, quebrado o cabresto, com que me
ataram, pus-me a correr a quatro pés quanto pude, dando coices a uma parte e
a outra para me pôr são e salvo; assim, como corria, passada a primeira porta,
lancei-me sem receio nenhum dentro da sala onde ceiava aquele senhor da
casa seus manjares sacrificados com os sacerdotes daquela deusa Síria; com
meu ímpeto derramei e verti todas aquelas coisas que ali estavam, assim o
aparador dos manjares como as mesas, castiçais e outras coisas semelhantes;
tal deformidade e estrago, quando viu o senhor da casa, mandou um servo
dele que com diligência me tomasse, como asno importuno e garanhão
encerrasse-me em algum certo lugar, para que outra vez com minha pouca
vergonha não desbaratasse seu convite prazenteiro e alegre. Então, eu alegreime
com aquele guarda de cárcere saudável, vendo como com minha astúcia e
discreta invenção escapara das cruéis mãos daquele carniceiro; mas, não era
maravilha, porque nada vem ao homem diretamente, quando a Fortuna é
contrária; porque à disposição e fado da divina Providência não se pode fugir,
nem reformar com prudente conselho, nem com outro remédio, por mais sagaz
ou discreto que seja; finalmente, que a mesma invenção que a mim parecia
achar para a presente saúde, causou-me e fabricou outro grande perigo, que
Primeiro livro218
até melhor poderia dizer morte presente. Porque um moço, tremendo e sem
cor, entrou súbito na sala onde jantavam, conforme os outros servidores e
familiares entre si falavam; o qual disse a seu senhor como de uma ruela dali
perto entrara um pouco antes, pela portinha da casa, um cão raivoso com
grande ímpeto e ardente furor, enfeitiçara todos os cães da casa; depois
entrara no estábulo e mordeu com aquela raiva, muitos cavalos dos que ali
estavam, até que tampouco deixou aos homens, porque ele mordeu ao Mitilo,
muladeiro; ao Epestión, cozinheiro; também aquele Hipatalio, garçon; ao
Apolônio, físico; e a outros muitos de casa que o queriam jogar fora; de
maneira que muitas das bestas da casa estavam mordidas daqueles raivosos
bocados, o qual assombrou a todos, pensando, por estar eu infeccionado
daquela pestilência, fazia aquelas ferocidades; assim arrebataram lanças,
dardos e começaram a admoestar uns aos outros que lançassem de si um mal
comum e tão grande como aquele; certo, eles me perseguiam e rabiavam mais
que eu, pelo qual sem dúvida me matassem e despedaçassem com aquelas
lanças, flechas, com tochas que traziam, mas sim porque eu, vendo o ímpeto
de tão grande perigo, logo, lancei-me na câmara onde repousavam aqueles
meus amos; então, bem fechadas as portas, em cima de mim velavam à porta,
até que eu fosse consumido, ou morto daquela raiva e pestilência mortal e eles
pudessem entrar sem perigo; o qual assim feito, como eu me vi livre, abracei o
dom da fortuna que a sós viera-me, lancei-me em cima da cama, que estava
muito bem feita, descansei, dormindo como homem, o qual depois de muito
tempo eu não fizera. Já outro dia bem claro e havendo eu muito bem
descansado com a brandura da cama, levantei-me esforçado e espreitei
aqueles veladores que ali estavam me guardando, os quais brigavam minha
fortuna dizendo nesta maneira:
Primeiro livro219
-Este mesquinho de asno acreditam que está fatigado com seu furor,
raiva, e até o que mais certo pode ser: crescendo a peçonha de sua raiva
estará já morto.
Estando eles no término destas variáveis opiniões, ficam a espiar o que é
o que fazia, olhando por uma fenda da porta, viram que estava são e muito
cordato, folgando a meu prazer; e como me viram eles já mais seguros,
abertas as portas da câmara, quiseram experimentar mais inteiramente se por
ventura eu estava manso; um daqueles, que parece que foi enviado do céu
para meu defensor, mostrou aos outros um tal argumento para conhecimento
de minha sanidade, dizendo que me pusessem para beber uma caldeira de
água fresca, se eu sem temor e como costumava, chegasse à água e bebesse
de boa vontade, soubessem que eu estava são e livre de toda enfermidade; se
ao contrário, vista a água houvesse medo e não a queria tocar, tivessem por
muito certo que aquela raiva mortal durava e perseverava em mim, e que isto
tal se costumava a guardar, conforme se conta nos livros antigos. Como isto
rogo a todos, tomaram logo uma grande tigela de água muita clara, que
trouxeram de uma fonte dali perto, e duvidando, com algum temor, puseramme
adiante; eu saí logo, sem tardança nenhuma a receber a água, com farta
sede que eu tinha, abaixado lancei toda a cabeça e comecei a beber daquela
água, que assaz era para mim verdadeiramente saudável. Então eu sofri
quanto eles faziam, dando-me golpes com as mãos, puxando-me as orelhas,
travando o cabresto, ou qualquer outra coisa que eles queriam fazer para
experimentar minha saúde; eu tinha prazer disso até tanto que contra sua
desvairada presunção eu provasse claramente minha modéstia e mansidão
para que a todos fosse manifesta.
Primeiro livro220
CAPÍTULO II
No qual conta Lucio uma história que ouviu acontecer em um lugar onde
chegaram um dia; como uma mulher enganou graciosamente a seu marido por
gozar de um apaixonado que tinha.
Desta maneira, tendo escapado de dois perigos, no dia seguinte,
carregado outra vez dos divinos despojos, com seus pandeiros e rosinhas,
confinando por essas aldeias começamos a caminhar; havendo já passado por
alguns castelos e casarões, chegamos a um lugarejo onde fora uma cidade
muito rica, conforme os vizinhos dali contavam e até aparecia nos edifícios;
hospedados ali aquela noite, contarei uma graciosa história que acontecera de
uma mulher casada com um homem pobre trabalhador, a qual quero que
também saibam. Este era um homem que se aprontava para ir trabalhar, e
com aquilo pouco que ganhava mantinham miseravelmente; tinha uma mulher,
embora também pobre, mas galante e lisonjeada. Um dia, de amanhã, como
seu marido fosse à praça onde o alugavam para trabalhar, veio o apaixonado
por sua mulher e lançou-se em casa; como eles estivessem a seu prazer,
encerrados no palácio, o marido, que nenhuma coisa daquilo sabia nem
suspeitava, retornou de improviso à casa, e, como viu a porta fechada,
elogiando a bondade e continência de sua mulher, chamou à porta,
assobiando, para que a mulher reconhecesse que vinha; então a mulher, que
era maliciosa e ardilosa para tais sobressaltos, abraçando e adulando a seu
apaixonado, fê-lo meter em um tonel velho que estava a um rincão de casa,
meio quebrado e vazio; aberta a porta a seu marido, começou a brigar com
ele, dizendo:
-Como assim vêm vazio e muito devagar? Colocadas as mãos nos seios
Primeiro livro221
têm que vir? Não olham nossa grande necessidade e trabalho de nossa vida?
Por que não trazem alguma coisa para comer? Eu, mesquinha, que todo o dia e
toda a noite quebro-me os dedos fiando e encerrada em minha casa, ao menos
que tenha para acender um candelabro; bem-aventurada e ditosa minha
vizinha Dafne, que em amanhecendo come e bebe quanto quer e todo o dia se
agrada com seus apaixonados.
O marido, com isto convencido, disse:
-Pois o que é agora isto? Embora nosso amo está hoje ocupado em um
pleito e não pôde nos levar a trabalhar, eu tenho provido ao que temos que
comer: sabe, senhora, aquele tonel que ali está vazio tanto tempo há nos
ocupando a casa, que outra coisa não aproveita, vendi-o por cinco dinheiro a
um que aqui vem para que me dê o dinheiro e leve-o por dele. Por que não se
levanta rápido e ajuda-me para que demos este tonel quebrado e velho a
quem o comprou?
Quando isto ouviu a mulher, do mesmo que seu marido dizia tirou um
engano, e fingiu uma grande risada, dizendo:
-Oh que grande homem e bom negociador que achei, que a coisa que eu,
sendo mulher necessitada em minha casa, vendi por sete dinheiro, vendeu na
rua por menos!
O marido respondeu alegre e disse:
-Quem é este que tanto deu?
Respondeu a mulher:
-Você muito pouco sabe; agora entrou um dentro nele para ver tudo bem
estava, se era muito velho.
Primeiro livro222
Não faltou a sua astúcia a malícia do adúltero, que logo saiu do tonel
alegre, dizendo:
-Boa mulher, quer saber a verdade? Este tonel, muito velho e podre, é
aberto por muitas partes.
E dissimulada voltando-se ao marido, como que não o conhecia, disselhe:
-Você, homenzinho, quem quer que seja, por que não me traz rápido um
candelabro para que, raspando estes sedimentos que tem, possa conhecer se
vale algo para me aproveitar dele? Ou pensa que temos dinheiro ganho em
jogo?
O bom homem, não pensando nem suspeitando mal, não demorou para
trazer o candelabro. Disse ao início:
-Afaste-se um pouco, irmão; grave você, que eu entrarei em embelezar e
raspar o que você quer.
Dizendo isto, tirou o capote e tomou a mulher o candelabro; ele entrou no tonel
e começou a raspar aquelas crostas. O adúltero, como viu a mulher abaixada,
iluminando a seu marido, burlava-a; e ela, com astúcia, colocada a cabeça no
tonel, burlava do marido, dizendo:
-Raspa aqui, ali, tira isto e isto outro... - mostrando-lhe com o dedo, até
que a obra de ambos foi acabada.
Então saiu do tonel, tomando seus sete dinheiros, o mesquinho do
marido carregou o tonel nas costas e levou-o até a casa do adúltero. Aqui
estivemos alguns dias, onde pela liberalidade dos daquela cidade fomos muito
bem tratados e meus amos bem carregados de muitos dons e graças que lhes
davam por suas adivinhações.
Primeiro livro223
CAPÍTULO III
No qual Lucio conta uma ardilosa maneira de que usavam os
embusteiros para tirar dinheiro, e como foram presos de modo vil, por furtar de
seu templo um cântaro de ouro, como foi o asno vendido a um padeiro e do
trabalho que ali lhe aconteceu.
Além disto, os limpos e bons dos embusteiros inventaram outra nova
linhagem de arrumar dinheiro; na qual traziam uma sorte só, esta, embora era
uma, eles referiam a muitas coisas, porque em cada colônia daquelas a
tiravam para responder, enganar aos que os perguntavam e consultavam sobre
coisas várias e a sorte dizia desta maneira: «Portanto, os bois juntos aram a
terra, porque para o tempo vindouro nasçam os trigos alegres.» Com esta sorte
burlavam a todos, porque se alguns desejavam casar-se e lhes perguntavam
como aconteceria, diziam que a sorte respondia que era muito bom para
juntar-se por matrimônio e para criar filhos; se algum queria comprar uma
propriedade, respondiam que era muito bom, porque os bois e o jugo
significavam os campos floridos e alegres da semente; se algum, solícito de
caminhar, perguntava àquele adivinho ou agouro, diziam que era muito bom,
porque viam como estavam juntos e aparelhados os mais mansos animais de
quantos tem quatro pés e sempre prometiam ganho do que na terra se
semeava; se alguns daqueles queria ir à guerra ou a perseguir ladrões,
perguntava se era sua ida proveitosa ou não, respondia que a vitória era muito
certa, segundo a demonstração da sorte, porque subjugaria a seu jugo as
nucas dos inimigos, teria que o que roubassem muito abundante e proveitosa
presa. Com esta maneira de adivinhar e com sua grande astúcia enganosa não
pouco dinheiro arrumavam; mas eles, já cansados de tantas perguntas e de
Primeiro livro224
receber dinheiro, preparam-se ao caminho e começaram caminhar por uma via
muito pior que a que andamos de noite, porque havia muitas lacunas de água
e rastros, que cada momento caíamos: de uma parte do caminho quase
banhava um lago grande que havia ali, e da outra parte esbarrasse de um
barro como de lama; finalmente, caindo e tropeçando, já lascados os pés e as
mãos, que logo que pude sair dali, cansado e fatigado, chegamos a uns
campos; e eis que subitamente à nossas costas uma manada de gente a cavalo
armada, que não podiam ter os cavalos, com aquele raivoso ímpeto
arremeteram ao Filebo e aos outros seus companheiros e encheram as mãos
aos cangotes, chamando-lhes sacrílegos, irregulares e falsários, dando-lhes
bons murros, colocaram em todos algemas às mãos e com palavras muito
rudes começaram a apertar-lhes para que logo descobrissem onde levavam um
cântaro de ouro que furtaram; que dissessem a verdade, que aquilo era
argumento e indício de sua maldade; que fingindo eles de sacrificar
secretamente, à mãe dos deuses que ali havia, de seu estrado furtaram
escondido; pensando escapar a pena de tão grande traição, calando sua
partida, antes que amanhecesse, saíram eles da cidade. Dizendo isto, não
faltou um daqueles cavaleiros que por cima de minhas costas colocou a mão
debaixo das saias da deusa que eu trazia e procurando bem achou o cântaro
de ouro, o qual tirou diante de todos; contudo deste tão nefando crime, não se
envergonharam, nem espantaram aqueles sujos velhacos, mas antes fingindo
um mentiroso rir, dizendo:
-Oh, que crueldade! Desde tão indigna coisa, quantos homens perigam
não tendo culpa; por um vaso, que a mãe dos deuses apresentou a sua irmã
Síria, em graça de ter por hospédes em sua casa e por isso, vocês levam seus
sacerdotes como culpados? Quebrantamos sua religião para nos condenar?
Primeiro livro225
Estas e outras tais mentiras alardeando eles muito, não se curaram
aqueles cavaleiros e retornaram para atrás; assim bem atados os colocaram no
cárcere; o cântaro de ouro e a deusa, que eu levava tornaram a pôr em seu
templo, onde estavam aqueles dotes que ali ofereciam. No outro dia levaramme
à praça; e outra vez me puseram em leilão, pregoando o pregoeiro a quem
mais dá por ele; e um padeiro de um lugar dali perto comprou-me sete
dinheiros mais caro que primeiro me comprara Filebo; o tal moleiro logo
carregou-me muito bem de trigo que ali comprara; e por um caminho de
muitas encostas, pedregoso e muito mau de andar, levou-me à sua padaria,
que aquele era seu ofício: assim vi muitos cavalos e burros de carga que
traziam aquelas demola em redor, dando voltas sempre por um caminho; não
somente de dia, mas toda a noite com luz faziam, voltando continuamente,
aquelas padarias; mas, como eu vinha de novo, porque não me espantasse da
novidade daquele serviço, hospedou-me o novo senhor em lugar largo, onde
estivesse, porque aquele dia, primeiro que cheguei, deixou-me folgar, dandome
muito bem de comer; mas, aquela bem-aventurança de folgar e comer não
durou mais adiante, porque no dia seguinte bem de manhã, eu amarrado à
uma pedra daquelas, que parecia ser a maior de todas, coberta minha cara fui
compelido a caminhar por aquele espaço redondo do canal torcido, de maneira
que eu, retornando e sofrendo meus passos na redondez daquele término
recíproco, andava vagando por engano certo; não esquecendo minha
sagacidade e prudência, facilmente dava-me à novidade de meu serviço; como
quando eu era homem, muitas vezes, visse semelhantes pedras trazer ao
redor, mas como não sabia aquilo, mentindo que me espantava, caído, que não
queria andar, o qual eu fazia acreditando que como não me achassem
aparelhado, nem proveitoso para ofício semelhante, que enviariam a outro
Primeiro livro226
lugar aonde houvesse mais leve trabalho; ou, por ventura, deixariam-me folgar
e dar-me-iam de comer; mas em vão pensei eu aquela astúcia danosa, porque
logo muitos dos que ali estavam ficaram ao redor de mim com varas nas mãos;
como eu estava preso, por ter os olhos tampados, subitamente, dado sinal e
grandes vozes, deram-me muitas varadas; de tal maneira com aquele ruído me
espantaram, que logo, deixados todos aqueles conselhos, muito sabiamente,
como amarrado com aquelas correias de esparto, fiz meus discursos e voltas
alegres; com esta súbita mudança de um extremo a outro, os que ali estavam
caíram na risada.
Já grande parte do dia moera, andava cansado, quando me tiraram as
correias de esparto com que andava preso à pedra e levaram-me ao cocho;
mas eu, embora bem fatigado e havia mister descansar, que quase estava
perdido de fome, posposto o comer, que tinha assaz diante de mim, para olhar
a família e gente daquela casa. Oh, Deus, que homens havia ali pintados dos
sinais dos açoites que lhes davam, as costas negras das feridas e paus, com
umas almofadas, mais para cobertura que vestimenta; outros somente em
panos menores cobertas suas vergonhas, e tão quebrados que quase todo se
pareciam; ferrados na frente e argolas de ferro nos pés; as cabeças tosquiadas,
os olhos cortados, comidas as pestanas da fumaça e fuligem da casa; pelo
qual, todos tinham os olhos muito maus e branqueavam com a cinza suja da
farinha, como quando quão lutadores querem lutar polvilham-se com terra!
Pois de meus companheiros os outros asnos e burros de carga que moíam, o
que poderia dizer? Quão cansados aqueles mulos e outros jumentos fracos;
perto dos estábulos, cabisbaixos, roendo restos de palha, os cangotes
esfolados e cheios de chagas podres, as narinas abertas, que de cansados não
podiam tomar fôlego; os peitos de doença tossindo e dos parapeitos que lhes
Primeiro livro227
punham para moer, todos cortados e ulcerados, que quase lhes apareciam os
ossos; as unhas de pés e mãos elevadas para cima de não errar, e manetas de
andar ao redor; toda a pele sarnenta de magrez e fraqueza. Olhando eu isto,
temia de vir em outro tanto, recordando-me de quando era homem, e que
viera em tanta desventura, abaixada a cabeça, chorava, e não tinha outra
distração de minha pena a não ser que com meu natural engenho, que tinha,
recreava-me algo; porque, não curando de minha presença, livremente fazia e
falava cada um diante de mim o que queriam; por onde eu conheci que não
sem causa, aquele divino autor da primeira poesia, desejando mostrar um
varão de grande prudência entre os gregos, celebrou e elogiou ao Ulisses
alcançar as soberanas virtudes por andar muitas cidades e conhecer diversos
povos; assim eu, recordando-me disto, agradecia a meu asno porque me trazia
encoberto com sua figura, exercitando-me por muitos diversos casos e
fortunas; pelo qual, senão foi prudente, ao menos me fez sabedor de muitas
coisas.
Primeiro livro228
CAPÍTULO IV
No qual Lucio conta um gracioso acontecimento; no qual a mulher do
padeiro, seu amo, gozou um apaixonado que tinha, e como tomando-os juntos
os castigou, na qual vingança se enforcaram por arte de encantamento.
Finalmente, que eu deliberei de trazer para suas orelhas uma boa história
brandamente composta, melhor que as que disse, no começo.
Aquele moleiro que me comprou era homem de bem, de boa
conversação, tinha uma mulher a mais péssima e má que nenhum podia ser,
com a qual ele passava muita pena e irritação em sua casa; que por certo eu
tinha dó daquele bom homem, porque nenhum vício faltava naquela má
mulher, que todos se lançaram em seu corpo como em uma sujeira necessária:
soberba, cruel, luxuriosa, bêbada, instada, avara em roubar de onde pudesse,
gastadora em coisas sujas, inimizade de fé e de honra; menosprezava os
deuses e mentia jurando por eles; com estes juramentos enganava a todos e
ao mesquinho de seu marido; embebedava-se logo de manhã e todo o dia
gastava com seus apaixonados. Esta má mulher com grande ódio perseguiame;
em amanhecendo, antes que ela se levantasse, chamava os moços e
mandava que pusessem a moer ao asno noviço; e como ela saía do palácio que
se levantava, ali em sua presença mandava-me dar de paus; e quando
soltavam as outras bestas cedo, mandava que a mim deixassem até mais
tarde, que não me dessem de comer; e esta sua crueldade foi causa que eu
mais em seus costumes olhasse; de maneira que eu via freqüentemente entrar
um mancebo em seu palácio, a cara do qual eu desejava ver, mas não podia,
pelos óculos que trazia ante os olhos; verdade é que não me faltava astúcia,
para descobrir, de qualquer maneira, a maldade que aquela má mulher fazia à
Primeiro livro229
seu marido; mas uma velha, que sabia a ruindade e era mensageira entre ela e
seu amigo, nunca partia o dia inteiro dali; em amanhecendo almoçavam e o
vinho puro alternavam entre si, quem beberia mais. A má da velha cúmplice
fazia estes aparatos enganosos em grande dano do triste marido; embora
muitas vezes, zangava-me contra Fotis, que para me fazer ave, tornou-me
asno, nesta minha triste deformidade havia prazer, que como tinha as orelhas
largas, qualquer coisa que diziam, logo ouvia, embora estivesse longe. Um dia,
estando a velha falando com ela, dizia estas palavras:
-Deste mancebo, filha senhora, olhe bem o que se cumpre. Você, sem
meu conselho, amou-o; ele é negligente e temeroso; tem grande medo em ver
o gesto enrugado de seu marido; com tal apaixonado, frio e preguiçoso, passa
você muita pena e fadiga; deveria folgar, agora que tem tempo; quanto melhor
Filesitero, aquele mancebo formoso, gentil, homem liberal, magnífico e contra o
ciúmes destes maridos esforçados; digno por certo de ser apaixonado por
todas as mulheres e merecedor de trazer uma coroa de ouro na cabeça por só
uma coisa que fez outro dia e inventou contra um casado colosso. Ouça-me
agora e olhe quanta diferença tem de um apaixonado a outro. Conhece um
barbudo, que é prefeito desta vila, o qual, por ser muito áspero em seus
costumes e conversação, todo o povo lhe chama escorpião? Este tem uma
mulher, filha de rico e muito formosa, com muito guarda encerrado em sua
casa.
Nisto que a velha dizia, respondeu a mulher do padeiro:
-Pois não tenho de conhecer? Você, diz, minha companheira, que sabe
tanto desta arte como eu.
A velha procedeu, dizendo:
Primeiro livro230
-Pois sabe a história que aconteceu com este Filesitero?
Respondeu a mulher:
-Eu não sei tal coisa, mas, desejo saber; por isso, rogo-lhe, senhora mãe,
que me conte isso tudo como passou.
A má velha faladeira, sem mais demorar, começou:
-Este barbudo tinha necessidade de ir uma viagem a outra parte; como
era ciumento e desejava guardar a honra de sua mulher, chamou um escravo,
por nome Hormigão, o qual era tido por mais fiel que outro e mais diligente; a
este concedeu, secretamente, toda a guarda de sua mulher, dizendo-lhe que
senão guardasse bem a sua senhora, de maneira que nenhum passando perto
dela tocasse-lhe com o dedo ou com a saia, que lhe jogaria ferros e em
cárcere, perpetuamente, onde morresse de fome; o qual jurou e perjurou
muitas vezes por todos os deuses; assim, com esta segurança ele partiu,
deixando por robusto guardião à Hormigão e bem amedrontado, o qual
guardava a sua senhora com tanta diligência, que a nenhuma parte a deixava
sair e de contínuo estava assentada perto dela, fiando ou fazendo outras coisas
que as mulheres fazem em sua casa; se alguma vez, por grande necessidade,
lavar-se-ia ao banho, Hormigão ia tão apegado a ela, que as saias levava na
mão; desta maneira, com muita sagacidade, cumpria o que seu senhor lhe
mandara. Mas, não se pôde esconder ao Filesitero a formosura desta gentil
mulher, porque a bondade, castidade dela e a grande diligência de seu guarda
lhe inflamou, pôs mais cobiça para fazer tudo o que pudesse e ficar a qualquer
perigo que lhe viesse; com esta vontade propôs de combater, tomar de assalto
a pudor e coisa bem guardada da dona; confiando e sendo certo que a
fraqueza humana, com o dinheiro, ao qual toda dificuldade é plana, pode-se
Primeiro livro231
facilmente derrubar; que o ouro por onde queira, acha entrada, embora as
portas sejam de diamantes muito fortes. Um dia, andando neste pensamento,
Filesitero achou sozinho Hormigão; disse-lhe abertamente toda sua pena e
amor, rogando-lhe com muita cortesia que desse remédio à sua tortura, porque
se rápido não alcançasse o que desejava, sua morte era muito certa; que nisto
não temesse, porque ele iria muito secretamente, de noite que ninguém o
sentisse e em um momento de hora retornaria. Estas e outras persuasões tais
dizendo, acrescentou um maior aguilhão, o qual rompeu e perverteu à
Hormigão por sua cobiça; jogou mão à bolsa e tirou trinta ducados novos,
resplandecendo, dos quais disse à Hormigão que desse vinte à sua senhora e
tomasse dez para si. Quando isto ouviu Hormigão, espantou-se de tão
abominável pecado, tampando as orelhas pôs-se a fugir; mas o resplendor e
cobiça que tinha do ouro não lhe pôde fugir dos olhos e do coração; afastado,
longe indo-se às pressas para casa, apresentava a formosura da moeda ante os
olhos e desejava arrumar o que já enraizara no coração. Com este pensamento
o mesquinho navegava como nas ondas do mar, seja em uma sentença, seja
em outra; de uma parte lhe representava a fidelidade, de outra o ganho; de
uma a pena com que lhe ameaçou seu senhor, da outra o deleite proveitoso do
ouro; finalmente, que o ouro venceu ao medo da morte, de maneira que a
cobiça do formoso dinheiro, por nenhum espaço de tempo, mitigava-lhe; antes
de noite dava-lhe tanto cuidado a avareza do dinheiro, que não podia dormir,
como seu senhor lhe ameaçara, que não saísse de casa, o anseio do ouro o
tirava fora; quando mais não pôde consigo tragava a vergonha, separando de
si toda tardança, chegou à sua senhora, secretamente, à orelha disse-lhe todo
o negócio como passava; ela, com a natural obscenidade, logo obrigou sua
pudicícia ao maldito metal e se prendeu por arrumar o dinheiro; quando
Primeiro livro232
Hormigão ouviu isto, cheio de prazer e gozo desejava já, não somente receber,
mas sim sequer tocar aquele dinheiro, que ao preço de sua fidelidade vira por
seu mal; com muita alegria foi dizer à Filesitero aquilo que acertara com sua
senhora, pediu logo o que lhe prometera. Quando Hormigão viu em sua mão
muita moeda de ouro, que nunca vira, estava tão alegre, que logo em vindo a
noite tomou ao Filesitero sozinho; cobriu a cabeça foi à sua casa e meteu na
câmara da senhora. Os novos apaixonados, estando nus, tornando o primeiro
fruto de seus amores, não pensando nem suspeitando a vinda de seu marido,
deu subitamente à porta de sua casa; começou a dar grandes vozes e quebrar
as portas com uma pedra, quanto mais demorava para lhe abrir, quanto mais
suspeita lhe punham do que ele tinha; assim começou a ameaçar à Hormigão
que o mataria. Hormigão, ouvindo isto e com a pressa que lhe dava, estava
turbado, com a confusão não tinha conselho, nem sabia o que fazer; o mais
que podia era dizer que não tinha luz e com a escuridão que não acertava com
a chave da porta, que tanto tinha bem guardada, que não achava; quando de
Filesitero, ouviu o ruído, arrebatou sua roupa e vestiu-se, mas com a confusão
não se recordou ou não pôde calçar as chinelas, e saiu da câmara. Nisto
Hormigão chegou com a chave e abriu as portas a seu senhor, o qual entrou
bramando:
-Esta é a fidelidade que você tem à seu senhor?
Quando entrou arremeteu à câmara; enquanto Filesitero voltou pela porta
fora de casa e Hormigão fechou as portas. O marido, desde que viu todo
seguro, já um pouco manso fosse dormir. No outro dia, logo depois de manhã,
como o barbudo se levantou, viu debaixo da cama umas chinelas que não
eram de casa, as quais trouxe Filesitero quando ali veio. Ele, suspeitando dali o
que podia ser, calou sua dor, que nem a sua mulher, nem outro de casa disse
Primeiro livro233
coisa alguma; tomou as chinelas secretamente, colocou-as no peito e mandou
outros servos que lhe trouxessem Hormigão atado até a praça. O barbudo, indo
ainda consigo grunhindo e às pressas andando para a praça, tinha por certo
que pelas chinelas tinha que achar ao adúltero, que suspeitava ter estado com
sua mulher. Indo ele neste pensamento, a cara turva, as sobrancelhas caídas e
muito zangado, detrás dele, Hormigão, atado, embora não se sabia a culpa que
tivesse, mas ele mesmo bem sabia, pelo qual chorava de maneira que movia
os que o viam que havia mancha, acaso Filesitero que ia a outro negócio
encontrou com isso; como viu de que maneira levavam à Hormigão, sem medo
nem confusão, recordando-se que esquecera na câmara as chinelas e
suspeitando que por aquilo levavam assim atado, Hormigão, astutamente e
com seu esforço acostumado, apartou aos outros servos e arremeteu com
Hormigão, com grandes vozes começou a dar de murros e dizendo-lhe:
-Oh, malvado ladrão enforcado! Este seu senhor e todos os deuses do
céu a quem você perjurou lhe façam mal e destruam-lhe, que me furtou no
outro dia minhas chinelas no banheiro; bem merece por certo, e muito bem o
merece, que morra nestas cadeias, prisões que agora tem, e até em cárceres
obscuros.
Com este engano de Filesitero, o barbudo, que ia determinado de matar à
Hormigão e posto já em toda crueldade, retornou à sua casa e chamou à
Hormigão, ao qual deu as chinelas e perdoou com muito gosto, e o mandou
que logo voltasse a quem as furtara.
Acabado a velha de dizer isto, começou a mulher do padeiro:
-Bem-aventurada ela, que goza da liberdade de tão constante e robusto
apaixonado; mas eu, mesquinha de mim, que caí com um que tem medo do
Primeiro livro234
som do molar e da cara coberta daquele asno sarnento que ali está.
Respondeu a velha:
-Pois se você quiser, eu convocarei a este alegre apaixonado que venha
diante de si, e logo vou por ele; quando for de noite me espere, que eu
retornarei.
A boa mulher, com o anseio que tinha de ver aquele apaixonado,
preparou muito bem o jantar, vinhos muito preciosos, a mesa com toalhas
limpas, esperando sua vinda como de algum deus; acaso o marido jantava
aquela noite com seu vizinho. Já quase ao meio-dia, que nos soltavam da
padaria para nos dar de comer, eu não tinha tanto prazer com a comida e
descanso quanto era para que me desatavam os olhos, que livremente podia
ver as artes e enganos daquela má mulher, até que já o Sol posto vem aquela
má velha com o adúltero escondido a seu lado. Era um moço gentil-homem,
que quase então nasciam as barbas. Ela recebeu-o com muitos beijos,
abraçando-o e sentaram-se à mesa. Em começando a jantar os primeiros
bocados o marido bateu na porta, sem ser esperado, nem acreditando que
viesse tão rápido; ela, de muito boa mulher, quando o viu começou a
amaldiçoar, que as pernas tivesse quebradas e os olhos cegos.
Dizendo isto, sobressaltada, colocou o apaixonado debaixo de uma tina
em que limpavam o trigo e sentou-se perto dele; com sua malícia acostumada,
dissimulando tanta maldade com seu rosto sereno, perguntou a seu marido o
que era a causa por que vinha tão rápido, deixando o jantar de seu amigo e
vizinho.
Ele começou a suspirar e com muita tristeza disse:
-Eu vim porque não pude sofrer tão abominável maldade daquela má
Primeiro livro235
mulher. Oh, Deus, e que mulher tão honrada, tão fiel a seu marido, tão correta,
sujar-se agora em uma coisa tão feia! Juro por este pão, que embora eu o visse
com meus olhos não acreditasse.
Ela, incitada destas palavras do marido, muito ousada, desejando saber
que coisa era aquilo, não cessava de importunar ao marido que lhe contasse
aquele negócio como passava, nem descansou até que ele contou e satisfez a
sua vontade, contando duelos alheios e não sabia dos seus, dizendo assim:
-A mulher deste meu vizinho e amigo, certo parecia mulher de vergonha
e casta, que segundo sua boa fama, a governança de sua casa e serviço de seu
marido não havia suspeita má contra ela; agora caiu em adultério e maldade
de sua pessoa. Quando íamos jantar à sua casa ela parece que se deitava com
seu apaixonado, secretamente; quando chegamos, turvada com nossa
presença, de súbito conselho provida tomou àquele seu apaixonado e colocouo
debaixo de uma máquina de vimes, onde impregnara de enxofre suas toalhas
que estavam junto à mesa. Pensando ela que já estava certamente escondido
seu apaixonado, sento-se à mesa para jantar conosco sem nenhum cuidado,
nem sobressalto; enquanto isso, com a grande fumaça do enxofre
embaraçando o negro apaixonado; como não podia respirar debaixo do
aromatizador, como é viva aquela fumaça, começou a espirrar da parte onde
estava sentada a mulher. O marido pensou que era ela e disse-lhe: «Deus lhe
ajude», como se costuma dizer; deu outro espirro, outro, depois espirrou tantas
vezes, que o marido suspeitou o que podia ser; jogou de si a mesa, elevou o
aromatizador e achou debaixo o gentil homem, que com a grande fumaça
estava quase morto, que não respirava. Quando o viu, inflamado de sua injúria,
jogou a mão em sua espada, que o queria degolar, mas porque eu estava
presente e não me culpassem da morte daquele homem o defendi, dizendo
Primeiro livro236
também que não cuidassem dele, que rápido morreria sem nos carregar culpa,
conforme estava quase afogado da fúria e violência do enxofre. Ele, como viu
que lhe faria bem, mais por necessidade dela que por minha persuasão,
amansado da irritação, tirou o adúltero meio vivo e jogou-o em uma ruela perto
de sua casa. Eu, como vi a revolta, disse à sua mulher que fugisse à casa de
uma vizinha enquanto que ao marido estivesse com irritação, amansava-lhe o
calor da ira e dor do coração, porque com a raiva não duvidava que de si e de
sua mulher fizesse algum mal. Assim que eu, zangado do que acontecera em
seu convite, retornei à minha casa.
Dizendo isto o padeiro, sua mulher repreendia muito más palavras à
mulher daquele vizinho, dizendo que era uma má mulher, sem fé e sem
vergonha; desonra todas as mulheres, que, posposta sua honra e bondade,
menosprezando a honra de seu marido e casa; sujara-a e desonrara-a, por
onde perdera nome de casada e tomara fama de mentirosa; até acrescentava,
em cima disto, que tais fêmeas mereciam vivas, serem queimadas. Mas esta,
instigada e admoestada da chaga que sentia; de sua má e suja consciência,
querendo liberar a seu apaixonado pela pena que tinha debaixo da tina,
instava muito a seu marido que fosse deitar cedo. Ele, como perdera o jantar
em casa de seu amigo, para não dormir em jejum e sem jantar, demandou à
mulher que lhe pusesse a mesa. Ela, embora contra sua vontade, porque
estava para outro pronta, colocou diante, muito depressa e a contra gosto.
Queria arrancar-me o coração e as vísceras, vendo a maldade passada que fez,
a traição presente de tão má mulher; pensava comigo como descobrindo
aquele engano e maldade poderia ajudar a meu senhor, àquele que estava
como cágado debaixo da tina, fazer que todos lhe vissem. Estando em pena
com isto, a fortuna o teve que prover, porque um velho coxo que encarregado
Primeiro livro237
das bestas, já que era a hora de nos levar a beber, retirou a todos juntos, o
qual me deu causa muito oportuna para vingar aquela injúria; assim, passando
perto da tina, vi que, como era estreita, tinha fora os dedos da mão e coloquei
o pé em cima, apertando tão receoso, que lhe esmiucei os dedos. O adúltero,
com a grande dor, deu grandes vezes, levantando de si a tina de maneira que
ficou descoberto a todos e foi publicada a maldade daquela má mulher. O
padeiro, quando isto viu, não se curou muito pelo dano da honestidade de sua
mulher; antes, com o gesto sereno e alegre, começou a falar com moço, que
estava amarelo e temeroso de morte e adulando-lhe, disse desta maneira:
-Não tema, filho, que de mim lhee possa vir mal nenhum, porque eu não
sou bárbaro, nem caipira, nem tampouco tenha medo que o matarei com
fumaça de pedra impregnada de enxofre mortal, como meu vizinho, nem
tampouco lhe acusarei para o degolar pela severidade do direito, nem pelo
rigor da lei dos adúlteros, sendo você tão formoso e lindo mancebo. Mas, certo
eu lhe tratarei igualmente com minha mulher e não o separarei de minha
propriedade; mais usualmente partirei contigo e sem nenhuma dissensão nem
controvérsia; todos três moraremos em um, porque sempre eu vivi com minha
mulher em tanta concórdia, que, segundo a sentença dos sábios, sempre uma
coisa agradava ambos. Mas, a mesma razão não padece, nem consente que
tenha mais autoridade a mulher que o marido.
Com estas adulações burlando-se, levou o moço à sua câmara, embora
ele não quisesse; e a boa de sua mulher, encerro-a na outra câmara.
No outro dia de manhã, como o Sol saía, chamou dois valentes mancebos
de seus criados e mandou tomar o moço e açoitá-lo muito bem em as nádegas
com um açoite, dizendo-lhe:
Primeiro livro238
-Porque você é tão brando, tenro e tão moço; por que engana à suas
apaixonadas e anda depois com as mulheres livres; rompe os matrimônios,
tomou para si muito cedo, nome de adúltero?
Dizendo-lhe estas palavras e outras muitas, havendo-o muito bem
açoitado, jogou-o fora de casa. Aquele valente e muito esforçado apaixonado,
quando viu-se em liberdade que ele não esperava, embora levava as nádegas
brancas bem açoitadas de noite e de dia, chorando, fugiu. O padeiro deu carta
de quitação à mulher e logo jogou-a de casa. Ela, quando se viu desprezada do
marido e fora de sua casa, assim vendo injuriada como com a grande malícia e
natural perversidade de coração, retornou-se à armação de suas maldades e
armou-se das artes que usualmente usam as mulheres; com muita diligência
procurou uma má velha feiticeira, que com seus malefícios e feitiços
acreditava-se que faria tudo o que quisesse. À esta velha deu muitas dádivas,
prometendo-lhe maiores; rogou com grande afecção que fizesse por ela uma
de duas coisas; ou, que amansasse a seu marido e reconciliasse com ele; ou,
se aquilo não pudesse acabar, que enviasse algum fantasma, ou algum diabo,
que lhe atormentasse o espírito. Então, aquela feiticeira começou a invocar os
demônios e fazer quanto pôde para retornar o coração do marido ao amor de
sua mulher; mas, isto não aconteceu como ela queria, pelo qual se zangou
contra os diabos, porque além de lhe fazer perder o ganho que já lhe
prometaram, parecia que a menosprezavam; começou a fazer sua arte contra
a cabeça do mesquinho do marido, para o qual chamou o espírito de uma
mulher morta a ferro que lhe devesse assombrar ou matar.
Aqui, por ventura, você, leitor escrupuloso, repreenderá o que eu digo e
dirá assim:
Primeiro livro239
-Você, asno malicioso, onde pôde saber o que afirma e conta que falavam
aquelas mulheres em segredo, estando você amarrado à pedra da padaria e de
olhos tampados?
Nisto respondo:
-Ouça agora, homem curioso, de que maneira, tendo eu forma de asno,
conheci e vi tudo o que se ordenava em dano de meu amo. Um dia, quase
meio-dia, subitamente, perto da padaria apareceu uma mulher muito feia e
disforme, meio vestida, muito sujo e vil hábito, os pés descalços, magra e
muito amarela, os cabelos meio grisalhos, cheios de cinza, desgrenhada,
pendurando as grenhas ante os olhos. Esta mulher ou diabo jogou mão ao
padeiro, como que lhe queria falar, secretamente, levou-o ao seu palácio; ali,
fechada a porta, demorava muito, como já se acabava de moer todo o trigo
que estava nas aberturas, os moços tinham necessidade de pedir mais; foram
à porta do palácio, que estava fechada por dentro, chamaram a seu senhor que
desse trigo. Como ninguém lhes respondia, começaram a dar golpes à porta de
robusto; como estava fortemente fechada, suspeitando algum mal, com uma
alavanca arrancaram e desenquadraram as portas. Quando entraram no
palácio a mulher não apareceu, mas acharam seu senhor enforcado em um
tirante do palácio, com uma corda ao cangote, o qual desprenderam com
muitos prantos e choros. Feitas suas exéquias, levaram-o a enterrar. No dia
seguinte veio sua filha de outro lugar, onde era casada, mexendo e dando-se
murros nos peitos; a qual sabia da desdita que acontecera à seu pai, sem que
pessoa o houvesse dito; mas, em sonho apareceu-lhe o espírito de seu pai,
muito choroso, amarrado a corda à garganta; contou-lhe toda a maldade e
traição de sua madrasta; do adultério que lhe cometesse, dos feitiços e de
como fez diabólico descer aos infernos; a qual, como se fatigava muito
Primeiro livro240
lamentando e chorando, os familiares de casa consolaram-na e fizeram que
desse espaço a seu coração e à dor. Depois, passados os nove dias, feitos
todos os ofícios e exéquias de sua sepultura, atiraram a vender em leilão toda
a roupa e bestas como bens de herança.
Primeiro livro241
CAPÍTULO V
Como Lucio venderam a um hortelão e conta um acontecimento notável
que ocorreu na casa de um cavaleiro amigo seu hortelão amo.
De maneira que a fortuna, com sua grande licença, desbaratou aquela
casa em breve ponto e derrubou a todos. Eu fui vendido naquele leilão e
comprou-me um pobre hortelão, por cinqüenta dinheiros, o qual ele dizia que
era grande preço; mas, que me comprara, portanto, apreciou procurar de
comer para si e para mim. No tempo e razão parece-me demanda, que eu
conte a maneira de meu serviço, a qual era esta. Aquele meu senhor que me
comprara, costumava bem de manhã, carregado de couves e hortaliças ir à
cidade, que estava ali perto; depois que vendia sua mercadoria, cavalgava em
cima de mim e retornava à seu pomar; enquanto isso, ele andava curvado
cavando, regando e fazendo as outras coisas de seu pomar; eu somente
recreava a todo meu prazer e descansava, discretamente, que em outra coisa
não entendia; mas nisto, eis aqui, onde revolvendo os céus e os planetas por
seus números, por conta dos dias e meses, tornou o ano, depois de agarradas
as riquezas do vinho e do outono, às chuvas do signo de Capricórnio; de
maneira que chovendo, continuamente, de noite e de dia, eu estava encerrado
em um estábulo sem teto e debaixo do céu, atormentado com o contínuo frio;
mas como não tinha que estar assim, porque meu senhor era tão pobre que
não somente para mim não podia dar alguma guarnição, ou sequer um pouco
de telhado, mais até para si não o tinha, que com a sombra de ramo de uma
choça, onde morava era contente; além disto, nas manhãs pisava aquele lodo
frio e aqueles pedaços de gelo gelados com os pés descalços; inclusive não
podia encher meu ventre sequer dos manjares acostumados, porque igual era
Primeiro livro242
o meu jantar e a meu amo; certo, não havia diferença, mas, era bem pouco:
folhas de alface velhas sem sabor, aquelas que de muita velhice estavam
espingardas da semente, tão altas como vassouras, que já o suco delas
transformado como caruncho amargo. Uma noite, um homem honrado que
morava em uma aldeia perto dali, não podendo chegar à sua casa, impedido
com a escuridão da noite e com a muita água que chovia; molhado, errando o
caminho direto, chegou à nosso pomar com seu cavalo cansado; o qual
receberam alegremente segundo o tempo; como o recebimento não foi muito
delicado, ao menos foi necessário para seu repouso. Aquele bom homem,
querendo remunerar este benefício que o fazia seu hospedeiro, prometeu darlhe
sua fazenda, trigo, azeite e dois barris de vinho. Não se demorou meu amo;
no outro dia, tomou um saco e dois couros vazios; cavalgando em cima de mim
tomou seu caminho para aquela aldeia, que seria obra de uma légua dali.
Desde que andamos nosso caminho, chegamos àqueles campos onde morava
aquele bom homem, o qual logo convidou a comer a meu amo e deu-lhe,
abundantemente, comida.
Estando eles brigando sobre o beber, aconteceu um caso maravilhoso; o
qual foi que uma galinha das quais ali havia, saiu correndo por dentro da casa,
cacarejando, como fazem as galinhas quando querem pôr seus ovos e quando
seu senhor a viu, disse:
-Oh, boa servidora e assaz proveitosa, que de muito tempo aqui nos
serve, pondo cada dia um ovo, agora, segundo eu vejo, pensa em nos preparar
alguma coisa para que comamos!
E disse a um moço:
-Ouça, você, toma aquele cesto em que põem as galinhas e ponha
Primeiro livro243
naquele rincão onde costuma estar.
O moço fez o que mandava; mas a galinha, desprezando o ninho
acostumado, colocou-se ali diante os pés de seu senhor e jogou um parto que
não era ovo, mas era um frango feito com suas plumas, pés, olhos e voz
perfeita; o qual foi tido por um anúncio do futuro; logo começou a andar atrás
de sua mãe. Não menor agouro e que com muita razão se poderiam espantar
os que o vissem, aconteceu logo, o qual foi que debaixo da mesa onde comiam
se abriu terra, de onde saiu uma fonte de muito sangue, do sangue que saltava
se banhou toda a mesa. Estando eles maravilhados e espantados deste tão
grande milagre, veio correndo o despenseiro encarregado da adega, fazendo
como todo o vinho que encerrara nos tonéis, soltava faísca tão receoso e com
tanto calor como se grande fogo lhe colocassem debaixo.
Enquanto que isto se dizia, veio por ali uma doninha, que trazia de fora
uma cobra morta na boca. Deste modo, da boca de um mastim saiu uma rã
verde e um carneiro, que estava ali perto, arremeteu com o cão e deu um
bocado que o afogou. Estas coisas e outras semelhantes puseram tanto medo
nos corações daquele senhor e de todos os de sua casa, que lhes deu muita
aflição; chegou ao último de sua vida e os pôs em muita fadiga, pensando
quem era o primeiro, ou o último; ou o que era, mais ou o menos, que tinham
que fazer para aplacar as grandes ameaça dos deuses, com quais e quantos
animais e vítimas tinham que procurar de amansar sua ira. Estando eles neste
cuidado e espantável temor, veio um moço com novas muito amargas para o
senhor daquela casa e propriedade, porque ele tinha três filhos mancebos
muito bem criados e de muita vergonha, com os quais ele vivia muito glorioso
e contente; estes mancebos tinham antiga amizade com um seu vizinho pobre
que ali vivia em uma pequena casinha; um outro vizinho rico, poderoso,
Primeiro livro244
possuía grandes terras e posses juntas à pequena deste, o qual era rico
mancebo e usava mal da nobreza ou fidalguia de sua linhagem; porque ele
tinha bandos na cidade e facilmente fazia o que queria; assim, perseguia a
pobreza deste seu vizinho como inimigo, matando-lhe suas vacas, levando-lhe
seus bois, pisando-lhe em seus pães antes que espigassem, de maneira que
lhe despojando de toda sua sementeira, instava por lhe destruir os brotos que
voltavam a nascer nos torrões; usurpava e apropriava para si toda a terra, não
cuidando de pleito que sobre isso o pobre lhe movesse. Então aquele, embora
era aldeão, como era homem de vergonha, vendo-se despojado pela avareza
daquele rico, querendo sequer ficar com a terra que seu pai lhe deixara para
onde fizesse sua sepultura, embora com muito medo, rogou a muitos de seus
amigos para que soubessem os términos de suas terras, estivessem ali
presentes; entre os outros que ali estavam, vieram estes três irmãos para
socorrer, ajudar à fadiga e pena deste seu amigo; mas, aquele malvado nunca
se espantou, nem teve sequer um pouco de respeito à presença de todos
aqueles cidadãos que ali se juntaram, pois não se arrependia dos roubos, ao
menos, deveria moderar em suas palavras; embora, muito meigamente
rogavam-lhe, adulavam-lhe aplacando seus soberbos costumes, ele começou a
jurar por sua vida e suas irmãs, que não tinha em nada a presença dos
medianeiros; que ele mandaria a seus escravos tomar aquele seu vizinho pelas
orelhas e lançá-lo muito longe de sua casinha; o qual ouvido pelos que ali
estavam, eles tomaram grande irritação do que dizia. Então, um daqueles três
irmãos, sem mais esperar respondeu-lhe um pouco sério, dizendo que por
demais confiava ele em suas riquezas e ameaçava aos outros com altivez de
tirano, principalmente os pobres, por liberal favor e ajuda das leis, costumavam
muitas vezes a vingar-se da presunção dos ricos. Esta palavra acendeu tanto a
Primeiro livro245
crueldade daquele homem, como costuma acender o azeite à chama, ou a
pedra impregnada de enxofre ao fogo, ou o açoite à fúria infernal; de maneira
que estando fora de juízo na extrema fúria, dava vozes que mandaria enforcar
a ele, a todos eles e as leis que diziam; mandou logo soltar os cães do gado;
outros que tinha em casa ferozes e muito grandes, acostumados de roer os
corpos mortos que estavam por esses campos; deste modo estavam criados,
ensinados a morder e despedaçar aos que passavam pelos caminhos; e assim
soltos, mandou-os aparecer contra aqueles.
Os cães, quando ouviram o sinal acostumado dos pastores, acesos e
inflamados como raivosos, dando latidos espantáveis, arremeteram naqueles
homens; quando juntaram com eles começaram a morder e despedaçar
ferozmente; embora fugissem, não os deixavam por isso, antes mais
bravamente os seguiam. Entre esta multidão de estrago, o menor dos três
irmãos tropeçou em uma pedra e quebrou os dedos do pé, de maneira que
caiu, cansado foi amargo manjar daqueles cães ferozes e cruéis; porque logo
arremeteram com o mesquinho do moço que estava em terra e o fizeram
pedaços; como os outros irmãos reconheceram as vozes mortais de seu irmão,
vieram correndo para lhe ajudar, revoltas as capas às mãos, lançaram muitas
pedras para defender a seu irmão e tiraram os cães sobre ele; mas, nunca
puderam vencer, nem quebrantar a braveza e ferocidade deles, porque
dizendo o mesquinho do mancebo a última palavra, para que vingassem sua
morte naquele cruel e sujo rico, logo morreu feito pedaços.
Então os outros irmãos, não certo com tanto desespero, quanto
menosprezando sua vida, arremeteram para o rico, com ânimos ardentes,
esforçados e furioso ímpeto jogavam contra ele muitas pedradas. Mas aquele
cruel matador, exercitado outras vezes, ante em muitos e semelhantes ruídos,
Primeiro livro246
baixou a lança, com a qual atravessou pelos peitos a um dos dois irmãos, o
qual, como morto não caiu em terra, porque atravessado com a lança enfiada
grande parte pelas costas, tendo-o apertado em terra, com a força de sua
violência, elevou-o de revisto com o ferro da lança. Então um escravo
daqueles, valente e esforçado, querendo ajudar aquele homicida, lançou uma
pedra de longe, deu ao terceiro daqueles irmãos no braço direito; mas, o golpe
não foi nada, porque tomou em soslaio o braço e correu até os dedos da mão;
de maneira que, contra opinião de todos, a pedra caiu sem lhe fazer mal. Este
humano acontecimento, deu e administrou ao discreto mancebo aviso e grande
esperança de vingar-se daquele mau homem; fingindo que estava aleijado e
maneta da mão, falou com aquele rico cruel desta maneira:
- Goze com a morte de toda nossa família e farta sua crueldade faminta
com o sangue de três irmãos, saiba que triunfou muito gloriosamente sendo
mortos seus cidadãos, como queria que fosse privado o pobre de suas
fazendas e você alargasse quanto quer as lides das suas, por ventura terá
algum vizinho que resista; porque esta minha mão direita, que de boa vontade
cortasse sua cabeça, por minha desdita quebrou e caiu.
Tal palavra ouvida por aquele furioso, zangou-se e tirada a espada, com
muita cobiça arremeteu ao mancebo para matá-lo. Como não incitou a outro
mais fraco que ele, porque o mancebo era esforçado, resistindo contra ele a
opinião do rico, não esperando ele tal coisa, abraçou-se fortemente com ele e
pegou-lhe o braço com grande força; com uma adaga deu muitas punhaladas,
até que lhe fez jogar a má e suja de sua alma; por poder-se livrar da mão
daqueles seus servidores e familiares que o deviam socorrer, com aquela
adaga que cheia de sangue de seu inimigo, logo ali se degolou. Estas eram
aquelas coisas que predestinavam os prodígios agouros e o que anunciaram
Primeiro livro247
àquele velho; embora, cercado de tantos males, nunca pôde lançar de si uma
palavra, nem lágrima sequer; mas, arrebatou uma faca com que cortava queijo
e repartia a comida entre seus convidados, à maneira de seu filho se deu
muitos golpes pela garganta; até que se matou, tremendo, caiu sobre a mesa e
com o arroio de seu novo sangue lavou as manchas da outra prodigiosa.
Primeiro livro248
CAPÍTULO VI
Como um cavaleiro tomou o asno do hortelão por força; como, por
intenção, derrocou ele ao cavaleiro do cavalo e posto no costume, teve lugar
de fugir.
Desta maneira aquele hortelão, havendo afronta da desdita e queda
desta casa em tão muito breve ponto, gemendo gravemente este caso;
derramando algumas lágrimas em pagamento da comida; dando golpes uma
mão com outra, muitas vezes, cavalgou em cima de mim e logo retornamos
para trás pelo caminho que vínhamos. Mas, não foi a volta sem dano, porque
um homem alto, conforme mostrava seu hábito e gesto, devia ser homem de
armas de alguma hoste, encontrou-nos no caminho; perguntou com uma
palavra muito soberba e arrogante, aonde levava aquele asno vazio.
Meu amo, como ia ainda choroso e triste, também como não entendia a
língua latina, não lhe respondeu, abaixou a cabeça e passou. O cavaleiro,
quando isto viu, não pôde sofrer sua costumeira soberba, zangado pelo seu
calar, como se lhe fizesse uma injúria, deu de varadas com um sarmento que
trazia na mão, que lhe fez cair em cima de mim. Então, o hortelão respondeulhe,
humildemente, dizendo que por não saber a língua não podia saber o que
é o que lhe dissera. O cavaleiro, com irritação, voltou a dizer:
-Pois, diga-me onde leva este asno.
O hortelão respondeu que ia àquela cidade que ali perto estava. O
cavaleiro disse:
-Pois me é mister este asno, porque tem que trazer com os outros burros
de carga desta vila que aqui está perto certas cargas de nosso capitão.
Logo lançou a mão, arrebateu-me pelo cabresto e começou a levar.
Primeiro livro249
O hortelão, limpando o sangue que lhe corria da cabeça do despropósito
que lhe fizera com o sarmento, rogava-lhe outra vez que tratasse bem e
mansamente ao companheiro, o qual lhe pedia dizendo que assim Deus lhe
prosperasse o que esperava; deste modo, dizia que aquele asno era
preguiçoso; além disto, tinha uma abominável enfermidade, que era gota coral;
logo que acostumava a trazer de perto dali uns poucos de molhos de couves,
quando chegava com eles já não podia respirar, quanto mais para grande
carga, que de maneira nenhuma era idôneo para isso.
Mas, desde que o hortelão viu que por nenhum rogos seus amansava o
cavaleiro, antes via que se ensoberbecia mais em seu dano e que voltava o
sarmento para lhe dar com o mais grosso dele e mais nodoso lhe quebrar a
cabeça, correu ao último remédio, fingindo de lhe querer beijar os joelhos para
lhe comover a misericórdia; estando assim abaixado e curvado, arrebatou por
ambos os pés, elevando-o acima deu com ele um grande golpe em terra; logo
saltou em cima e deu muitas murros, bofetadas e bocados; arrebatou uma
pedra do caminho, sacudiu-lhe muito bem na cara, nas mãos e naquelas
costas. O cavaleiro, que foi jogado no chão, nem pôde brigar, nem defender-se;
mas muitas vezes ameaçava que caso se levantasse, com sua espada o tinha
que talhar em peças; o qual ouvido pelo hortelão e rápido, arrebatou-lhe a
espada, lançou-a muito longe, retornou a dar mais cruéis feridas. Estando ele
estendido em terra, prevenido dos murros e feridas que lhe daria aquele
hortelão, não podendo achar outro remédio a sua saúde, o que já somente
restava foi que fingiu ser morto.
Então, o hortelão tomou consigo aquela espada e cavaleiro em cima de
mim quanto mais às pressas pôde correu à cidade, que não cuidou somente de
ver seu pomar, fosse à casa de um amigo dele, ao qual, contadas as coisas,
Primeiro livro250
rogou-lhe que o ajudasse naquele perigo em que estava; que escondesse a ele
e a seu asno, até que pelo espaço de dois, ou três dias, ele escapasse daquele
pleito e crime. Aquele seu amigo, não esquecendo a antiga amizade que lhe
tinha, recebeu-o de boa vontade, e a mim, atados os pés e as mãos, subiramme
por uma escada em uma câmara alta. O hortelão estava abaixo em casa
metido em uma cesta com sua coberta em cima. O cavaleiro, conforme depois
soube, como quem se levanta de uma grande bebedeira, titubeando as pernas
e fraco com a dor de tantas pragas, que quase com um estribilho na mão se
podia sustentar, chegou à cidade; confuso de seu pouco poder e força de sua
fraqueza, não ousou dizer coisa alguma a nenhum da cidade; mas,
discretamente tragando sua injúria falou à certos companheiros deles, contoulhes
esta sua fadiga e pena. Pareceu-lhes que ele devia esconder em sua
tenda, porque além da injúria que recebera, tinha o juramento que fizera da
cavalaria que fosse acusado por perder sua espada, que eles, como já tinham
gestos de nós, poriam muita diligência em nos buscar para sua vingança. Não
faltou um traidor vizinho dele que logo descobriu que estávamos ali
escondidos. Então aqueles seus companheiros foram à justiça, mentindo
disseram-lhe que perderam no caminho uma taça rica e de muito preço de seu
capitão; que a achara um hortelão, o qual não a queria restituir, pelo qual se
escondera em casa de um seu amigo. Então os prefeitos, conhecendo o dano e
o nome do capitão, vieram às portas de nossa estalagem; claramente disseram
ao nosso hospedeiro daqueles que escondera dentro de sua casa, pois sabia
que era mais certo que o certo, que logo nos entregasse antes que incorresse
em pena de sua própria cabeça. Mas ele nada se espantou, antes procurando a
saúde daquele que recebera seu amparo, não disse coisa de nós, mas sim
havia muitos dias que nunca vira aquele hortelão. Os escudeiros instavam o
Primeiro livro251
contrário, jurando por vida do imperador que ali escondera e não em outro
lugar algum.
Finalmente, que os prefeitos acordaram, pois, tão obstinadamente, o
negava, que entrassem para procurar; logo entraram os oficiais e outros
homens da justiça, aos quais mandaram que procurassem muito bem todos os
rincões da casa. Eles desde que o fizeram, disseram que nenhum homem havia
em toda a casa, nem asno tinha nas soleiras adentro.
Então cresceu a contenção e insistência mais robusta entre eles: os
escudeiros diziam que tinham por muito certo que nós estávamos ali,
protestavam a ajuda e favor da justiça do imperador; os outros, negavam,
jurando pelos deuses que não estávamos ali. Eu, quando ouvi a insistência e
vozes que davam, como era asno curioso, com aquela procacidade sem
repouso desejava saber o que acontecia; como baixei a cabeça por um guichê
que ali estava, por ver que coisa era aquele tumulto e vozes que davam, um
daqueles escudeiros acaso elevou os olhos à minha sombra que dava abaixo,
quando me viu, disse a dois; logo, levantaram um grande clamor e vozes, rindo
de como viram-me acima, subiram, encheram as mãos e levaram-me como a
um escravo cativo. Já depois que lhes tirou a dúvida e foram certificados que
estávamos ali, começaram com mais diligência a procurar todas as coisas da
casa; descoberta a cesta acharam dentro o mesquinho do hortelão, o qual,
tirado dali, apresentaram-no ante os prefeitos; eles o mandaram levar ao
cárcere público, para que pagasse a pena que merecia; contudo, nunca
cessaram de burlar com grande risada por meu aparecimento na fresta, de
onde deste modo nasceu aquele muito usado e comum provérbio do olhar e
sombra do asno.
Primeiro livro252
Décimo livro
ARGUMENTO
Neste décimo livro se contam a ida do cavaleiro com o asno à cidade, a
façanha grande que uma mulher fez por amores de seu enteado; como
venderam o asno a dois irmãos, dos quais um era pasteleiro e outro cozinheiro;
logo, conta a contenção e discórdia que houve entre os dois irmãos pelos
manjares que o asno furtava e comia. E da boa vida que teve a todo seu prazer
com um senhor que o comprou, de como se jogou com uma dona que se
apaixonou por ele, de como foi outra mulher condenada às bestas e uma
fábula do julgamento de Páris; enfim, como o asno fugiu do teatro onde se
faziam aqueles jogos.
Primeiro livro253
CAPÍTULO I
Que trata como voltando a colocar o asno pelo cavaleiro, levou-lhe a
residir a uma cidade, na qual aconteceu um notável acontecimento a uma má
mulher por amores de um seu enteado.
No dia seguinte não sei o que foi, nem o que se fez de meu amo o
hortelão; mas, aquele cavaleiro que por sua grande covardia e escassez foi
muito bem esmurrado, tirou-me daquele cocho e levou-me ao dele, sem que
ninguém o contradissesse; depois dali de sua tenda, conforme me parecia que
devia ser dela, muito bem carregado de suas jóias, adornado e armado como
galã, porque resplandecia com um elmo muito reluzente e um escudo mais
longo que todos os outros, uma lança muito larga e reluzente, a qual ele tinha
composto com muita diligência em cima do mais alto da carga, da maneira
como a levavam atravessada, o qual ele não fazia tampouco, por causa de
acostumar-se quanto por espantar os mesquinhos dos caminhantes que
encontrasse. Depois que passamos aqueles campos, não com muito trabalho,
por ser o caminho plano, chegamos a uma cidade pequena; não fomos pousar
à hospedaria, a não ser na casa de um capitão de peões seu amigo; logo
quando chegamos encomendamos a um escravo, ele fosse muito às pressas a
seu capitão, que tinha a capitania de mil homens de armas. Depois de alguns
dias que ali estávamos, aconteceu uma façanha muito terrível e espantável, a
qual, para que vocês também saibam, acordei pôr neste livro. Aquele decurião,
ou capitão senhor desta estalagem tinha um filho mancebo bem letrado, em
conseqüência do qual ele era adornado de modéstia e piedade, o qual você
desejaria para si outro tal. Morta a mãe muito tempo havia, seu pai se casou
segunda vez, esta segunda mulher pariu outro filho, que já passava de doze
Primeiro livro254
anos; a madrasta, resplandecendo em casa do marido mais na formosura de
sua pessoa que nos costumes e virtudes, ou que naturalmente fosse sem
castidade e vergonha; ou que por seu fado fosse compelida a um extremo
vício; finalmente, que ela pôs os olhos em seu enteado. Agora você, bom leitor,
tem que saber que não os fabula de coisas baixas, a não ser tragédia de altos e
grandes feitos; que tem que subir de comédia à tragédia. Aquela mulher,
enquanto que naqueles princípios o amor tenro e pequeno se criava, como era
ainda fraco nas forças, ela reprimindo sua magra vergonha facilmente calando
resistia; mas depois que o fogo cruel do amor se encerrou em suas vísceras, o
furioso amor sem nenhum remédio a queimava, de tal maneira, que sucumbiu
e obedeceu ao cruel deus do amor; fingindo enfermidade mentiu, dizendo que
a chaga do coração estava na enfermidade do corpo; nenhum há que não saiba
que todo o detrimento da saúde e do gesto convém por regra certa e comum
também aos doentes como aos apaixonados: a fraqueza e cor amarela da cara,
os olhos murchos, as pernas cansadas, o repouso sem sono, grandes suspiros e
longos com muita fadiga.
Quem quer que visse esta dona, acreditasse que estava atormentada de
ardentes febres, mas sim chorava. Mal do juízo e engenho dos médicos! Que
coisa é a veia do pulso, ou que coisa é a pouca moderação do calor! O que é a
fadiga do fôlego e as voltas contínuas de um lado a outro sem repouso, Oh, um
belo dia! Quão facilmente descobre o mal do amor, não somente ao médico
que é letrado, mas a qualquer homem discreto, especialmente quando vê
algum arder sem ter calor no corpo! Assim ela, receosa, fatigada com a pouca
paciência do amor, rompeu o silêncio pelo que calava muito tempo havia e
enviou a chamar a seu filho, o qual nome de filho ela raspasse e tirasse com
muito gosto, por causa de não haver do mesmo vergonha. O mancebo não
Primeiro livro255
demorou para obedecer o mandamento de sua mãe doente, com o gesto triste
e honesto, entrou na câmara da mulher de seu pai e mãe de seu irmão, para
lhe servir em tudo o que lhe mandasse; mas ela, fatigada grande momento de
um presidiário silêncio, atada em um vau de muita dúvida, qualquer palavra
que pensava ser muito convencível para a presente fala tornava outra vez a
reprová-la; com a grande vergonha tardava e não sabia por onde começar. O
mancebo, que nada suspeitava, menosprezados os olhos perguntou-lhe o que
era a causa de seu presente enfermidade. Então ela, achando ocasião muito
danosa, que é a solidão, prorrompeu em ousadia, chorando receosa, pondo a
roupa diante da cara, tremendo, começou a falar brevemente desta maneira:
-A causa e princípio deste meu presente mal, até a medicina para ele,
nem saúde e remédio, só é você; porque estes seus olhos, que entraram pelos
meus, ao íntimo de minhas vísceras, movem um cruel entendimento em meu
coração, pelo qual lhe rogo que faça mancha de quem por sua causa morre,
não se espante que peca contra seu pai, ao qual antes guardará sua mulher,
que está para morrer; porque conhecendo eu sua imagem em sua cara, com
muita razão lhe amo; agora tem tempo, por estar só comigo; tem espaço
bastante para cumprir o que rogo, porque o que ninguém sabe não se pode
dizer que é feito.
O mancebo, quando isto ouviu, turbado de tão repentino mal, como que
se espantasse e aborrecesse tão grande crime, não lhe pareceu de exasperá-la
com a severidade disposta de sua negativa, antes teve por melhor de amansála
com demora de cautelosa promissão; assim que lhe prometeu liberalmente,
dizendo-lhe que se esforçasse e curasse a si e da saúde até que seu pai fosse a
alguma parte e houvesse tempo livre para seu prazer.
Primeiro livro256
Dizendo isto afastou-se da mortal vista de sua madrasta, vendo que uma
traição e mau tão grande da casa de seu pai havia mister maior conselho,
fosse logo a um velho seu tutor que o criara, homem de bom juízo, ao qual não
pareceu outro melhor conselho, tendo praticado muitas vezes nisso, mas sim o
mancebo fugisse o mais rapidamente que pudesse, escapar da tempestade da
cruel fortuna; a madrasta, como não tinha paciência de esperar sequer um
pouco, fingida qualquer causa, persuadiu a seu marido com maravilhosas artes
e palavras, que logo fosse a umas aldeias que estavam bem longe dali; o qual
feito, ela, com sua loucura apressada, vendo que havia lugar para sua
esperança, demandou com muita instância que cumprisse com ela o prazo do
que lhe prometera; o mancebo escusava-se dizendo agora uma causa e depois
outra, apartando-se de sua abominável vista quanto podia, até que pelos
mensageiros que lhe enviara, conhecendo ela rapidamente que lhe negava a
promessa por ele feita, com a mudança de seu variável engenho, rapidamente
mudou seu nefando amor em ódio mortal, e chamado logo ela um seu escravo
muito mau e aparelhado para toda maldade e traição, comunicou com ele todo
este negócio, o pensamento malvado que ela tinha, o qual entre eles praticado,
não lhes pareceu outro melhor conselho que privar da vida ao mesquinho do
mancebo. Assim, incontinenti, ela enviou àquele executor para que trouxesse
veneno que matasse rapidamente; o qual trouxe e diligentemente desatou em
vinho, preparado para matar a seu enteado que estava sem culpa. De tanto
que a malvada fêmea e seu escravo deliberavam entre si, da oportunidade e
tempo para o poder dar, acaso o irmão menor, filho próprio da má mulher,
vindo da escola na hora de comer, começou a almoçar, como houve sede
bebeu daquele veneno que achou, não sabendo a peçonha e engano escondido
que ali dentro estava; depois que bebeu a morte que preparava para seu
Primeiro livro257
irmão, caiu em terra sem alma e vida. O bacharel, seu professor, comovido da
arrebatada morte do moço, começou a dar grandes uivos e clamores, que a
mãe e toda a casa alvoroçou. Conhecido o caso do veneno mortal, cada um dos
que ali estavam presentes acusavam aos autores de tão extremada traição e
maldade; aquela cruel e má fêmea, exemplo único da malícia das madrastas,
não comovida pela morte de seu filho, nem pelo parricídio que ela mesma
fizera, nem pela desdita de sua casa, nem pela irritação de seu marido, nem
pela fadiga do enterro do filho, procurou vingança muito rápido, por onde
causou dano para toda sua casa. Assim, rapidamente, despachou um
mensageiro que fosse a seu marido e contasse-lhe a morte de seu filho e o
dano de sua casa. Quando o marido ouviu estas novas, retornou ao caminho, e
entrando em casa, logo ela com grande temeridade e audácia começou a
acusar, dizer que seu filho era morto com a peçonha do enteado, nisto não
mentia ela, porque o moço seu filho prevenira à morte que estava já destinada
e equipada para o mancebo; mas, ela fingia que seu filho era morto por
maldade do enteado, a causa que ela não quis consentir em sua malvada
vontade, com a qual tentara de lhe forçar; não contente com estas grandes
mentiras, acrescentava que por que ela descobrira esta traição, ele a
ameaçava de matá-la com uma adaga. Então, o desventurado do marido,
ferido da morte de dois filhos, fatigado, que não cabia em si com a tempestade
de tão grande pena e tribulação como aquela, porque já ele via diante de si
enterrar ao menor; também sabia de certo, que o outro seria condenado a
pena de morte pelo pecado do incesto com sua madrasta e pelo parricídio de
seu irmão. Desta maneira as mentirosas lágrimas de sua muito amada mulher
puseram-lhe em extrema inimizade com seu filho. Apenas, acabadas as
exéquias do enterro do filho, quando logo dali partiu o desventurado velho,
Primeiro livro258
regando sua cara com lágrimas contínuas e suas penas sujas com cinza; muito
às pressas se lançou na casa da justiça; ali, chorando e com muitas rogos,
beijando nos joelhos dos juízes, não sabendo os enganos de sua malvada
mulher, trabalhava quanto podia para que enforcassem ao outro mancebo seu
filho, dizendo que cometera crime de incesto, sujando a cama de seu pai; que
era homicida tendo matado seu irmão; que era um matador que ameaçara de
matar à madrasta; finalmente, que ele chorando inflamou aos juízes e a todo o
povo, com tanta raiva dele e tanta indignação contra o mancebo, que deixada
a ordem e demora do julgar e as manifestas provas da acusação, os rodeios e
demoras do responder, que todos a uma só voz clamavam e diziam que aquele
público mau, publicamente, tinha que vingar, fazendo ali cobrir de pedras. Os
juízes, considerando e havendo medo de seu próprio perigo, porque dos
pequenos começos de indignação acontece muitas vezes proceder grande
rebelião e questões para perda das leis da cidade, pareceu-lhes que era bem
rogar aos oficiais da justiça; por outra parte, refrear ao povo para que
diretamente e pelas leis dos antigos o processo se fizesse; ouvidas as partes e
bem examinado o negócio civil, fosse a sentença pronunciada; não a maneira
de ferocidade de bárbaros, de potência de tiranos, fosse condenado algum,
sem ser ouvido; que em paz sossegada, desse um exemplo tão cruel que todo
mundo soubesse. Este saudável conselho sossegou todos; logo, mandaram o
pregoeiro que chamasse a todos os senadores, que viessem a conselho, os
quais vindos e sentados em seus acostumados lugares, segundo a ordem da
dignidade de cada um, o pregoeiro outra vez chamou e veio o acusador. Então,
do mesmo modo, por chamada do pregoeiro, entrou o réu; o pregoeiro
admoestou aos advogados da causa, segundo o costume do senado e leis de
Atenas, que não curassem de fazer prólogos na causa, nem comovessem aos
Primeiro livro259
que ali estavam haver mancha.
Estas coisas nesta maneira passadas soube eu, que as ouvi muitos que
falavam nisso; mas quantas alterações teve de uma parte a outra, com que
palavras o acusador dizia contra o réu, como o réu se defendia e desfazia sua
acusação; estando eu ausente, atado ao cocho, não o pude bem saber por
inteiro, nem as demandas, nem as respostas e outras palavras que entre eles
passaram; por isso não lhes poderei contar o que não soube; mas o que ouvi,
quis pôr neste livro.
Primeiro livro260
CAPÍTULO II
Como, por intenção de um senador antigo e sábio, descobriu-se o
delinqüente, enforcado o escravo, desterrada a mulher e livre o enteado.
Depois de acabada a contenção entre eles, cedeu aos juízes de procurar
a verdade deste crime por certas provas e não dar tanta conjetura à suspeita
que do mancebo se dizia; mandaram que trouxessem ali presente aquele
escravo muito diligente que afirmava que só ele sabia como passara o negócio;
vindo aquele velhaco executor, nenhum tumulto, nem confusão teve, nem de
ver um caso de tão grande julgamento, nem de ver tampouco aquele senado,
onde tais pessoas estavam, ou ao menos de sua consciência culpada; ele sabia
bem que o que fingira era falso, o qual ele afirmava como coisa muito
verdadeira, dizendo desta maneira: que aquele mancebo, muito zangado de
sua madrasta, chamara-o; disse-lhe que para vingar sua injúria, morreu o filho
dela; que lhe prometera grande prêmio para que calasse, porque ele disse que
não queria calar, o mancebo ameaçou que o mataria; que o dito mancebo
preparara com sua própria mão a peçonha e daria ao escravo para que a desse
a seu irmão; mas ele, suspeitando que o crime descobrissem, não quis tomar
aquele vinho, nem dá-lo ao moço, e que, enfim, o mancebo com sua mão
própria o daria. Dizendo estas coisas, que pareciam ter imagem de verdade,
aquele açoitado, fingindo medo, acabou-se a audiência; o qual ouvido pelos
juízes, nenhum ficou tão justo e tão direito à justiça do mancebo, que não lhe
pronunciasse ser culpado, rapidamente deste crime; como tal, o deviam meter
em um couro de lobo e jogá-lo no rio como parricida; como já as sentenças e
votos de todos fossem iguais; e estivessem assinadas da mão de cada um,
para jogá-los em um cântaro de cobre, segundo seu perpétuo costume, de
Primeiro livro261
onde depois de jogados os votos não se podiam tirar, nem convinha mudar
coisa alguma, porque a sentença era passada em coisa julgada e não restava
outra coisa a não ser entregá-lo ao verdugo para que cumprisse a justiça, um
daqueles senadores, o mais velho e de melhor consciência de todos, homem
com muita autoridade, letrado e médico, pôs a mão em cima da boca do
cântaro, para que nenhum, temerariamente, jogasse seu voto dentro e disse a
todos nesta maneira:
-Eu gozo-me e sou alegre de viver tanto tempo, que por minha idade
vocês, senhores, têm-me que ter em alguma reputação, por isso, não
consentirei que, acusado o réu por falsas testemunhas, tenha-se que perpetrar
manifesto homicídio, nem consentirei que vocês, que juraram de julgar bem e
fielmente, perjurem-lhe, sendo enganados por mentira de um escravo; porque,
certo, eu, enganando a minha consciência e menosprezando a Deus, não podia
pronunciar injustamente contra este; assim ouçam agora e conheçam todos
como passou este negócio: este ladrão, muito diligente para comprar peçonha
que logo matasse, veio para mim há pouco, oferecia-me cem salários de ouro
para que o desse, dizendo que o havia mister para um doente, o qual estava
muito fatigado em enfermidade de hidropisia, da qual não podia sanar e
desejava morrer para livrar da tortura que com a vida tinha. Eu, vendo que
este açoitado falava muito e dizia coisas levianas, não me satisfazendo, antes,
sendo certo que ele procurava alguma traição, deu aquela beberagem, mas
olhando à verdade, que se poderia saber, não quis receber logo o preço que
me dava e disse-lhe: «Porque, possivelmente, por ventura, alguns destes
salários que me dá não se achasse falso ou enganado, vejam aqui neste pano;
sela-os com seu anel até que amanhã venha um cambiante, pese-os e veja se
são bons.» Desta maneira ele selou o dinheiro no pano, o qual, logo que este
Primeiro livro262
apresentaram em julgamento, eu fiz muito rapidamente trazer de minha
farmácia a um de meus criados e vejam aqui em sua presença; para que ele
veja e reconheça seu selo; porque a verdade é esta: de que maneira se pode
acusar ao irmão da peçonha que este comprou?
Então, tomou um grande medo e tremor ao velhaco do escravo, em lugar
de cor de homem aconteceu uma palidez infernal, um suor frio emanava por
todos seus membros; começou a comover de uma parte a outra, que não se
podia ter sobre os pés, arranhar-se na cabeça, agora a um lado, agora a outro;
a boca meio fechada, gaguejando, começou a dizer certas mentiras e
necessidades, de tal maneira que nenhum dos que ali estavam podia acreditar
que ele estava fora de culpa; mas, esforçando-se em sua maldade, negava
com maior perseverança e não deixava de acusar ao médico que não dizia
verdade; o qual, pela honestidade e autoridade de seu julgamento, vendo que
em sua presença lhe negavam sua fé e verdade, com maior esforço começou a
repreender àquele ladrão, até que por mandado dos juízes os homens de pé da
justiça tomaram as mãos daquele escravo maligno e sacaram-lhe um anel de
ferro, o qual, posto sobre o selo que estava no alforje; reconhecido que era
aquele, com esta comparação acreditaram na suspeita que tinham contra ele;
pelo qual logo foram ali aparelhados gêneros de torturas; mas ele, obstinado
em sua presunção, nunca quis confessar a verdade com açoites, nem com
torturas que lhe dessem, embora o puseram em tortura de fogo. Então o físico
disse:
-Por Deus, eu não sofrerei que contra direito condenem à morte este
inocente mancebo, nem tampouco, consentirei que este escravo, burlando de
nosso julgamento, escape e fuja da pena de sua traição e maldade; porque eu
lhes darei evidente e manifesto argumento deste presente negócio, o qual é
Primeiro livro263
que, como este malvado pensasse comprar peçonha matadora e eu não
acreditasse que a meu ofício convém dar a nenhum causa de morte, porque a
medicina não foi achada para morte, a não ser para saúde dos homens,
temendo que se eu negasse de lhe dar peçonha, possivelmente, pela má
resposta o daria caminho para sua maldade, porque poderia ir a outro e
comprar dele esta mortífera poção, ou, por ventura, com alguma faca ou outra
linhagem de arma, acabaria a traição que começara, acordei dar-lhe, não
peçonha, mas outra poção sonolenta de mandrágora, que é muito famosa para
fazer dormir gravemente, dá um sono semelhante à morte; e não é maravilha
que este ladrão, como muito desesperado, sendo certo que lhe têm que dar
pena de morte, sofresse facilmente estas torturas que lhe deram como manda
o direito, tendo-os por muito leves. Mas, se for verdade que o moço bebeu
aquela beberagem que por minhas mãos preparei, ele é vivo, repousa e dorme;
em se tirando-lhe o sono pesado que tem, despertará e voltará a esta luz; se
ele verdadeiramente é morto ou verdadeiramente foi prevenido com a morte,
procurem as causas disso de outra parte, que eu não as sei.
Desta maneira falando aquele velho, convenceu a todos os que dizia;
foram logo com muita pressa ao sepulcro onde estava o corpo daquele moço,
que quase nenhum dos juízes, nem dos principais da cidade, nem tampouco
dos do povo, ficou que não fosse ali com muita curiosidade para ver aquele
milagre. Nisto eis aqui seu pai, que com suas próprias mãos, elevada a
cobertura da tumba, com prazer, afastado já o mortal sono, achou a seu filho
que se levantava, depois de acontecer os fins e término da morte; abraçando-o
fortemente, dizendo palavras convenientes ao gozo presente, ensinou ao povo;
assim, como estava amortalhado e ligadas as mãos e com suas bandagens
envolto, levaram-no a casa da justiça.
Primeiro livro264
Desta maneira, descoberta e parecida liqüidada a traição do malvado
servo e da péssima mulher; a verdade nua e clara apareceu em presença de
todos; a madrasta foi desterrada perpetuamente, o escravo foi enforcado; ao
bom médico, de consentimento de todos, deram os salários em preço daquele
oportuno sonho; a fortuna famosa e digna de cor daquele velho houve o fim
digno à seus merecimentos pela divina providência, porque em um momento,
até se pode dizer que em um pequeno ponto, depois do perigo em que esteve
de perder seus filhos, subitamente fizera pai daqueles dois mancebos.
Primeiro livro265
CAPÍTULO III
Como venderam o asno a um cozinheiro e a um padeiro, irmãos, como
lhe achando um cavaleiro comendo um dia bons manjares, tomou-o e
encarregou a um seu criado, que lhe ensinou a dançar e outras coisas
notáveis.
Eu naquele tempo andava revolto nas ondas dos fados da fortuna. Aquele
cavaleiro que me comprara, sem que ninguém me vendesse, fez-me dele sem
que por mim desse preço algum, teve que partir para Roma por mandado de
seu capitão, fazendo o que era obrigado, a levar certas cartas para um grande
príncipe; antes que partisse vendeu-me a dois servos irmãos, seus vizinhos,
por onze dinheiros. Estes tinham um senhor rico e um deles era padeiro, que
fazia pão, bolos, fruta e outros manjares; o outro, cozinheiro, que fazia os mais
saborosos sucos, outros molhos e manjares delicados. Estes dois irmãos
moravam ambos em uma casa; compraram-me para trazer pratos, tigelas e o
que era mister para seu ofício; de maneira que eu fui chamado como um
terceiro companheiro entre aqueles dois irmãos para andar pelas aldeias
daquele cavaleiro e trazer tudo o que era mister para sua cozinha;
certamente, em nenhum tempo eu experimentei tão benévola minha fortuna;
porque de noite, depois daquelas abundantes refeições e seus esplêndidos
aparatos, meus amos costumavam trazer para sua casinha muitas parte
daqueles manjares.
O cozinheiro trazia grandes pedaços de porco, de frangos, de pescado e
outras coisas de comer; o padeiro trazia pão, pedaços de bolos e muitos
pastéis, assim como canas, petiscos e outras frutas de mel; o qual tudo
deixavam encerrado em sua câmara para comer e iam se lavar ao banho,
Primeiro livro266
enquanto eu comia e tragava a meu prazer daqueles manjares que Deus me
dava; tampouco, eu era tão louco nem tão verdadeiro asno que, deixados
aqueles tão doces e saborosos manjares, jantasse feno áspero e duro. Esta
maneira e artifício de comer a furto durou alguns dias, porque comia pouco e
com medo; como dos muitos manjares comia menos, não suspeitavam eles
engano nenhum no asno; mas depois que eu tomei maior atrevimento em
comer, tragava o mais principal do que ali estava; como eu escolhia o melhor e
mais doce, não pequena suspeita entrou nos corações dos irmãos, os quais,
embora de mim não acreditassem tal coisa, mas com o dano cotidiano, com
muita diligência procuravam saber quem o fazia. Finalmente, que eles, um ao
outro, se acusavam daquela rapina e fealdade; adiante, puseram cuidado
diligente e maior guarda, contando os pedaços e partes que deixavam; como
sempre faltava, rompendo, enfim, o véu da vergonha, um falou ao outro desta
maneira:
-Por certo, já isto nem é justo, nem humano, menosprezar, ou diminuir,
cada dia mais, a fé que está entre nós, furtando o principal que aqui fica
daquilo vendido, acrescentando escondido seu caudal, disto pouco que fica,
querer levar sua parte igual; portanto, se não nos agrada nossa companhia,
podemos ficar irmãos em todas as outras coisas e afastar-nos deste vínculo de
comunidade, porque, segundo eu vejo, esta questão procede em infinito, de
onde nos pode vir grande discórdia.
O outro irmão respondeu-lhe:
-Por Deus, que eu elogio esta sua perseverança, que quis acautelar a
questão ao que até agora é secretamente furtado, o qual eu, sofrendo muitos
dias há, comigo mesmo me queixei, porque não parecesse que repreendia a
meu irmão de um furto de tão pouco valor como este; mas bem está, pois, que
Primeiro livro267
nos temos descoberto, para que por mim e por si se busque o remédio de
nosso dano, e a inveja, procedendo silenciosamente, não nos traga
contenções, como entre os dois irmãos, Eteocles e Polinices, que um ao outro
se mataram.
Estas e outras semelhantes palavras, ditas um ao outro, juraram cada um
deles, que nenhum engano, nem nenhum furto, fizeram nem cometeram; mas
que deviam por todas vias e artes que pudessem, procurar o ladrão que aquele
comum dano os fazia, porque não era de acreditar que o asno que só ali
estava, tinha que afeiçoar a comer tais manjares, mas que cada dia faltavam
os principais e mais apreciados manjares; além disto, em sua câmara não
havia muito grandes ratos, nem moscas, como foram outro tempo as harpias,
que roubavam os manjares de Phines, rei de Arcádia. Enquanto isso, que eles
andavam nisto, eu, jantando daqueles copiosos jantares e bem gordo com os
manjares de homem, estava redondo e cheio; meu corpo, abrandado com a
formosa grossura, bem criado o pelo, que resplandecia; mas esta formosura de
meu corpo causou grande desonra e vergonha para mim, porque eles, movidos
da grandeza não acostumada de meu corpo, vendo que o feno e cevada que
me jogavam cada dia ficava ali, sem tocar nisso, endireitaram toda sua
suspeita contra mim, à hora acostumada fizeram como que se fossem ao
banho; fechadas as portas da câmara, como costumavam, puseram a olhar por
uma fenda da porta e viram como estava pego com aqueles manjares. Então
eles, não curando de seu dano e maravilhando-se dos monstruosos deleites do
asno, tornaram a irritação em grandiosa risada; chamando o outro irmão e
depois todos os servidores da casa, mostraram-lhes a gula que não se pode
dizer e digna de pôr em memória, de um asno preguiçoso; finalmente, que tão
grande risada e tão liberal tomou a todos, que veio às orelhas do senhor, que
Primeiro livro268
por ali passava, o qual perguntou que boa coisa era aquela de que tanto ria a
família. Sabido o negócio que era, ele também foi olhar pelo buraco, de que
houve grande prazer e tão grande risada tomou, que lhe doíam as virilhas
rindo; aberta a câmara, sentou-se e ali começou a olhar de perto. Eu, quando
isto vi, parecia-me que via a cara alegre da fortuna, que de alguma maneira já
mais meigamente me favorecia, ajudando-me o gozo dos que estavam
presentes, nada me turvava, antes comia certamente; até que, com a novidade
daquela visita, o senhor de casa, muito alegre, mandou levar-me e ele mesmo
por suas mãos levou-me à sua sala; posta a mesa, mandou-me pôr nela todo
gênero de manjares inteiros, sem que ninguém houvesse colocado neles. Eu,
como que já estava um tanto farto do que comera, mas desejando me fazer
gracioso ao senhor e que ele me tivesse em algo, comia daqueles manjares
como se estivesse muito faminto. Eles, para informar-se bem se eu era manso,
aquilo que acreditavam que principalmente aborrecem os asnos, aquilo
punham adiante para ver se o comeria, assim como carne adubada, galinhas e
capões apimentados, pescados em escabeche. Enquanto que isto passava,
havia grandiosa risada entre quão convidados ali estavam e um trapaceiro que
ali estava, disse:
-Dêem alguma outra coisa a este meu companheiro.
Ao qual respondeu o senhor, dizendo:
-Pois você, ladrão, não falou néscio, que muito bem pode ser que este
nosso comensal deseje beber de boa vontade deste vinho.
E logo disse a um pajem:
-Traga aquela taça de ouro, diligentemente lavada, enche-a de vinho e dá
de beber a meu trapaceiro, embora diga-lhe que eu beba antes que ele.
Primeiro livro269
Quão convidados estavam à mesa estiveram muito atentos esperando o
que tinha que passar. Então eu, não espantado por coisa alguma, muito a
espaço e muito a meu prazer, retorcendo o lábio de baixo a maneira de língua,
de um golpe levei aquele maior copo; e logo todos a uma voz com grande
clamor disseram-me:
-Deus lhe dê saúde, que tão bem o fizeram.
Enfim, que aquele senhor, cheio de grande prazer e alegria, chamou a
seus dois criados que me compraram e mandou-lhes dar por mim quatro vezes
tanto pelo que me compraram; a mim deu a outro seu criado muito privado
dele e rico, fazendo-lhe um grande sermão ao princípio em minha
recomendação, o qual me criava assaz humanamente e como a um seu
companheiro, porque seu amo o tivesse mais aceito, procurava quanto podia
de dar-lhe prazer com meus jogos; primeiro ensinou-me estar à mesa sobre o
cotovelo; depois também ensinou-me lutar e a saltar, elevadas as mãos; e
porque fosse coisa maravilhosa, ensinou-me a responder às palavras por sinais.
De tal maneira, que quando não queria meneava a cabeça, e quando
algo queria, mostrava que me agradava baixando-a; quando havia sede,
olhava ao corpo, fazendo sinal com as pestanas, dava-me de beber. Todas
estas coisas facilmente eu obedecia e fazia porque, embora ninguém
mostrasse-me, soubesse muito bem fazer; mas temia que se por ventura, sem
que ninguém me ensinasse eu fizesse estas coisas, como homem humano,
muitos, pensando que poderia vir disto algum cruel presságio, que como a
monstro e mau agouro me matariam e dariam muito bem de comer comigo à
abutres.
Primeiro livro270
CAPÍTULO IV
No qual relata o asno o estado de seu senhor, e como vindos à cidade de
Corinto, teve acesso com uma valorosa matrona que por aquela noite alugoulhe
para descansar com ele em um.
Já andava publicamente grande rumor e fama como eu, com minhas
maravilhosas artes e jogos, fazia a meu senhor muito afamado e acatado de
todos. Quando ia pela rua diziam: «Este é o que tem um asno que é
companheiro e convidado, que salta e luta, entende as falas dos homens e
expressa o sentido com sinais que faz.» Agora o resto que lhes quero dizer,
embora o devesse fazer ao princípio; mas ao menos relatarei quem é este, ou
de onde nascera. Thiaso, que por tal nome se chamava aquele meu senhor, era
natural da cidade de Corinto, que é cabeça de toda a província da Acaya;
conforme a dignidade de seu nascimento o demandava, de grau em grau,
tivera todos os ofícios de honra da cidade; agora estava renomado para ser a
quinta vez cônsul, porque respondesse sua nobreza ao resplendor de tão
grande ofício em que tinha que entrar, prometeu dar ao povo três dias de
festas e jogos de prazer; estendendo longamente sua liberalidade e
magnificência. Enfim, tanta vontade da glória e favor do povo, que teve que ir
à Tessália comprar bestas, feras grandes e formosas; e trazer servos para o
jogo da esgrima. Depois que houve a seu prazer comprado todas as coisas que
havia mister, aparelhou de tornar-se a sua casa; menosprezadas aquelas ricas
cadeiras em que o traziam, pospostos os carros ricos, uns descobertos de tudo
e outros pouco descobertos, que ali vinham vazios e traziam aqueles cavalos
que nos seguiam; deixados deste modo os cavalos da Tessália e outros cavalos
franceses, aos quais a generosa linhagem e criação que deles sai os faz ser
Primeiro livro271
muito estimados, vinha com muito amor cavalgando em cima de mim,
trazendo-me muito embelezado com guarnição dourada e coberto de tapetes
de seda e púrpura; com freio de prata, as cilhas pintadas, adornado de muitos
sinos de cascavéis que vinham soando; meu senhor falava-me com palavras
muito suaves e amigas; entre outras coisas dizia que muito se deleitava por ter
em mim um convidado e quem o trazia nas costas. Depois que caminhamos
por mar e por terra, chegamos à Corinto, aonde saiu-nos a receber grande
companhia da cidade, os quais, conforme parecia-me, não saíam tanto por
fazer honra ao Thiaso, quanto desejando ver-me, porque tanta fama minha
havia ali, que não pouco ganho houve por mim aquele que tinha a cargo. O
qual, como via que muitos tinham grande anseio, desejando ver meus jogos,
fechavam as portas e entravam um a um; e ele, recebendo o dinheiro, não
pouca soma rapava cada dia.
Naquele cerco e prefeitura fui ver uma matrona, mulher rica e honrada, a
qual, como os outros, negociou minha vista por seu dinheiro; com as muitas
maneiras de jogos que eu fazia, ela deleitou-se e maravilhou tanto, que pouco
a pouco, apaixonou-se, maravilhosamente, por mim; não havendo medicina,
nem remédio algum para seu louco amor e desejo, ardentemente, desejava
estar comigo e ser outra Pasifae de asno, como foi a outra do touro.
Enfim, que ela consertou com aquele que tinha a cargo que a deixasse
uma noite comigo e que lhe daria grande preço por isso; assim que aquele
velhaco, porque de mim lhe pudesse vir proveito, contente de seu ganho
prometido. Já que tínhamos jantado partimos da sala de meu senhor e
achamos aquela dona que me esperava em minha câmara. Oh, Deus bom! Que
tal era aquele aparelho, quão rico e embelezado! Quatro eunucos que ali tinha
nos aparelharam logo a cama no chão, com muitas almofadas, cheios de pluma
Primeiro livro272
delicada e mole, que pareciam cheios de vento; ainda por cima, roupas de
brocado e de púrpura; em cima de tudo, outras almofadas menores que as
outras, com os quais as mulheres delicadas costumavam sustentar seus rostos
e nucas; porque não impedissem o prazer e desejo da senhora com sua longa
tardança, fechadas as portas da câmara se foram logo; mas, dentro ficaram
velas de cera ardendo resplandecentes, que nos clareavam as trevas obscuras
da noite.
Então ela, nua de todas as suas vestimentas, tirou deste modo uma
bandagem com que se ligava, chegou perto da luz, tirou um pote de estanho e
untou-se toda com bálsamo que ali trazia; também lubrificou-me e esfregou
muito longamente, mas com muita maior diligência lubrificou-me a boca e
narinas. Isto feito, beijou-me muito apertadamente, não da maneira que
revistam beijar as mulheres que estão no bordel, ou outras rameiras
mandonas, ou as que revistam receber aos negociantes que vêm, a não ser,
pura e sinceramente, sem engano, começou a falar muito meigamente
dizendo:
-Eu o amo, desejo-o e só a si; sem você já não posso viver... -
semelhantes coisas com que as mulheres atraem a outros e declaram-lhes
suas afeições e amor que lhes têm. Assim tomou-me pelo cabresto, e como já
sabia o costume daquele negócio, facilmente fez-me abaixar, principalmente,
que eu bem via que naquilo nada novo, nem difícil fazia, quanto mais por fim
de tanto tempo que tivesse sorte de abraçar uma mulher tão formosa e que
tanto me desejava; além disto, eu estava farto de muito bom vinho; com
aquele ungüento tão cheiroso, que me lubrificara, despertei muito mais o
desejo e arranjo da luxúria. Verdade é que me fatigava comigo, não com pouco
temor pensando de que maneira um asno como eu, com tantas e tão grandes
Primeiro livro273
pernas, poderia subir em cima de uma dona delicada, ou como poderia abraçar
com minhas duras unhas uns membros tão brancos e tenros, feitos de mel e
leite; também aqueles lábios magros, tintos como rocio de púrpura, tinha que
tocar com uma boca tão larga e grande, beijá-la com meus dentes disformes e
grandes como de pedra. Finalmente, que embora eu conhecia que aquela dona
estava acesa das unhas até os cabelos, pensava de que maneira havia de me
receber. Ai de mim, que rompendo uma mulher fidalga como aquela, eu seria
jogado às bestas bravas que comessem, despedaçassem e fariam festa a meu
senhor. Ela, enquanto isso, voltava a dizer aquelas palavras brandas, beijandome
muitas vezes e dizendo aqueles adulações doces com os olhos aturdidos,
dizendo em suma: «Tenha-me, meu filhote de pomba, meu passarinho»;
dizendo isto mostrou que meu medo e meu pensamento era muito néscio,
porque me abraçou fortemente; e quantas vezes eu, receando de não fazer
mal, retraía-me, tantas vezes dela, com aquele raivoso ímpeto apertava-me e
amealhava-se para mim, tanto, que por Deus, eu acreditava que me faltava
algo para suprir seu desejo, pelo qual eu pensava, que não era pouco mãe do
Minotauro, deleitava-se com seu touro apaixonado. Já que a noite trabalhosa e
muito velada era passada, ela escondeu-se da luz do dia, partiu de manhã,
deixando acordado outro tanto preço para a noite vindoura, o qual aquele meu
professor, concedeu de sua própria vontade, sem muita dificuldade por duas
coisas: primeiro, pelo ganho que a minha causa recebia; o outro, por preparar
nova festa para seu senhor. Enfim, que sem tardança nenhuma, lhe descobriu
todo o aparelho do negócio e de que maneira passara.
Quando ele ouviu isto, fez graças magnificamente àquele seu criado e
mandou que me equipasse para fazer aquilo em uma festa pública.
Primeiro livro274
CAPÍTULO V
Como foi procurada uma mulher que condenada à morte, para que em
uma festa tivesse acesso com o asno no teatro público; e conta o delito que
cometera aquela mulher.
E porque aquela boa de minha mulher, por ser de linhagem e honrada,
nem tampouco outra alguma se pôde achar para aquilo, busco uma de baixa
condição por grande preço, a qual estava condenada por sentença da justiça
para jogar às bestas, para que publicamente, diante do povo, no teatro,
tornasse-se comigo, da qual eu soube esta história. Aquela mulher tinha um
marido, o pai do qual, partindo-se para outra terra, muito longe, deixava
prenhe a sua mulher, mãe daquele mancebo; e mandou-lhe que parisse filha,
logo que nascesse, matasse-a. Ela pariu uma filha, por isso, o marido mandaralhe,
havendo piedade da menina, como as mães têm de seus filhos, não quis
cumprir aquilo que seu marido disse e deu a criar a um vizinho. Depois que
retornou o marido, disse-lhe como morreu a filha que pariu; mas, depois que já
a moça estava para casar, a mãe não a podia adotar sem que o marido
soubesse; o que pôde fazer foi que descobriu o segredo àquele mancebo, filho
dele, porque temia, possivelmente, por ventura, não se apaixonasse pela
moça; e, com o calor da juventude, não sabendo-o, incorresse em mau caso
com sua irmã, que tampouco sabia. Todavia, aquele mancebo, que era homem
de nobre condição, pôs em obra o que sua mãe lhe mandava e o que a sua
irmã cumpria; guardando muito o segredo pela honra da casa de seu pai;
mostrando externamente uma humanidade comum entre os bons, quis
satisfazer ao que era obrigado a seu sangue, dizendo que por ser aquela moça
sua vizinha, desconsolada, se separada da ajuda e favor de seus pais, queria-a
Primeiro livro275
receber em sua casa a seu amparo e tutela, porque a queria dotar de sua
própria fazenda e casá-la com um companheiro muito seu amigo e próximo.
Entretanto, estas coisas, assim com muita nobreza e bondade bem dispostas,
não puderam fugir da mortal inveja da fortuna, por disposição da qual logo o
cruel ciúmes entraram em casa do mancebo; logo a mulher daquele mancebo,
que agora estava condenada a jogar às bestas por aqueles males que fez,
começou primeiro a suspeitar contra a moça, que era sua rival e que se
tornava com seu marido; portanto, dizia mal dela, daí ficou em espreitá-la por
todos os laços da morte. Finalmente, que inventou, pensou uma traição e
maldade desta maneira. Esta mulher furtou de seu marido o anel, foi à aldeia
onde tinha suas fazendas e enviou a um escravo dele que lhe era muito fiel,
embora ele merecia mal pela fé que lhe tinha, para que dissesse à empregada
que aquele mancebo, seu marido, chamava-a que viesse logo ali à aldeia onde
ele estava, acrescentando a isto que muito rapidamente viesse, só e sem
nenhum companheiro; porque não houvesse causa para demorar-se, deu o
anel que furtara de seu marido, o qual, como o mostrasse, ela daria fé à suas
palavras. O escravo fez o que sua senhora lhe mandava; como aquela donzela
ouviu o mandado de seu irmão, embora este nome não sabia outro, vendo o
sinal que lhe mostraram, rapidamente partiu sem companhia, como lhe
mandara. Depois, caída no fosso do engano, sentiu as tocaias e laços que lhe
prepararam. Aquela boa mulher, desenfreada, com os estímulos da furiosa
luxúria, tomou à irmã de seu marido; primeiro nua a fez açoitar muito
cruelmente; depois, embora ela falando o que era verdade dizia que muito
tinha pena e suspeita que ela era sua comadre; chamando muitas vezes o
nome de seu irmão, aquela mulher lhe lançou um tição ardendo entre as
pernas, dizendo que mentia e fingia aquelas coisas que dizia, até que
Primeiro livro276
cruelmente a matou. Então, o marido desta e seu irmão, sabendo sua amarga
morte pelas mensagens que vieram, correram rápido à aldeia onde estava;
depois de muito lamentar e chorar, colocaram-na na sepultura. O mancebo,
seu irmão, não podendo tolerar, nem sofrer com paciência, a raivosa morte de
sua irmã; que sem dúvida mataram, comovido e apaixonado de grande dor que
tinha, em meio a seu coração, aceso de um mortal furor da amarga cólera,
ardia com uma febre muito ardente e acesa, de tal maneira, que já lhe parecia
tomar remédio. Mas, a mulher, a qual antes de agora perdera com a fé o nome
de sua mulher, falou com um físico, que notoriamente era falsário e mau
homem, o qual tinha já fartos triunfos de sua mão e era conhecido nas
batalhas de semelhantes vitórias; prometeu-lhe cinqüenta ducados para que o
vendesse peçonha que logo matasse; e ela comprasse a morte de seu marido,
a qual, quando viu a peçonha, fingiu que era necessário aquele nobre xarope,
que os sábios chamam sagrado, para amansar as vísceras e tirar toda a cólera;
mas, em lugar desta medicina que ela dizia, pôs outra maldita para ir à saúde
do inferno. O físico, presentes todos os de casa, alguns amigos e parentes,
queria dar ao doente aquele xarope, muito bem preparado por sua mão;
porém, aquela mulher, audaz e atrevida, para matar junto ao físico com seu
marido, como a homem que sabia sua traição e não a descobrisse e também,
para ficar com o dinheiro que lhe prometera, deteve o copo que o físico tinha e
disse:
-Senhor doutor, pois é o melhor dos físicos, não consinto que dê este
xarope a meu marido sem que primeiro você dele beba uma boa parte, porque,
até onde eu sei agora, se por ventura está nele escondida alguma peçonha
mortal? Certo não se ofenda, sendo tão prudente e tão douto físico, se a boa
mulher, desejosa e solícita perto da saúde de seu marido, procura piedade
Primeiro livro277
para sua saúde necessária.
Quando isto o físico ouviu, foi subitamente turbado pelo maravilhoso
desespero daquela fêmea cruel; vendo-se privado de todo conselho, pelo
pouco tempo que tinha para pensar, antes que com seu medo, ou tardança
desse suspeita aos outros de sua má consciência, tomou uma boa parte
daquela poção. O marido, vendo o que o físico fizera, tomou o copo na mão e
bebeu o que ficara. Passado o negócio desta maneira, o médico voltava à sua
casa o mais depressa possível, para tomar alguma saudável poção para apagar
e matar a pestilência daquele vinho que tomara; mas a mulher, com insistência
e obstinação sacrílega, como já o começara, não consentiu que o médico se
separasse dela tanto como uma unha, dizendo que não partisse dali, até que o
xarope que seu marido tomara fosse digerido e parecesse provado que o
remédio obrava. Finalmente, que fatigada dos rogos e importunações do físico,
contra sua vontade e a contra gosto o deixou ir; enquanto isso, as vísceras e o
coração receberam em si, aquela peçonha furiosa e cega; assim ele, aleijado
da morte e arrojado em um profundo sono, que já não se podia ter, chegou em
sua casa e logo que pôde contar à sua mulher como acontecera; mandou-lhe
que ao menos pedisse os cinqüenta ducados que lhe mandara em
remuneração daquelas duas mortes. Desta maneira, aquele físico, muito
famoso, afogado com a violência da peçonha, deu a alma; nem tampouco,
aquele mancebo, marido desta mulher, deteve muito a vida, porque entre as
fingidas lágrimas dela, morreu outra morte semelhante.
Depois que o marido foi sepultado, passados poucos de dias, nos quais se
fazem as exéquias aos mortos, a mulher do físico pediu o preço da morte
dobrado de ambos os maridos. Todavia, aquela mulher má, em tudo
semelhante a si mesmo, suprimindo a verdade e mostrando semelhança de
Primeiro livro278
querer cumprir com ela, respondeu-lhe muito meigamente, prometendo que
lhe pagaria brevemente e até mais adiante; que logo, contente com tal
condição, que queria dar um pouco daquele xarope para acabar o negócio que
começara. A mulher do físico, induzida pelos laços e enganos daquela má
fêmea, facilmente consentiu no que lhe demandava; para agradar e mostrar
ser servidora daquela mulher, que era muito rica, muito rapidamente foi à sua
casa e trouxe toda a bolsa da peçonha, dizendo àquela mulher, a qual, achada
causa e matéria de grandes maldades, procedeu adiante longamente com suas
mãos sangrentas. Ela tinha uma filha pequena daquele marido que há pouco
morreu, à esta menina, como lhe vinham por sucessão os bens de seu pai,
como o direito manda, queria-lhe muito mal; cobiçando com muita ânsia todo o
patrimônio de sua filha, desejava vê-la morta. Assim que ela, sendo certo que
as mães, embora sejam más, herdam os bens dos filhos defuntos, deliberou de
ser tão boa mãe para sua filha, qual foi mulher para seu marido; de maneira
que, como viu em tempo, ordenou um convite, no qual feriu com aquela
peçonha a mulher do físico, junto com sua mesma filha; como a menina era
pequena e tinha o espírito sutil, logo a peçonha raivosa entrou nas delicadas,
tenras veias e vísceras e morreu. A mulher do físico, enquanto que a
tempestade daquela poção detestável andava dando voltas por seus pulmões,
suspeitando primeiro o que seria e logo, como começou inchar, já mais certa
que o certo, correu rápido à casa do senador; com grande clamor, começou a
chamar sua ajuda e favor, às tais vozes o povo todo se levantou com grande
tumulto; dizendo ela que queria descobrir grandes traições, fez que as portas
da casa e junto às orelhas do senador se abrissem; contadas por ordem as
maldades daquela mulher cruel desde o começo, subitamente, tomou um
desvanecimento de cabeça, caiu com a boca meio aberta, que não pôde mais
Primeiro livro279
falar, dando grandes batidas com os dentes, caiu morta ante os pés do
senador. Quando ele isto viu, como era homem exercitado em tais coisas,
amaldiçoando a maldade daquela feiticeira, com que tantos morreram, não
permitiu que o negócio esfriasse com preguiçosa demora; logo, trazida ali
aquela mulher, afastados os de sua câmara, com ameaças e torturas tirou dela
toda a verdade; assim foi sentenciada que a jogassem às bestas, como queria
esta pena era a menor da qual ela merecia; mas, dizendo que não pôde pensar
outra tortura mais digna fosse para sua maldade. Tal era a mulher com quem
eu tinha que ter matrimônio publicamente; pelo qual, estando assim suspenso,
tinha comigo grandiosa pena e fadiga, esperando o dia daquela festa; e, certo,
muitas vezes pensava tomar a morte com minhas mãos e matar-me antes que
me sujar juntando-me com mulher tão maligna, ou que houvesse eu de perder
a vergonha com infâmia de tão público espetáculo. Entretanto, privado eu de
mãos humanas, privado dos dedos, com a unha redonda e maciça, não podia
preparar espada, nem faca para fazer o que queria; enfim, eu consolava estas
minhas extremas fadigas com muito pequena esperança; já que o verão
começava e que pintava todas as coisas com folhagens floridas e vestia os
prados com flores de muitas cores, que logo as rosas, saindo de si aromas
celestiais, saídas de sua vestimenta espinhosa, resplandeceriam e voltariam ao
meu primeiro Lucio, como eu antes era.
Primeiro livro280
CAPÍTULO VI
No qual se contam muito longamente as solenes festas que em Corinto
celebraram-se, e como, estando aparelhado o teatro para a festa que o asno
tinha que fazer, fugiu sem mais aparecer.
Nisto, eis aqui vem o dia que era famoso para aquela festa, com
grandiosa pompa e favor, acompanhando-me todo o povo, eu fui levado ao
teatro; enquanto começavam a fazer para iniciar a festa, certas danças e
representações, eu parado diante da porta do teatro, pastando grama e outras
ervas frescas que eu tinha prazer em comer; como a porta do teatro estava
aberta, sem impedimento, muitas vezes recreava os olhos curiosos olhando
aquelas graciosas festas. Porque ali havia moços e moças de muito variada
idade; formosos em suas pessoas, resplandecentes nas vestimentas, no andar,
saltadores que dançavam e representavam uma fábula grega, que se chama
pírrica, os quais, dispostos suas ordens, davam suas graciosas voltas, umas
vezes em roda, outras juntos em regulamento torcido, outras vezes feitos em
cunha, de maneira quadrada e apartando uns de outros. Depois que aquela
tromba com que tangiam, fez sinal que acabavam já a dança, tiraram os panos
de veludos que ali havia, e pegas as velas, preparados os aparatos da festa, o
qual era desta maneira: Estava ali um monte de madeira, feito à forma daquele
muito renomado monte, o qual o grandioso poeta Homero celebrou chamandoo
Ideo, adornado e feito de muito excelente arte, cheio de matas e árvores
verdes, em cima da altura daquele monte emanava uma fonte de água muito
formosa, feita por mão de carpinteiro, ali andavam umas poucas cabras que
comiam daquelas ervas. Estava ali um mancebo muito belamente vestido, com
um chapéu de ouro na cabeça e uma roupa ao ombro, a maneira de Páris,
Primeiro livro281
pastor troiano. O tal mancebo fingia ser pastor daquelas cabras. Nisto veio um
moço muito lindo, nu, salvo que no ombro esquerdo levava uma roupa branca,
os cabelos loiros e de toda parte muito gracioso, entre os cabelos saltavam
umas plumas de ouro, irmanadas umas às outras. O qual, segundo o
instrumento e caduceu que levava na mão, manifestava ser Mercúrio. Este,
saltando e dançando, com uma maçã de lâminas de ouro que levava em sua
mão, chegou àquele que parecia Páris e dizendo, significando-lhe por sinais o
que Júpiter mandava que fizesse; logo, rapidamente, retornando os passos
para trás, foi adiante. Logo, veio uma donzela honesta em seu gesto,
semelhante à deusa Juno, porque trazia um diadema branco ligado à cabeça e
trazia deste modo um cetro real. Depois desta saiu outra, que logo pensasse
que era Minerva, a cabeça coberta com um elmo resplandecente, ainda por
cima do elmo uma coroa de ramos de oliva, com uma lança e um alforje,
meneando-a uma parte e outra, como quando ela briga. Depois destas, entrou
outra muito poderosa; com formosa vista e graça de sua divina cor
manifestava que devia ser a deusa Vênus, a qual ela era quando donzela, o
corpo nu e sem nenhuma vestimenta, mostrando sua perfeita formosura, salvo
que com um véu de sutil seda honrava seu espetáculo, o tal véu num ar
curioso, enamorada meneava, agora, burlando-lhe elevava de tal maneira,
que, afastado, descobria a flor de sua idade; agora, com maior amor lhe
amealhava tão apertadamente que assinalava as linhas formosas de seu corpo.
A cor desta deusa era tão formosa, que o corpo era branco e claro como
quando sai do céu; a vestimenta azul, como quando volta do mar. Estas três
donzelas, que representavam aquelas três deusas, traziam seus companheiros
consigo, que muito suntuosamente, acompanhavam-nas; à Juno acompanhava
Cástor e Pólux, cobertas as cabeças com seus elmos e cimeiras, adornados de
Primeiro livro282
estrelas. Mas, estes dois Cástores eram dois moços daqueles que
apresentavam na fábula. Esta donzela, como que a tromba tangia diversos
sons e bailes, saiu muito repousada e sem fazer gesto nenhum, honestamente,
com seu gesto sereno, prometeu ao pastor que se lhe desse aquela maçã, que
era prêmio da formosura, dar-lhe-ia o reino e senhorio de toda a Ásia. À outra
donzela, que pelo adorno de suas armas parecia Minerva, acompanhavam dois
moços pajens que levavam as armas desta deusa das batalhas, aos quais
chamavam um Espanto e o outro Medo. Estes vinham saltando e esgrimindo
com suas espadas tiradas.
Às costas deles estavam as trombetas, que tangiam como quando
entram nas batalhas, junto com as trombetas bastardas tocavam clarins, de
maneira que incitavam vontade de ligeiramente saltar. Esta donzela, voltando
a cabeça, com os olhos que parecia que ameaçava, saltando e dando voltas
muito alegremente, demonstrava à Páris que se lhe desse a vitória da
formosura, que o faria muito esforçado e muito famoso com seu favor e ajuda
nos triunfos das batalhas.
Depois disto, eis aqui sai Vênus com grande favor de todo o povo, que ali
estava, no meio do teatro, cercada de moços alegres e formosos, rindo
docemente, caída com gentil continência. Certo, quem quer que visse aqueles
meninos gordos e brancos, dissesse que eram deuses do amor, como Cupido,
àquela hora, saíram do mar ou caídos do céu; porque eles conformavam nas
plumas, arcos e setas, em todo outro hábito ao deus Cupido; levavam tochas
acesas, como se sua senhora Vênus se casasse. Assim mesmo, outra linhagem
de damas a cercavam; de uma parte, as Graças agradáveis e da outra, as
muito formosas Horas, que são ninfas que acompanham Vênus, as quais, para
agradar a sua senhora, com suas grinaldas de flores e outras nas mãos, que
Primeiro livro283
por ali jogavam e derramavam, faziam um coro muito bem ordenado para dar
prazer a sua senhora com aquelas ervas e flores de verão.
Já as gaitas tangiam docemente aqueles cantos, sons músicos e suaves,
os quais deleitavam brandamente, os corações dos que ali estavam olhando;
mas, muito mais brandamente se comoviam com a vista de Vênus, a qual,
passo a passo, por meio daqueles meninos e de suas plumas e asas, movendo
pouco a pouco a cabeça, começou a andar e com seu gesto e ar delicado
responder ao som e canto dos instrumentos. Uma vez baixando os olhos, outra
vez parecia que saltava com os olhos. Esta quando chegou ante a presença do
juiz, deu-lhe os braços em cima, prometendo-lhe que se ela fosse preferida às
outras deusas, que lhe daria uma mulher tão formosa e semelhante a si
mesmo. Então aquele mancebo troiano, de muito boa vontade; deu-lhe, em
sinal de vitória, aquela maçã de ouro que tinha na mão. Do que lhes
maravilham, homens muito vis, até bestas letradas e advogados; até mais
digo, abutres de rapina, vestidos como juízes, se agora todos os juízes vendem
por dinheiro suas sentenças, porque no começo de todas as coisas do mundo a
graça e formosura corrompeu o julgamento que se tratava entre os deuses e o
homem; aquele pastor rústico, juiz eleito por conselho do grande Júpiter,
vendeu a primeira sentença daquele antigo século, para ganho de sua luxúria,
com destruição e perda de toda linhagem? Por certo, desta maneira aconteceu
outro julgamento feito e celebrado naqueles famosos duques e capitães dos
gregos, quando Palámides, poderoso em armas e claro, em doutrina e
sabedoria, foi condenado de traição com falsas acusações, ou quando Ulisses
pequeno foi preferido ao grande Ayaces, poderoso na virtude das batalhas.
Pois, o que tal foi aquele outro julgamento perto os letrados e discretos de
Atenas e os outros mestres de toda a ciência? Por ventura, aquele velho
Primeiro livro284
Sócrates, de divina prudência, o qual foi preferido a todos os mortais em
sabedoria pelo deus Apolo, não foi morto com o suco da erva mortal, acusado
por engano e inveja de maus homens, dizendo que era corrompedor da
juventude, a qual ele constrangia e apertava com o freio de sua doutrina, e
morreu deixando aos cidadãos de Atenas mácula de perpétua ignomínia?
Principalmente, que os filósofos deste tempo desejam e seguem sua doutrina
muito santa, com maior estudo e afeição de felicidade juram por seu nome.
Mas, para que algum não repreenda o ímpeto de minha irritação, dizendo
consigo desta maneira: «Como! É agora razão que soframos, a um asno que
nos esteja aqui dizendo filosofias?» Retornarei, outra vez, a contar a fábula
onde a deixei.
Depois de acabado o julgamento de Páris, aquelas deusas Juno e
Minerva, tristes, semelhantes e zangadas, foram do teatro, manifestando em
seus gestos a indignação e pena da repulsa que lhes era feita. Todavia, a deusa
Vênus, prazerosa e muito alegre, saltando e dançando com toda sua
companhia, manifestou sua alegria. Então de cima daquele monte, por um
cano escondido, saiu um bebedouro dissolvida com açafrão, caindo de cima,
orvalhou aquelas cabras que andavam ali pastando com aquela água cheirosa,
de tal maneira que, tintas e pintadas da água, mudaram a cor branca que era
própria sua em cor amarela. Assim cheirando brandamente todo o teatro, já
que era acabada a fábula, sumiu aquele monte de madeira em uma abertura
grande da terra que ali aparecia. Nisto, eis aqui vem, por meio da praça
correndo um cavaleiro dizendo que tirassem do cárcere público aquela mulher,
porque o povo assim o demandava, a qual, segundo acima disse, pela multidão
de suas maldades fora condenada às bestas e destinada para minhas honradas
bodas; assim mesmo, com muita diligência se fazia a cama de nosso
Primeiro livro285
matrimônio: o leito era de marfim muito reluzente, de colchões de pluma cheio,
com uma cobertura de seda adornado e florido.
Eu, além da vergonha que tinha de me jogar publicamente com uma
mulher, também, ter que me juntar com uma fêmea tão suja e malvada,
atormentava-me gravemente o medo da morte, dizendo comigo nesta
maneira: Que estando nós juntos, qualquer besta que soltassem para matar
àquela mulher, não seria tão prudente na discrição, nem tão ensinada por arte,
nem moderada por abstinência, que despedaçasse e comesse à mulher que
estava a meu lado e me perdoasse; com quem não tivesse culpa, nem fosse
condenado. Assim, estando eu neste pensamento, já não tinha eu tanto
cuidado da vergonha como por minha própria saúde; enquanto meu professor
estava muito atento em preparar o leito, a outra gente que por ali andava, uns
estavam ocupados em olhar a caça das bestas, os outros, atônitos naquele
espetáculo e festa deleitosa, de tal maneira que davam livre-arbítrio a meu
pensamento para pensar o que tinha que fazer; até também ninguém tinha
pensamento, nem se curava de guardar um asno tão manso, assim, que pouco
a pouco comecei a retrair os pés furtivamente; quando cheguei à porta da
cidade, que estava perto dali, pus-se a correr quanto pude, muito
apressadamente; andadas seis milhas, breve espaço cheguei ao Zencreas, que
é uma vila muito nobre dos corintios, junto dela o mar Egeu de uma parte e da
outra o mar Sarônico, aonde, porque há porto muito seguro para as naves, é
freqüentada de muitos mercados e povos. Quando eu ali cheguei, com exceção
da gente que não me visse, na ribeira do mar, secretamente perto do rocio das
ondas da água, joguei-me em um brando montão de areia; ali recreei meu
corpo cansado, porque já o carro do Sol havia baixado e posto último término
ao dia, aonde eu, descansando de noite, um doce sono tomou.
Primeiro livro286
Décimo primeiro livro
ARGUMENTO
Nosso Lucio Apuleio é todo cheio de doutrina e elegância; mas, este
último livro excede a todos os outros, no qual diz algumas coisas
simplesmente, muitas de história verdadeira, outras muitas tiradas dos
segredos da filosofia e da religião do Egito. No princípio, explica com grande
eloqüência uma oração não de asno, mas de teólogo, que fez à Lua, logo a
resposta e benévola instrução da Lua à Lucio Apuleio; a copiosa e muito
discreta descrição da pompa sacerdotal; a transformação de asno em homem,
comidas as rosas; a entrada que fez na religião de Isis e Osiris; a abstinência
de sua castidade. Outra oração muito devota à Lua, depois disto, o feliz retorno
à Roma, onde, ordenado nas coisas sagradas, dali foi posto no colégio dos
principais sacerdotes. Fala tão copiosamente, que é difícil à letra torná-lo em
nosso romance. Haja paciência quem o ler, e não culpe o que, por ventura, ele
não poderá fazer.
Primeiro livro287
CAPÍTULO I
No qual Lucio conta como, vindo naquele lugar de Zencreas, depois do
primeiro sonho viu a Lua, põe uma eloqüente oração que lhe fez, suplicandolhe
desse maneira como fosse convertido em homem.
Perto, mais ou menos, do primeiro sono da noite, despertado com um
súbito pavor, vi a grande redondez da Lua resplandecendo e com um
resplendor grande, àquela hora saía das ondas do mar. Assim, achando ocasião
da obscura noite, que é equipada e cheia de silêncio, também, sendo certo que
a Lua é deusa soberana e que resplandece com grande majestade; que todas
as coisas humanas são regidas por sua providência, não tão somente os
animais domésticos e bestas feras, mais ainda as que são sem alma, esforçamse
e crescem pela divina vontade de sua luz e deidade; também, por
conseguinte os mesmos corpos na terra, no ar e no mar agora aumentam com
os crescimentos da Lua, agora diminuem, quando ela mingua; pensado eu
deste modo que minha fortuna estaria já farta com tantas tribulações e
desventuras como me daria; que agora, embora tarde, mostrava-me alguma
esperança de cura, deliberei de rogar e suplicar àquela venerável formosura da
deusa presente; logo, tirada de mim toda preguiça, levantei-me alegre, e com
cuidado de limpar-me e purificar-me, lancei-me ao mar, colocando a cabeça
sete vezes debaixo da água, porque aquele divino Pitágoras manifestou que
aquele número setenário era de grande maneira aparelhado para a religião e
santidade, com o prazer alegre, saindo-me as lágrimas dos olhos, suplicava-lhe
desta maneira:
«Oh, rainha do céu! Agora você seja aquela Santa Ceres, primeira mãe
dos pães, que se alegrou quando achou sua filha, tirado o manjar bestial antigo
Primeiro livro288
das bolotas, mostrou manjar deleitoso, que mora e está nas terras de Atenas;
ou agora você seja aquela Vênus celestial, que no princípio do mundo juntou a
diversidade das linhagens, engendrando amor entre eles e, acrescentando o
gênero humano com perpétua linhagem, é honrada no templo sagrado de
Paphos, cercado do mar; ou agora você seja irmã do Sol, que com seus
remédios, amansando e recreando o parto das mulheres prenhes, criou tantas
pessoas, e agora é adorada no magnífico templo de Éfeso; ou agora você seja
aquela temerosa Prosérpina a quem sacrificam com uivos de noite e que
comprime os fantasmas com sua forma de três caras; refreando-se dos
encerramentos da terra, anda por diversas montanhas, arvoredos, é sacrificada
e adorada de diversas maneiras; você ilumina todas as cidades do mundo com
esta sua claridade mulheril, e criando as sementes alegres com seus úmidos
raios, dispensa sua luz incerta com as voltas e rodeios do Sol; por qualquer
nome, ou por qualquer rito, ou qualquer gesto e cara que seja lícito chamarlhe,
você, senhora, socorre e ajuda agora às minhas extremas angústias.
Levanta minha decaída fortuna, você dá paz e repouso aos acontecimentos
cruéis por mim passados e sofridos; baste já, deste modo, os perigos, tira esta
cara maldita e terrível de asno; volta-me a meu Lucio, à presença e vista dos
meus; e se, por ventura, algum deus eu zanguei, aperta-me com crueldade
inexorável, consinta ao menos que morra, porque não me convém que viva
desta maneira.»
Fazendo minhas rogativas e composto meus choros, retornou outra vez o
sono a oprimir meu coração sonolento, naquele mesmo lugar onde me jogara,
não havia quase fechado bem os olhos, eis aqui, aquela divina cara elevando
seu gesto honrado, saiu de meio do mar; em saindo, pouco a pouco sua
reluzente figura, já que toda estava fora da água, parecia que ficou diante
Primeiro livro289
mim; da qual sua maravilhosa imagem eu esforçar-me-ei de contar, se o
defeito da fala humana der-me para isso faculdade, ou se sua divindade
administrar-me, abundantemente, cópia de facúndia para podê-lo dizer.
Primeiro ela tinha os cabelos muito compridos, derramados pelo divino pescoço
e que lhe cobriam as costas; tinha em sua cabeça uma coroa adornada de
diversas flores, em meio da qual estava uma redondez plana a maneira de
espelho, que resplandecia a luz dele para demonstração da Lua de uma parte,
da outra havia muitos sulcos de arados torcidos como cobras e com muitas
espigas de trigo por ali nascidas; trazia uma vestimenta de linho, tecida de
muitas cores; hora era branca e muito reluzente, hora amarela como flor de
açafrão, hora inflamada com uma cor rosada, que, embora estava eu longe,
tirava-me a visão dos olhos; trazia em cima outra roupa negra, que
resplandecia a escuridão dela, a qual trazia coberta e arremessada por debaixo
do braço destro, ao ombro esquerdo, como um escudo pendendo com muitas
dobras e pregas.
Era esta roupa bordada ao redor com suas tranças de ouro, semeada
toda de umas estrelas muito resplandecentes, em meio das quais a Lua de
quinze dias lançava de si raios inflamados; e como que esta roupa a cercava
pendendo de toda parte e tinha a coroa ligada com ela, adornada de muitas
flores, maçãs e outras frutas, mas na mão tinha outra coisa muito diversa do
que dissemos; porque ela tinha na mão direita um pandeiro com soalhas de
arame, atravessadas por meio com suas varinhas, e com um pau deu-lhe
muitos golpes, que o fazia soar muito sabrosamente; na mão esquerda trazia
um jarro de ouro, da asa do jarro, que era muito linda, saía uma serpente, que
se chamava Aspis, elevando a cabeça e com o pescoço muito alto; nos pés
divinos trazia umas alpargatas, feitas de folhas de palma. Tal e tão grande me
Primeiro livro290
apareceu aquela deusa, jogando de si um aroma divino, como os aromas que
se criam na Arábia, e teve por bem de falar-me desta maneira:
- Hei-me aqui, venho comovida por seus rogos. Oh, Lucio! Saiba que eu
sou mãe e natureza de todas as coisas, senhora de todos os elementos,
princípio e geração dos séculos, a maior dos deuses e rainha de todos os
defuntos, primeira e única garganta de todos os deuses e deusas do céu, que
dispenso com meu poder e mando as alturas resplandecentes do céu, as águas
saudáveis do mar e os secretos choros do inferno. A mim só uma deusa honra
e sacrifica todo mundo, de muitas maneiras de nomes. Daqui, os troianos, que
foram os primeiros que nasceram no mundo, chamam-me Pesinuntica, mãe
dos deuses. Daqui deste modo os atenienses, naturais e ali nascidos, chamamme
Minerva cecropea; e também os de Chipre, que moram perto do mar,
nomeiam-me Vênus Pafia. Os arqueiros e sagitários de Creta, Diana. Os
sicilianos de três línguas chamam-me Prosérpina. Os eleusínios, a deusa Ceres
antiga. Outros chamam-me Juno, outros Bellona, outros Hecates, outros
Ranusia. Os etíopes, ilustrados dos ferventes raios do sol, quando nasce, os
arrios e egípcios, poderosos e sábios, onde nasceu toda a doutrina, quando me
honram e sacrificam com meus próprios ritos e cerimônias, chamam-me pelo
meu verdadeiro nome, que é a rainha Isis. Havendo mercê de seu desarrumado
caso e desdita, venho em pessoa a favorecer-lhe e ajudar-lhe; por isso, deixa já
estes choros e lamentações; separa de si toda tristeza e fadiga, que já por
minha providência é chegado o dia saudável para você. Assim, com muita
solicitude e diligência, entende e cumpre o que lhe mandar. O dia de amanhã,
que nascerá desta noite, nomeio a religião dos homens, festejem e dediquem
para sempre em meu nome, porque apaziguadas as tempestades do inverno,
amansadas as ondas e tormenta do mar, estando já manso para navegar, os
Primeiro livro291
sacerdotes de um templo sacrificavam-me um barco novo, em sinal e primazia
de sua navegação. Esta minha festa e sacrifício não deve esperar com
pensamento profano e solícito, porque por meu aviso e mandado o sacerdote
que for nesta procissão e pompa levará na mão direita, pendurando do
instrumento, uma grinalda de rosas; assim que você, sem embaraço, nem
tardança, alegre, afastando a gente, chegue à procissão confiando em minha
vontade, meigamente, quando chegar a beijar a mão do sacerdote, morderá
aquelas rosas, as quais, comidas logo, eu despir-lhe-ei do couro desta péssima
e detestável besta, em que há tantos dias anda metido; e não tema coisa
alguma do que lhe digo, dizendo que é coisa árdua e difícil, porque neste
mesmo monte que aqui estou, vê-me presente, disponho deste modo e mando
em sonhos ao sacerdote o que tem que fazer em prosseguimento do que lhe
digo; por meu mandado o povo, embora esteja muito apertado, afartar-se-á e
lhe dará lugar; nenhum, embora esteja entre as alegres cerimônias e festas,
espantar-se-á em ver esta cara deforme que traz, nem tampouco acusará
maliciosamente, nem interpretará em má parte que sua figura subitamente
transforme-se em homem. De uma coisa lhe acordará e terá sempre escondida
no íntimo de seu coração; que todo o tempo de sua vida, que daqui em diante
viver, até o último término dela, tudo aquilo que vive, deve-o, com muita
razão, àquela por cujo benefício volta a estar entre os homens. Você viverá
bem-aventurado e viverá glorioso, sem amparo e tutela; quando viver,
acabado o espaço de sua vida, e entrar no inferno, ali naquele subterrâneo
meio redondo, verá que ilumino às trevas do rio Aqueronte e que reino nos
palácios secretos do inferno; você, que estará e morrerá nos Campos Elíseos,
muitas vezes me adorará como a sua advogada própria. Além disto, saiba que
se com serviços contínuos, atos religiosos e perpétua castidade, merecer
Primeiro livro292
minha graça, eu lhe poderei alargar, e a mim somente convém lhe prolongar a
vida, além do tempo constituído a seu fado.
Desta maneira acabada a fala desta venerável visão, desapareceu diante
de meus olhos, retornando a si mesmo.
Primeiro livro293
CAPÍTULO II
No qual se descreve, com grandiosa eloqüência, uma solene procissão
que os sacerdotes fizeram à Lua, em tal procissão o asno arrumou as rosas das
mãos do grande sacerdote, comeu-as e voltou-se homem.
Não demorou muito que eu, acordado daquele sonho, levantei-me com
pavor e gozo; deste modo misturado de um grande suor, maravilhando-me
muito de tão clara presença desta deusa poderosa, orvalhando-me com a água
do mar, estando muito atento à seus grandes mandamentos, recolhi comigo a
ordem de sua munição. Nisto não demorou muito que o Sol dourado saiu,
apartando as trevas da noite obscura; chegando à cidade, eu vi que as pessoas
e povo dela enchiam todos os lugares em hábito religioso e triunfante; com
tanta alegria, que além do prazer que eu tinha, parecia-me que todas as coisas
se alargavam de tal maneira, que até os bois, brutos animais, todas as coisas,
até mesmo o dia, sentia eu que com alegres gestos gozavam, porque o dia
sereno e aprazível seguira a chuva que no dia anterior fizera. De tal maneira,
que os passarinhos e aves, alegrando do vapor do verão, soavam cantos muito
doces e suaves, adulando meigamente à mãe das estrelas, princípio dos
tempos, senhora de todo o mundo. O que posso dizer, mas sim as árvores,
assim os que dão fruto como os que se contentam com somente sua sombra,
meneando e elevando os ramos, com o vento austral, riam e alegravam com o
novo nascimento de suas folhas, com o manso movimento de seu ramos
assobiavam e faziam um doce estrépito? O mar, amansado da tormenta e
tempestade, deposto o rumor e inchaço das ondas, estava temperado e com
muito maior repouso. O céu, tendo arrojado de si as obscuras nuvens,
resplandecia com a severidade e resplendor de sua própria luz. Eis aqui onde
Primeiro livro294
vêm diante da procissão, pouco a pouco, muitas maneiras de jogos muito
belamente adornados, assim nas vozes como nos outros atos e gestos.
As pessoas vinham em hábitos de cavaleiro, apertado com sua banda;
outro vestido de sua vestimenta e sapatos de caça, com uma flecha na mão,
representando um caçador; outro vestido com uma roupa de seda e chapas
dourados e outros ornamentos de mulher, com uma cabeleira na cabeça,
andando pomposamente, mentindo com seu gesto pessoa de mulher; outro ia
armado como sonhador, capacete e barba e com seu escudo na mão, que
parecia saído do jogo de esgrima; não faltava outro que lhe seguia, vestido de
púrpura e com insígnias de senador; atrás deste, outro, com seu estribilho,
capa e alpargatas e com suas barbas de bode, representava e fingia pessoa de
filósofo; outro ia com diversos canos, uma para caçar aves com visco e outra
para pescar com anzol. Além disto vi deste modo que levavam um urso manso,
sentada em uma cadeira e vestida em hábitos de mulher casada e honrada;
outro levava uma capa com um chapeuzinho felpudo na cabeça, vestida com
um roupa folgada amarelo, com uma capa de ouro, que parecia com
Ganimedes, aquele pastor troiano que Júpiter arrebatou para seu serviço;
depois disto vi que ia ali um asno com asas, que representava aquele cavalo
Belerofonte, perto dele andava um velho, que podia dizer, quem o visse, que
era Pégaso, como que podia rir e burlar de ambos.
Entre estas coisas de jogo que popularmente ali se faziam, já se
aparelhava e vinha a festa e pompa de minha própria deusa que me tinha que
salvar e escapar de tanta tribulação; diante dela vinham muitas mulheres
resplandecentes, com vestimentas brancas e alegres, com diversas grinaldas
de flores que traziam, as quais enchiam de flores que tiravam de seus seios às
ruas e lugares por onde vinha a festa e procissão.
Primeiro livro295
Outras levavam nas costas uns espelhos resplandecentes, para mostrar à
deusa que vinha atrás delas o serviço e festa que lhe faziam. Outras que
traziam muito formosos pentes de marfim nas mãos, fazendo atos e gestos
com os braços, voltando os dedos a uma parte e a outra, fingindo que
penteavam e adornavam os cabelos da rainha Isis.
Outras que orvalhavam os lugares com muitos ungüentos cheirosos,
derramando bálsamo com uma jarra. Além disto, ia grandiosa multidão de
homens e mulheres com suas candeias, tochas, círios e com outro gênero de
luz artificial, favorecendo e honrando as estrelas celestiais. Depois foram
muitos instrumentos de muito suave música, assim como sinfonias muito
suaves, flautas e gaitas que cantavam muito doce e brandamente, às quais
seguia uma dança de muito formosas donzelas com seus colares brancos,
cantando um canto muito gracioso, o qual com favor das musas, ordenou
aquele sábio poeta, no qual se continha o argumento e regulamento de toda a
festa. Outros também havia que foram cantando canções de maiores votos;
outros com trombetas, dedicadas ao grande deus do Egito Serapis, os quais,
com as trombetas retorcidas, postas à orelha direita, cantavam aqueles versos
familiares do templo e da deusa; outros muitos que davam lugar por onde
passasse a festa.
Nisto veio uma grande multidão de homens e mulheres de toda sorte e
idade, resplandecendo com vestimentas de linho puro e muito branco,
misturando-se com os sacerdotes que ali estavam. Umas levavam os cabelos
lubrificados com aromas, amarrados em limpos e brandos trançados; os
homens levavam as cabeças raspadas, reluzindo-lhes as coroas, como estrelas
terrestres de grande religião, tangendo e fazendo doce som com pandeiros e
soalhas de arame e de prata e até também de ouro; aqueles principais
Primeiro livro296
sacerdotes, que foram vestidos daquelas vestimentas brancas até os pés,
levavam as jóias e insígnias de seus poderosos deuses.
O primeiro dos quais levava uma lamparina resplandecente, não
semelhante a nossa luz com que iluminamos os jantares da noite; mas era um
jarro de ouro, que tinha a boca larga, por onde jogava a chama da luz
longamente. O segundo ia vestido semelhante a este; mas levava em ambas
as mãos um altar, que quer dizer auxílio, ao qual a providência deu à soberana
deusa, que é ajudadouro, deu-lhe este próprio nome. Ia o terceiro e levava na
mão uma palma com folha de ouro muito sutilmente lavrada, e na outra um
caduceu, que é instrumento de Mercúrio. O quarto mostrava um indício e sinal
de eqüidade; convém saber: que levava a mão esquerda estendida, a qual, por
ser de sua natureza preguiçosa e que não é ardilosa nem maliciosa, parece que
é mais equipada e conveniente à igualdade e razão, que não a mão direita.
Este mesmo levava na outra mão um copo de ouro redondo e feito a maneira
de seios, do qual saía leite. O quinto levava um crivo de ouro cheio de ramos
dourados. Outro também levava um cântaro grande. Não demoraram detrás
disto de sair os deuses que tiveram por bem de andar sobre pés humanos. Aqui
vinha uma coisa espantável, que era Mercúrio, mensageiro do céu e do abismo,
com a cara hora negra, hora de ouro, elevando a nuca e cabeça de cão, o qual
trazia na mão esquerda um caduceu e na direita sacudia uma palma. Depois
dele seguia uma vaca levantada em seu estado, a qual é figura da deusa, mãe
de todas as coisas. Porque como a vaca é proveitosa e útil, assim o é esta
deusa, a qual imagem ou figura levava em berço de seus ombros um daqueles
sacerdotes com passos muito pomposos.
Outro que levava um cofre onde foram todas as coisas secretas daquela
magnífica religião. Outro deste modo levava em seu regaço a muito venerável
Primeiro livro297
figura de sua deusa soberana, a qual não era de besta, nem de ave, nem de
outra fera, nem tampouco era semelhante a figura de homem; mas por uma
ardilosa invenção e novidade, para argumento inefável da reverência e grande
silêncio de sua secreta religião, era uma coisa de ouro resplandecente figurado
desta maneira: Um copo polidamente obrado, por abaixo redondo e de partes
de fora bem esculpido, com figuras e simulacros dos egípcios; a boca não
muito alta, mas tinha um pico longo, como canal por onde jogava a água, da
outra parte uma asa muito larga e separada do copo; em cima do qual estava
torcida uma muito poderosa serpente Aspis, com a nuca escamosa, o pescoço
alto e muito soberbo; logo, eis aqui, onde chegam meus fados e benefícios,
que pela presente deusa foram prometidos, o sacerdote, que trazia esta
mesma minha saúde, amealhou a cumprir o mandado da divina promissão, o
qual trazia em sua mão direita um pandeiro com soalhas, pendurada dela uma
coroa de rosas, a qual, por certo, se podia muito bem dar, porque ocorrendo
tantos e tão grandes trabalhos; escapado de tão grandes perigos pela
providência da grande deusa, eu vencera e sobrepujara a cruel fortuna, que
sempre luta contra mim.
A tudo isto eu não movi subitamente, arremetendo robusto e com
ferocidade, temendo que, por ventura, com o ímpeto repentino de uma besta
de quatro pés, não se turvasse a ordem e quietude da religião; mas pouco a
pouco, demorando-me, com a cara alegre e o passo como homem de juízo,
abaixando o corpo, dando-me lugar o povo, pela graça da deusa, cheguei-me
muito passado. Então o sacerdote, sendo já admoestado e avisado, pelo sonho
e visão da noite passada, conforme do mesmo negócio eu pude conhecer,
maravilhando-se deste modo como tudo aquilo, concordava com o que lhe fora
revelado, logo quedei-me, de sua própria vontade estendeu sua mão à minha
Primeiro livro298
boca e deu-me a coroa de rosas. Então eu, tremendo e batendo o coração
muitos saltos no corpo, cheguei à coroa, a qual resplandecia tecida de rosas
delicadas e muito frescas, tomando com muita vontade e desejo, desejoso a
traguei. Não me enganou o prometido celestial, porque logo, na hora, caiu-me
aquele deforme e feroz gesto de asno. Primeiro os cabelos duros sairam-me e
depois o couro grosso emagreceu; o ventre, inchado e redondo, assentou-se;
as plantas dos pés, que pareciam cascos, tornaram-se dedos; as mãos já não
eram como antes, levantaram-se direitas, para muito bem fazer seu ofício; a
nuca alta e grande esgotou-se; a boca e a cabeça arredondaram-se; as orelhas,
grandes e enormes, voltaram-se a sua primeira forma; também os dentes,
como de pedra, voltaram a ser miúdos, como de homem; a cauda, que
principalmente causava-me pena, desapareceu. Aquelas pessoas e o povo que
ali estava se maravilharam todos; os sacerdotes adoraram e honraram tão
evidente potência da grande deusa; a magnificência semelhante à revelação
da noite passada; a facilidade desta minha transformação; elevando as mãos
ao céu todos a uma só voz atestavam e diziam este tão ilustre benefício de sua
deusa. Eu, espantado, como pasmado, caído e discretamente, revolvendo em
meu coração tão repentino e tão grande gozo, que não cabia em mim,
pensando o que era o primeiro que principalmente tinha que começar a falar,
de onde tinha que tomar exórdio e começo da nova voz; com que palavras
poderia agora a língua, outra vez nascida, começar com melhor dito; com quais
e quantas palavras eu poderia fazer graça à tão grande deusa; todavia, o
sacerdote, que pela divina revelação estava informado de todos os meus
trabalhos e penas desde o princípio, como que ele também, estava espantado,
fez sinal e mandou que primeiro dessem-me uma vestimenta de linho com a
qual me cobrisse, porque eu, logo que vi que o asno me despojara daquela
Primeiro livro299
cobertura bruta e nefanda; apertadas as pernas estreitamente, postas as mãos
em cima, conforme convinha a homem nu, tampava minhas vergonhas com
natural cobertura. Então, um da companhia daquela religião, rapidamente,
despiu a roupa que trazia ele por cima de tudo e cobriu-me, o qual assim feito,
o sacerdote, com cara alegre e certo assaz humano, estando atônito de ver-me
na forma que me via, falou-me desta maneira:
«Oh, Lucio! Havendo você padecido muitos e diversos trabalhos com
grandes tempestades da fortuna; sendo maltratado das maiores confusões,
finalmente, veio ao porto de saúde e altar de misericórdia; não se aproveitou
de sua linhagem e a dignidade de sua pessoa, nem mesmo tampouco a ciência
que tem; mais antes, com a incontinência de sua mocidade, posto em vícios de
homens servos e de pouco ser, reportou o prêmio e galardão sinistro de sua
acuidade e curiosidade sem proveito; mas como quer que seja, a cega fortuna,
pensando atormenta-lo com estes péssimos trabalhos e perigos, trouxe-lhe
com sua malícia, não por ela vista, à esta religião bem-aventurada. Pois, vá
agora e bravateie com sua fúria quanto quiser; procure para sua crueldade
outra matéria onde se exercite, porque naqueles cujas vistas e serviços a
majestade de nossa deusa tomou só seu amparo e proteção, não há lugar
nenhum caso em contrário. O que lhe aproveitou à malvada da fortuna os
ladrões? O que lhe aproveitaram as feras, ou o serviço em que se pôs, ou as
idas e vindas dos caminhos ásperos que andou, ou o medo da morte em que
cada dia lhe punha?»
E agora é recebido em tutela e guarda da fortuna, mas da qual vê, a
qual, com o resplendor de sua luz, ilumina a todos os outros deuses, que se de
acordo com este seu hábito cândido e branco; acompanha a pompa e procissão
desta deusa que lhe salvou com passos alegres, para que o vejam os hereges,
Primeiro livro300
vejam e reconheçam seu engano; eis aqui, Lucio, sacado das primeiras
tribulações, goza-se com a providência da grande deusa e triunfa com
vencimento de sua fortuna; para que seja mais seguro e melhor guardado, dá
seu nome à esta santa milícia e religião, a qual em outro tempo não fosse
rogado, nem chamado como agora; assim, que se obrigue agora ao serviço de
nossa religião e por sua vontade toma o jugo deste ministério, porque quando
começar a servir à esta deusa, então você sentirá muito mais o fruto de sua
liberdade.»
Desta maneira falando aquele ilustre sacerdote, estando já cansado de
falar, calou-se; depois eu, mesclando-me com aquela companhia de religiosos,
ia na procissão acompanhando aquela solenidade, assinalando-me e notandome
com os dedos e gestos, todos os da cidade e todos falavam de mim
dizendo:
«A dignidade de nossa grande deusa reformou e metamorfoseou hoje,
esta besta em homem; por certo ele é bem-aventurado e houve boa sorte, que,
pela inocência e fé da vida passada, mereceu tão grande favor e ajuda do céu,
que quase voltou a nascer hoje de novo, logo foi dedicado e posto no serviço
das coisas sagradas.»
Dito isto, vindo um pouco adiante com a procissão, chegamos à ribeira
do mar, naquele mesmo lugar onde no outro dia, antes meu amo, tivera seu
estábulo; ali posta a deusa e as outras coisas sagradas em terra,
honestamente, o principal dos sacerdotes ofereceu à deusa uma nave muito
polidamente obrada, grafite com pinturas maravilhosas como as que pintam-se
no Egito; feitos seus sacrifícios e muito solenes preces, com um chá ardendo,
um ovo e pedra impregnada de enxofre, rezando com sua casta boca depois de
Primeiro livro301
havê-la limpo e purificado, dedicou-a e nomeou a esta sua grande deusa; a
nave tinha uma vela muito branca de linho fino, na qual estavam escritas letras
que declaravam o voto dos que ofereciam para que a deusa desse-lhes
próspera viagem; tinha deste modo a nave seu mastro, que era um pinheiro
redondo, alto e muito formoso; com sua antena e sua gaivota; a popa da nave
era coberta de lâminas de ouro, com as quais resplandecia; todo o corpo da
nave era de cedro limpo e muito polido. Então todo o povo, assim os religiosos
como os seculares, com seus crivos e cestas em mãos, cheios de aromas e de
outras coisas semelhantes, para suplicar a sua deusa, lançavam-na dentro na
nave; deste modo esmiuçadas estas coisas com leite, lançavam-nas sobre as
ondas do mar, para cerimônia de seus sacrifícios, até tanto que a nave, cheia
destes dotes e outras largas promessas e devoções, soltas as cordas das
âncoras, arremessou-se ao mar com seu sereno e próspero vento, a qual,
depois que com sua ida, nos perdeu de vista, os que traziam as coisas
sagradas, tomando cada um o que trazia para cargo, alegres e com muito
prazer, em procissão, como foram, voltaram-se à seu templo. Depois que
chegamos ao templo, o principal dos sacerdotes e os outros que traziam
aquelas divinas relíquias e os que eram noviços naquela religião, entrando no
sacrário, aonde puseram suas imagens e relíquias trazidas. Então um daqueles,
ao qual os outros chamavam tabelião, estando à porta, chamou ali todo o
colégio daqueles sacerdotes, de cima de um púlpito começou a pronunciar em
palavras e linguagem grega, dizendo:
«Paz seja ao príncipe e grande senado, cavaleiros, a todo o povo romano,
boa viagem aos marinheiros, às naves que vão pelo mar, saúde a todos os que
são regidos e governados debaixo de nosso império.»
Enfim do qual, deu licença a todo o povo, dizendo que fossem com Deus,
Primeiro livro302
ao qual respondeu todo o povo com grande clamor e alegria, por onde pareceu
que a todos tinha que vir boa ventura como o tabelião dizia. Depois disto,
todos os que ali estavam com grande prazer e com suas grinaldas de rosas e
flores, beijados os pés da deusa, que parecia de prata e posta nos degraus do
templo, foram para suas casas. Todavia, a mim não me deixava meu coração
afastar-me dali quanto uma unha. Mas atento com a formosura da deusa,
recordava-me da fortuna e o ocorrido que me acontecera.
Primeiro livro303
CAPÍTULO III
Como Lucio conta o ardente desejo que teve de entrar na religião da
deusa e como foi primeiro empreitado para recebê-la.
Nisto a fama, que voa com suas asas muita ligeiramente, não cessou,
nem foi preguiçosa, antes voou muito rápido em minha terra, recontando o
honorável benefício da providência da deusa e a memorável fortuna que por
mim passara; de tal maneira que meus familiares e criados, deste modo meus
parentes, tirado o luto que a minha causa tomaram pela falsa relação e
mensagem que de minha morte tinham, subitamente, alegraram-se; logo
correndo vieram para mim cada um com seu presente, para ver minha cara e
presença como retornado quase do inferno a esta vida. Eu assim mesmo,
descansando-me, vendo meu gesto e pessoa, do qual já estava desesperado,
recebi seus dons e presentes, dando-lhes muitas graças e mercês por isso, o
qual eu tinha razão de fazer, porque estes meus familiares e amigos tomaram
cuidado de cumprir o que havia mister, assim para vestir-me e embelezar-me
como para outro gasto; assim depois que os falei em geral e a cada um,
particularmente, dizendo-lhes todas as minhas primeiras fadigas, penas e o
gozo presente em que estava, tornei-me outra vez à muito agradável vista e
presença da deusa; alugada uma casa dentro do cerco do templo, constituí ali
minha morada temporária, servindo por então, nas coisas de dentro de casa
que me mandavam, estando de contínuo na companhia daqueles sacerdotes,
não me apartando do serviço da deusa de tal maneira, que nenhuma noite
passei, nem houve repouso algum sem que visse e contemplasse nesta deusa,
cujos sagrados mandamentos e serviços, como quer que muito antes a ele eu
tivesse-me obrigado, parecia-me que agora o começava a fazer e a servi-la,
Primeiro livro304
embora nisto eu tinha grande desejo e vontade. Porém, escusava-me e
detinha-me com um religioso temor e vergonha, principalmente, que com
muita diligência perguntava a dificuldade que havia no serviço daquela
religião, sabia eu que havia grande abstinência e castidade. Além disto, olhava
com muita cautela que a vida daquela religião era diminuída, estava debaixo
de muitos casos e ocasiões, o qual, tudo pensado comigo muitas vezes, não sei
como dilatava o que muito desejava. Estando neste pensamento uma noite,
sonhava que o supremo sacerdote dava-me e oferecia-me a saia cheia,
perguntando-lhe eu que coisa era aquela, respondia-me que trazia ali certas
coisas que me enviavam da Tessália, que deste modo viera de lá um servo meu
que se chamava Cândido. Despertando com este sonho, revolvia muitas vezes
meu pensamento dizendo que coisa podia ser aquela, principalmente, que não
me recordava em tempo algum ter tido servo que por tal nome se chamasse.
Mas, porque a adivinhação e presságio de sonho se endireitasse a bem, eu
acreditava figurava-me que o oferecimento daquelas coisas que me davam de
todas maneiras significavam algum certo ganho. Desta maneira, estando em
angústia, atônito com a prosperidade do ganho, esperava a hora de manhã
para que as portas do templo fossem abertas, as quais, desde que se abriram,
começaram a adorar, a suplicar à imagem venerável da deusa; o supremo
sacerdote, andando por esses altares e aras, procurava fazer seu sacrifício e
divinos ofícios, depois tomou um copo de água da fonte secreta, fez a salva
como se costuma nas solenidades e súplicas divinas, o qual, tudo muito bem
acabado, os outros religiosos começaram a cantar a primeira hora, adorando e
saudando a luz do dia, que então começava. Nisto eis aqui, vêm de sua terra
meus criados e servidores, que lá deixara quando Fotis, criada de Milón,
encabrestou-me por seu néscio engano; assim conhecidos meus criados e meu
Primeiro livro305
cavalo cândido e branco que eles me traziam, o qual era perdido e o cobraram
por conhecimento de um sinal que trazia nas costas, pelo qual eu me
maravilhava da premonição do sonho principalmente que além de concordar
com o ganho prometido, deu-me, em lugar de servo Cândido, meu cavalo, que
era de cor cândido e branco, o qual tudo assim feito com muita solicitude e
diligência, eu freqüentava o serviço do templo, com esperança certa que pelos
serviços presentes haveria futura remuneração; não menos com tudo isto,
cada dia crescia-me o desejo e cobiça de receber aquele hábito e religião, pelo
qual muitas vezes roguei e supliquei insistentemente ao principal dos
sacerdotes que tivesse por bem de me ordenar para que eu pudesse intervir
nos secretos sacrifícios; mas ele era pessoa grave e muito afamado na
observância e guarda de sua religião; com muita clemência e humanidade,
como revestem os pais temperar os desejos apressados de seus filhos, adulava
e aplacava a fadiga de meu desejo, dilatando minha inoportunidade com
promessa de melhor esperança: dizendo que um dia qualquer se tivesse que
ordenar, seria mostrado e famoso pela vontade da deusa; também por sua
providência seria eleito o sacerdote que tinha que administrar em seus
sacrifícios; e, por semelhante, ela tinha que declarar o gasto necessário para
aquelas cerimônias, as quais coisas nós somos obrigados a guardar com muita
paciência; também nos guardar de ser apressados e de ser remissos, nos
apartando de não cair em culpa de um nem do outro; convém saber: que se eu
sou chamado à religião, não tenho de me demorar, e se não me chamam, que
não dê pressa a que me recebam; nem há nenhum do número destes
sacerdotes que tenham tão perdido o juízo, nem ficaria tão a perigo de morte,
que sem ser chamado pela deusa ousasse empreender tão sacrílego ministério,
de onde pudesse contrair culpa mortal, porque em mão desta deusa estão as
Primeiro livro306
chaves da morte e a guarda da vida, a entrada desta religião se tem que
celebrar a maneira de uma morte voluntária e rogada saúde; principalmente
que esta deusa costuma escolher para seu serviço e religião os homens que já
estão no último término de seu viver, aos quais certamente se pode cometer o
silêncio e autoridade de sua ordem, porque com sua providência faz tornar logo
a viver os que, em alguma maneira renascidos a esta religião, entram nela;
pelas quais razões me convinha obedecer o mandamento celestial; como que
clara e abertamente a deusa, por sua graça e bondade, tivesse-me famoso e
eleito para o ministério de sua religião; mas que nem mais nem menos que os
outros seus servidores havia-me de abster, guardar, separar-se de todos os
manjares, atos profanos e seculares, por onde mais diretamente pudesse
chegar aos segredos muito puros desta sagrada religião.
Depois que o sacerdote disse isto, não acreditavam que por isso eu me
zangasse nem se interrompesse meu serviço; antes muito atento, com grande
paciência e sofrimento, continuamente fazia o ofício conveniente às coisas
sagradas do templo; não recebi nisso engano, nem a liberalidade da deusa
consentiu que eu padecesse pena de longa tardança. Mas, uma noite obscura,
claramente em sonhos revelou-me dizendo que já era chegado o dia que eu
muito desejava, no qual alcançaria e haveria efeito meu voto e desejo, dizendo
deste modo quanto era o que se teria que gastar na preparação dos ofícios e
cerimônias, como aquele seu principal sacerdote, que Mitra se chamava, tinhame
que juntar à companhia sagrada das estrelas, assinalando-me ministro da
santa religião. Eu, quando ouvi estas razões e outras semelhantes palavras
daquela grande deusa, recreado em meu coração, quase incluso, não era bem
de dia, quando muito disposto fui à cela do sacerdote. E eu que chegava à
porta, com prazer o que saía, disse-lhe bom dia, com maior instância e afinco
Primeiro livro307
que saía, pensava lhe dizer que tivesse já por bem de me receber ao serviço e
dívida que devia sua religião; o sacerdote, logo que me viu, antes que nada lhe
dissesse, começou nesta maneira:
«Oh, Lucio! Você é ditoso e bem-aventurado, porque por sua própria
vontade nossa deusa santa julgou e escolheu por homem digno para seu
serviço; pois, isto assim é, por que se demora e não despacha rápido? Este é
aquele dia que você muito desejava, no qual por estas minhas mãos você seja
ordenado para os muito puros secretos desta deusa e de seu santa religião.»
Dizendo isto aquele velho honrado, tomou-me com sua mão direita e
levou-me muito disposto às portas do magnífico templo, as quais abertas com
aquela solenidade e rito que convém, acabado o sacrifício da manhã, tirou de
um lugar secreto do templo certos livros escritos de letras e figuras não
conhecidas; em parte eram figuras de animais que declaravam o que ali se
continha, em parte figuras de sarmentos torcidos e atados pelas portas, para
que a lição destas letras fosse escondida da curiosidade dos leigos; dali disseme
e ensinou-me as coisas que eram necessárias para preparar minha
profissão, as quais logo eu, com alguma liberalidade por uma parte e meus
companheiros por outra, procuramos de comprar e procurar. Assim, vindo o
tempo conforme o sacerdote dizia, levou-me, acompanhado de muitos
religiosos, a uns banhos que ali perto estavam; primeiro fez-me lavar como é
costume; depois, rezando e suplicando aos deuses, orvalhando-me todo de
uma parte e de outra, limpei-me muito bem e retornou ao templo quase
passadas duas partes do dia, colocou-me ante os pés de sua deusa dizendo-me
secretamente certos mandamentos que é melhor calar que dizer; mas em
presença de todos disse-me estas coisas, convém saber: Que naqueles dez
dias contínuos me abstivesse de comer, jejuando, que não comesse carne de
Primeiro livro308
nenhum animal, nem bebesse vinho. Tais coisas por mim guardadas
diretamente com venerável abstinência, já que chegara o dia famoso e
prometido para minha recepção, quase à tarde, quando o Sol baixa, eis aqui,
onde vêm muitos com panos vestidos ao modo antigo de vestimentas
sagradas; cada um deles diversamente dava-me seu dom. Então, afastados
dali todos os leigos e vestido eu de uma túnica de linho branca, o sacerdote
tomou-me pela mão e levou-me ao íntimo e secreto do sacrário. Por ventura
você, leitor estudioso, poderá aqui com ânsia perguntar o que é que depois foi
dito ou feito que me aconteceu; o qual eu diria se fosse conveniente dizê-lo, e
se não conhecesse que a nenhum convém sabê-lo nem ouvi-lo, porque em
igual culpa incorriam as orelhas e a língua daquela temerária ousadia.
Contudo, não quero dar pena a seu desejo, por ventura religioso, tendo-lhe
grande momento suspenso. Mas acredita-o que é verdade; saiba que eu
cheguei ao término da morte, e achado o palácio da Prosérpina, andei e fui
gasto por todos os elementos, a meia noite vi o Sol resplandecente com muito
formosa claridade, e vi os deuses altos e baixos, cheguei-me perto e adore-os;
eis aqui, dito, o que vi, o qual como queira que ouvisse, é necessário que não
saiba; mas aquilo que se pode manifestar e denunciar às orelhas de todos os
leigos, eu muito claramente direi.
Primeiro livro309
CAPÍTULO IV
No qual conta sua entrada na religião, e como voltou à Roma, onde,
ordenado nas coisas sagradas, receberam no colégio dos principais sacerdotes
da deusa Isis.
No outro dia, como era de manhã, acabadas as horas solenes, saí vestido
com doze vestimentas, que é hábito muito devoto e religioso, do qual posso
falar sem proibição alguma, principalmente, que naquele tempo, muito que
estavam presentes o viram. Estava no meio do templo sagrado diante da
imagem da deusa feito um cadafalso de madeira, em cima do qual eu estava
muito adornado de uma vestimenta que era branca de linho, mas de diversas
flores pintadas, que me pendurava dos ombros pelas costas até os pés; ela era
tão rica e preciosa, que de qualquer parte que a visse parecia de diversas
cores e muito adornada de animais nela bordados; de uma parte havia dragões
da Índia; da outra, grifos hiperbóreos que nascem e são criados em outro
mundo, com asas a maneira de aves; a esta vestimenta chamavam os
sacerdotes estola olímpica.
Na mão direita eu tinha uma tocha acesa, e em minha cabeça uma
formosa coroa resplandecente, a maneira de umas folhas de palma elevadas
acima como raios. Desta maneira eu adornado, que parecia o sol, e
embelezado como uma imagem, subitamente elevaram a vela que estava
diante e fiquei descoberto em presença de todo o povo. Depois disto celebrei
muito solenemente a festa de minha profissão e fiz convite de muito suaves
manjares, outros prazeres e festas que duraram três dias, assim no que
pertencia à honesta e religiosa comida, como em todas outras coisas que eram
necessárias à solenidade e perfeição de minha entrada; depois, continuando ali
Primeiro livro310
alguns poucos dias, meu desejo e trabalho gozava daquele gozo inestimável
por estar em serviço da divina deusa, sendo prendado de tão grande benefício.
Finalmente, que tendo referido humildemente, segundo minha possibilidade,
embora não tão inteiro como era razão, agradecendo ao benefício e mercê
recebidos, sendo admoestado pela deusa e com grande pena rotas as âncoras
de meu ardente desejo, alcancei licença, embora tardia, para voltar a minha
casa; assim jogado em terra com minha cara ante seus pés e lavando-os com
minhas lágrimas, matando a fala com grandes soluços e tragando as palavras
finalmente, disse desta maneira:
«Oh, rainha do céu! Você, certo, é santa e advogada contínua da humana
linhagem. Você, senhora, é sempre liberal em conservar e guardar os pecados,
dando muito doce afeição e amor de mãe às confusões e quedas dos
miseráveis: nenhum dia, hora, nem pequeno momento passa vazio de seus
grandes benefícios. Você, senhora, guarda os homens, assim no mar como na
terra, e afastados os perigos desta vida, dá-lhes sua mão direita saudável, com
a qual faz e desata os torcidos laços e nós cegos da morte; amansa as
tempestades da fortuna, refreia os variáveis cursos das estrelas; os céus lhe
honram, a terra e abismos lhe acatam. Você traz a redondez do céu, você
ilumina o Sol, você rege o mundo e rastros o inferno; a si respondem as
estrelas, e em si tornam os tempos; você é gozo dos anjos; a si servem os
elementos; por seu consentimento exaltam os ventos e se criam as nuvens,
nascem as sementes, brotam os árvores e crescem as semeadas; as aves do
céu e as feras que andam pelos Montes, as serpentes da terra e as bestas do
mar temem sua majestade. Eu, senhora, como quero que para lhe elogiar sou
de fraco engenho e para se sacrificar pobre de patrimônio, e que para dizer o
que sinto de sua majestade não basta facúndia de fala, nem mil bocas, nem
Primeiro livro311
outras tantas línguas, nem que perpetuamente meu dizer não cansasse; mas
no que somente pode fazer um religioso, embora pobre, esforçar-me-ei que
todos os dias de minha vida contemplarei sua divina face e muito santa
deidade, guardando-a e adorando-a dentro do segredo de meu coração.»
Desta maneira, fazendo minha oração a grande deusa, abracei ao
sacerdote Mitra, meu pai, e pendurado em seu cangote, dando-lhe muitos
beijos, mandava-lhe perdão, porque não podia remunerar nem lhe agradecer
tantos benefícios e graças como dele recebera. Finalmente, que a cabo de
grande momento que passamos em referir agradecendo e oferecendo,
partimos. Eu, a pouco tempo, enfeitei meu caminho para voltar a ver a casa de
meus pais. Assim, já passados alguns dias, por aviso e mandado da grande
deusa, fiz atar rapidamente minha fazenda, entrando na nave tomei o caminho
para Roma, navegando a favor e prosperidade dos ventos que nos trazia, muito
disposto tomei porto. Dali por terra subi em um carro e cheguei a esta
sacrossanta cidade aos doze dias do mês de dezembro, aonde não tive outro
maior cuidado, quando cheguei, a não ser cada dia ir rezar e orar a grande
majestade da rainha Isis, ao templo onde com grande veneração se adora, que
se chama Campense, tomando o nome do sítio onde está edificado, assim que
eu era orador contínuo daquele templo. E embora novamente vindo, era quase
nascido na religião; eis aqui onde, passado o Sol pelos doze signos do céu,
tinha completo um ano, o cuidado da deusa que bem me queria tornou de novo
a interromper meu descanso e repouso, dizendo-me em sonhos que outra vez
equipasse para me limpar e ordenar e para entrar na religião. Eu estava
maravilhado que coisa podia ser aquela, se por ventura não era bem ordenado
e faltava-me algo.
De tanto que eu tinha este religioso escrúpulo perto de meu pensamento
Primeiro livro312
e disputava nele assim comigo como também comunicando-o com os letrados
do templo, achei uma coisa nova e maravilhosa; convém saber: que embora eu
estava embebido nos sacrifícios da deusa Isis, não estava iluminado nem limpo
para os do grande deus e soberano pai de todos os deuses, Osiris, e como toda
quase fosse uma mesma religião e ambas estivessem juntas, mas que havia
grande diferença quanto ao fazer da profissão e consagração. Portanto, que
soubesse como me convinha ser também servidor do grande deus e que assim
era pedido por ele. Não esteve muito tempo a coisa em dúvida, porque esta
noite vi em sonhos um daqueles sacerdotes coberto de uma vestimenta de
linho sagrada, o qual punha a minha porta pámpanos, eras e outras coisas que
trazia em sua mão, e sentado em minha cadeira denunciou os manjares e
festas da grande religião de Osiris. Este sacerdote, por me dar conhecimento
de si por algum certo sinal, andava pouco a pouco, com passos tardios,
coxeando um pouco do calcanhar do pé esquerdo. Assim, tirada toda escuridão
de dúvida pela manifesta vontade dos deuses, logo, de amanhã, acabadas as
horas matutinas, olhava com grande diligência a cada um, quem deles era
semelhante ao que vi em sonhos, e não me faltou o prometido, porque vi logo
um daqueles sacerdotes que, de mais de indício de ser coxo do pé esquerdo,
concordava justamente em todo o outro, assim em hábito como em estatura,
ao qual vi em sonhos, dormindo; segundo depois soube, chamava-se Asino
Marcelo, o qual nome não era alheio de minha transformação de quando eu
andava feito asno. Visto isto, não me demorei e fui logo a falar; mas ele não
estava incerto do que eu lhe dizia, que já não fora avisado por semelhante
relação como me tinha que administrar e admitir nestas coisas de seus
sacrifícios e religião, porque em sonhos ele ouvira a noite próxima passada ao
grande deus Osiris, estando-lhe embelezando a coroa a sua própria boca, com
Primeiro livro313
a qual diz e declara os fados e ventura de cada um, como lhe era enviado um
homem da Madaura muito pobre, ao qual logo ele recebesse a seus sacrifícios,
porque daquele leste da Madaura alcançaria glória de suas virtudes e o
sacerdote grande proveito e ganho. Desta maneira, estando eu destinado para
entrar na religião, estava impedido, contra minha vontade, pela pobreza e por
não ter para cumprir o que era necessário para a costa, porque os grandes
gastos de minha larga peregrinação consumiram as forças de meu patrimônio,
e também as costas e gastos que se tinham que fazer em Roma precediam e
eram maiores que as que se fizeram na província da Acaya, onde tomei o
hábito. Assim, que com a pobreza e necessidade que tinha, estava em muita
fadiga, posto, como diz o provérbio, entre a faca e a pedra. De mais do qual,
continuamente era fatigado e admoestado pela instância da deusa. Desta
maneira, induzido e estimulado muitas vezes, não sem grande confusão e pena
minha; finalmente, visto que não havia outro remédio, vendo essas jóias e
roupa que tinha, embora pouca, arrumei alguma soma de dinheiro, o qual
especialmente me fora mandada pela deusa, dizendo-me:
«Vejamos: se você queria fazer alguma coisa para seu prazer e deleite
temporário, perdoaria suas roupas? Pois para entrar em uma religião como
esta, por que demora para se acompanhar de pobreza que alguma vez se
arrependa?» Assim, aparelhadas abundantemente as coisas que eram mister,
outra vez voltei a jejuar dez dias, contentando-me com manjares de ervas e
não comer de coisas animadas. Além disto, sendo admoestado pelas noturnas
revelações do deus Osiris, estava já muito satisfeito para entrar em sua
religião, por ser irmão da outra, da grande deusa Isis, e por isso eu freqüentava
seu divino serviço, o qual dava grande descanso e prazer a minha longa
peregrinação e trabalho; não menos me ajudava e dava abundantemente o
Primeiro livro314
necessário a meu viver o ofício de advogar causas em língua romana, que com
o favor de minha boa sorte eu exercitava e tinha, em que ganhava algo do que
ministrado; eis aqui a pouco tempo, não pensando eu, que outra vez sou
admoestado, compelido por maravilhosos mandamentos dos deuses, para que
a terceira vez me ordenasse e consagrasse em sua religião, o qual não pouco
cuidado e pena me deu, antes com grande angústia de meu coração pensava
que coisa podia ser esta nova e não ouvida intenção dos deuses, o que
queriam dizer ou aonde se endireitava, ou o que faltava à procissão e entrada
que já duas vezes fizera; por ventura maliciosamente e assim que haviam
ambos os sacerdotes celebrado minha entrada e profissão? E até por Deus que
já começava a duvidar de sua fé, pensando ser de outra maneira, quando
estando eu neste pensamento, como homem sem miolo, apareceu-me em
sonhos uma pessoa que mansamente me instituiu e disse nesta maneira:
«Não há causa de que se possa espantar acreditando que por se ordenar
tantas vezes faltou algo do que era necessário em sua primeira instituição e
entrada; antes deve alegrar-se, fazendo três vezes o que um e outros apenas
se concede, com este número ternário sempre presume que tem que ser bemaventurado;
assim que este ato e entrada, que lhe mandam fazer, é muito
necessário, e se consigo mesmo pensar, achará que em Roma lhe cumpre
perseverar no templo da deusa Isis com o hábito e vestimentas de sua religião,
que tomou na província de Acaya, não pode nos dias solenes suplicar, nem
tampouco quando mandarem, pode ser ilustrado e iluminado sem este feliz e
religioso hábito, o qual por que para si seja ditoso e de boa ventura, recebe-o
outra vez com ânimo contente e prazenteiro, pois o manda e são autores deles
os deuses grandes e soberanos.»
Até aqui, da maneira que contei, persuadiu-me a revelação da divina
Primeiro livro315
majestade, dizendo-me tudo o que era mister para minha entrada; adiante não
dilatei, nem esqueci o negócio; antes logo fui ao sacerdote principal, ditas
todas as coisas que vira, pus-me à obediência e jugo da castidade e
abstinência de comer coisa de sangue, pela lei perpétua daqueles dias, eu de
minha própria vontade multipliquei outros mais adiante, de maneira que
longamente aparelhei tudo o que era mister para minha profissão e entrada,
porque muitas coisas daquelas que me foram dadas mais por virtude e piedade
de alguns que por medida de dinheiro; como quer que não me pesava do
trabalho nem do gasto, porque liberalmente a providência dos deuses havia
bem provido nos negócios e causas de minha advocacia; finalmente, depois de
bem poucos dias, o deus principal dos grandes deuses e soberanos dos
maiores soberanos, Osiris, digo que reina sobre todos os altos e grandes,
apareceu-me em sonhos, não em pessoa ou figura alheia, a não ser com seu
venerável gesto e presença, teve por bem falar-me mansamente, mandandome
que sem alguma tardança tomasse cargo de patrocinar, ajudar nas causas
e pleitos dos que pouco podem; não temesse as invejas e falações dos que mal
me queriam, as quais ali se cansavam e divulgavam pela doutrina e trabalho
de meu estudo, não somente sua grande majestade tinha por bem que eu
fosse ajuntado na companhia dos sacerdotes, mas que fosse um dos principais
entre os decuriões que de cinco em cinco anos se escolhiam. Finalmente, que
eu, trazendo minha cabeça raspada de cada parte, segundo a cerimônia e
instituição do antigo colégio que se instituiu nos tempos de Sila, exercitava-me
e servia meus ofícios e cargos, perseverando neles com muito prazer e alegria.
Primeiro livro316
Fim
Não sem fadiga de espírito e trabalho corporal traduziu-se Apuleio e
vindo a ser a todos manifestado seu ASNO DE OURO, que a muitos era
encoberto, que, segundo ao princípio foi colocado, certo, ele é um espelho das
coisas desta vida humana. E neste envolvimento de sua história aparecem e
expressam nossos costumes e a imagem de nossa vida continuada; cujo fim e
suma bem-aventurança é nossa religião, para servir a Deus e a sua Divina
Majestade, para que alcancemos à sua glória, para onde fomos criados.
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